25.2. NATUREZA E ESPÉCIES
Apesar das controvérsias em torno da matéria, em princípio constitui um instrumento de liberação de uma dívida anterior. Mas, surgindo outra, que em geral é a mesma anterior, pouco resultado prático traz para o devedor. Continua ele preso ao credor. Não é fácil, pois, perceber na figura um pagamento indireto. Daí que alguns veem na mesma um pagamento fictício. E com razão, porquanto, na prática, se fixarmo-nos ao conteúdo da obrigação, chega-se à anterior, o que leva a concluir que se trata da mesma obrigação, apenas travestida em nova figura.
Constitui também um contrato, salientando Luis de Gásperi: “Es todo un contrato por cuanto extingue una relación obligatoria y crea otra que la substituye, con la particularidad de la concomitancia y solidariedad de estos dos efectos, tanto que ninguno de ellos puede obtenerse sin el otro”.2
As espécies aparecem da discriminação constante do art. 360 do Código Civil, levando a dividir a novação em duas: a objetiva e a subjetiva. Consta do dispositivo:
“Dá-se a novação:
I – quando o devedor contrai com o credor nova dívida, para extinguir e substituir a anterior;
II – quando novo devedor sucede ao antigo, ficando este quite com o credor;
III – quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituído ao antigo, ficando o devedor quite com este”.
Vê-se que o inciso I encerra uma nova obrigação, diz respeito ao objeto – contrata-se uma nova dívida. Já os demais itens referem-se à mudança de pessoa, de um ou outro sujeito da relação contratual. Daí chamar-se a novação subjetiva ou pessoal, envolvendo a mudança de sujeito ativo ou passivo, isto é, de credor ou devedor. Em vista desta bipartição, surgem três tipos: em vista do objeto, do credor e do devedor.
A novação objetiva, também nominada real, refere-se à mudança de uma obrigação por outra. Assim quando se trata de mudar a entrega de um produto por outro diferente – a dívida de arroz por soja; ou de um cereal com um grau de impurezas por cereal mais puro; de uma quantia em dinheiro por outra, com a elaboração de novo contrato; de uma obrigação de fazer uma obra de arte pela entrega de outra já pronta. Há casos em que se altera a causa, mas englobados na mesma espécie, ou não perdendo o caráter real. Alguém possui um valor depositado em estabelecimento bancário, e acerta-se que passa a constituir uma aplicação, rendendo juros. A obrigação de entregar os aluguéis pode converter-se em introduzir melhorias no imóvel. No arrendamento, ao invés de pagar o preço acertado, compromete-se o arrendatário a dar animais.
A novação subjetiva ou pessoal relativa à substituição de devedor acontece quando um terceiro assume o cumprimento da obrigação. “Interviene un nuevo deudor y el acreedor lo acepta, quedando éste libre”, salientava Pothier.3 O credor fica sub-rogado em uma pessoa diversa, desaparecendo o vínculo com a anterior. Um terceiro recebe o encargo de pagar a obrigação, mas necessariamente extinguindo-se a relação com o devedor originário, porquanto, se permanece, perdura o vínculo. Muitos dão a este tipo o nome de delegação, verificada pela concordância de pessoa estranha em se tornar devedora junto ao credor, aceitando este a alteração. Bem expunha Serpa Lopes, em lição perfeitamente atual: “Na verdade, a delegação pode implicar uma novação, quando um terceiro (delegado) consente em se tornar o devedor perante o delegatário (credor), que o aceita, de modo a se constituir uma nova obrigação entre delegado e delegatário, ao mesmo tempo em que se dá a extinção da obrigação, quer a existente entre o delegado e o delegatário (devedor e credor), quer a entre o delegante e o delegado (devedor e terceiro)”.4
Não comporta, no entanto, a matéria muitas tergiversações, posto que as situações mais frequentes são comuns, concentradas na novação objetiva. No entanto, há dois dispositivos que versam sobre a novação subjetiva: os arts. 362 e 363.
Estabelece o primeiro: “A novação por substituição do devedor pode ser efetuada independentemente de consentimento deste”.
Expressa que a substituição de devedor não depende de seu consentimento. E assim deve ser, posto que apenas ele é beneficiado. A doutrina distinguia esta espécie da outra, quando o devedor primitivo é que indica o devedor substituto. Naquela, existe a “expromissão”, obrigando-se o novo devedor para com o credor espontaneamente; na última, tem-se a “delegação”, quando o devedor primitivo, chamado “delegante”, indicar ao credor, o “delegatário”, um novo devedor em seu lugar, chamado “delegado”. Neste caso, imprescindível o consentimento do devedor primitivo, do credor e do devedor substituto. Nota-se, pois, que a espécie contemplada no art. 362 é a expromissão, que dispensa o consentimento do primitivo devedor, e até pode realizar-se contra a sua vontade, enquanto nada disciplina o Código quanto à delegação, onde não se dispensa o consentimento do delegante, do delegado e do delegatário.
Já o art. 363 reza: “Se o novo devedor for insolvente, não tem o credor, que o aceitou, ação regressiva contra o primeiro, salvo se este obteve por má-fé a substituição”. Está claro que o credor, ao aceitar a substituição de devedor, optou por todas as contingências que podem acompanhar esta novação. Todavia, é possível que se mantenha o devedor primitivo vinculado ao credor, justamente para o caso de insolvência do substituto. Aí, porém, depende de convenção expressa. O que releva é ver o momento da delegação. Conforme alguns, não se opera a novação liberatória se presente a quebra ou incapacidade de solver quando da mudança de devedor. Longas discussões disseminavam-se na doutrina antiga. Entende-se, no entanto, por uma questão de lógica, que o credor, ciente da situação, e assim mesmo aceitando o novo devedor, assumiu as decorrências da incapacidade de pagar, inclusive quando do ato de substituição. Nem o direito de regresso assistelhe. A menos, resta evidente, se o contrário tenham convencionado as partes, e se consumada a substituição com má-fé pelo devedor.
Quanto à substituição do credor, verifica-se quando da transferência do crédito, ou em virtude da sub-rogação. Em termos simples, outro credor fica no lugar do antigo, o qual resta quitado de sua obrigação. Com a transferência do crédito, fica novada a obrigação, desaparecendo apenas quanto ao antigo credor. Para o devedor, subsiste a obrigação. De nada adianta para ele, eis que simplesmente desloca-se a dívida a pessoa diversa da qual contratou. Manifesta-se a substituição pelo endosso dos títulos de crédito, ou pela cessão de créditos comuns, como das prestações em promessas de compra e venda.
25.3. REQUISITOS
Vários os requisitos para reconhecer-se a novação, realçando a discriminação de acordo com o enfoque dado ao contrato. No entanto, considerando na figura uma extinção da dívida, ou um pagamento indireto, para a validade um mínimo de precauções e cuidados se deve ter.
Em primeiro lugar, resta evidente a existência de uma dívida anterior, devidamente contratada, válida e exigível, ressaltada por Camillo Giardina: “La novazione pressuppone una prima obbligazione che deve essere estinta”.5 Esta a condição inicial, sem a qual não se configura a espécie, mas uma dívida original. Importa, também, a validade desta obrigação anterior, como consta do art. 367: “Salvo as obrigações simplesmente anuláveis, não podem ser objeto de novação obrigações nulas ou extintas”. Se nula a anterior, ou inexigível, ou extinta já, não há possibilidade de se novar, eis que a mesma sequer existe. Na hipótese de nula, há uma obrigação sem causa e inexistente, faltando o elemento essencial para se constituir. Dest’arte, insuscetíveis de novação, como seguidamente ocorre nos contratos bancários, as dívidas escoimadas de atrocidades como juros ilegais, capitalização não permitida em lei, repetição de cláusulas penais, inserção de comissão de permanência ao lado da correção monetária ou dos juros. Já advertia Cunha Gonçalves: “A obrigação anterior deverá ser existente e válida, pois uma dívida fantasiada, ou legalmente inexistente, por ser radicalmente nula, não pode ser novada”.6
Destaca Lacerda de Almeida o seguinte rol de nulidades:
“Considera-se inexistente:
a) A obrigação condicional, não verificada a condição, ou cujo objeto, sendo corpo certo, pereceu pendente condição.
b) A obrigação extinta por pagamento, remissão, prescrição etc.
c) A obrigação assente em causa reprovada, e a obrigação anulável ou rescindível, quando a nova obrigação foi criada na ignorância dos motivos de nulidade ou rescisão”.7 Relativamente à obrigação condicional, parece que há possibilidade de novação. Assim como antes era condicional, com possibilidade de não exigibilidade, ou de se tornar exigível somente quando verificada a condição, não há óbice que se da mesma maneira se estabeleça com a que surge ou é recriada.
E no caso de ser anulável? Como em qualquer contrato ou ato negocial admite-se a ratificação, torna-se perfeitamente admissível a novação. As partes assumem a eventualidade de não valer a obrigação, mas cientes de que se torna possível a plena convalidação. Nesta ordem, aquela assinada por pessoa relativamente capaz, com a clara evidência de uma posterior ratificação, como viabiliza a primeira parte do art. 367.
O segundo requisito diz com a criação de nova obrigação, que fica no lugar da anterior. Ou seja, é indispensável que uma outra obrigação advenha. Não basta a extinção da anterior, posto que, aí, não passaria de uma simples remissão, ou um perdão, ou extinção sem causa. E para ter-se a nova obrigação, insta que venha válida, exigível, eficaz. Se revelar algum vício, ou não permitindo a posterior exigibilidade, não se consuma a novação.
A terceira exigência assenta-se na validade da nova obrigação. Depreende-se da própria natureza da novação que a mesma há de revestir-se de validade, não contendo objeto ilícito, ou impossível de cumprimento. Se introduzida prestação vedada em lei, ou atentatória a princípios de direito, incabível a sua exigibilidade. Nesta ótica, se expressamente consta prevista uma multa que ultrapasse o valor da dívida, ou se consignada taxa de juros que contrarie os ditames legais que regulam a matéria.
O ânimo de novar coloca-se como quarto elemento indispensável. Animus novandi, ou a vontade dirigida para colocar uma outra obrigação no lugar da anterior, não de se criar mais uma obrigação. Elemento previsto no art. 361: “Não havendo ânimo de novar, expresso ou tácito mas inequívoco, a segunda obrigação confirma simplesmente a primeira”. Confirma-se, sem a vontade específica para tanto, a que existia. Ou dirige-se para criar outra, que passa a conviver com a anterior, – “devem subsistir ambas as obrigações, vindo a segunda a roborar a primeira”, complementava Clóvis Beviláqua.8 Necessário o ânimo de ambas as partes, expresso ou tácito, conforme já advertido pelos pretórios, o que também se reclamava no sistema do Código anterior: “A simples remessa via fax, por um dos contratantes, impondo a dilação de prazo contratado pela entrega de mercadorias, não caracteriza a novação, pois inexiste a intenção ou vontade de novar do outro”.9
Maria Helena Diniz aprofundou o requisito: “É o elemento psicológico da novação. Para que este instituto jurídico se configure, é preciso que as partes interessadas no negócio queiram que a criação da nova obrigação seja causa extintiva da antiga relação obrigacional... O animus novandi não se presume, deve ser expressamente declarado pelas partes ou resultar de maneira inequívoca da natureza das obrigações, inconciliáveis entre si.”10
Daí, para ostentar-se a novação, há de vir expressa, por escrito, devidamente firmada. Também é cogitável a tácita, desde que inequívoca, embora difícil de ser demonstrada. Infere-se de sua existência pela análise de fatos, como se alguém, ao invés de construir uma obra contratada, constrói outra, e recebe o pagamento. Ou se o devedor vai entregando produtos diversos dos previstos, sendo os mesmos recebidos pelo credor, e não opondo ele qualquer restrição.
De notar que, no período clássico do direito romano, não era o ânimo um elemento essencial, ressaltando Camillo Giardina: “Nel periodo classico l’intenzione specifica di novare (animus novandi), cioè di sostituire la nuova all’antica obbligazione, non era uno del requisiti essenziali della novatio. Questa invece era allora esclusivo effetto giuridico di un contratto formale avente lo stesso oggetto (idem debitum) dell’obbligazione novata”.11
Em quinto lugar, temos a exigência da capacidade de quem participa da novação. Surgindo uma obrigação nova, e ficando extinta a anterior, ou seja, havendo criação de direitos e obrigações, com abertura para concessões e acréscimo de encargos, devem as partes possuir capacidade plena, de modo a se fazerem assistir ou representar por quem de direito se relativa ou totalmente incapazes, mas sempre dependendo de autorização do juiz o ato. Passa a obrigação criada a valer totalmente, sendo, no entanto, anulável pelos vícios ou causas previstas para os atos jurídicos em geral. Camillo Giardina revela a extensão da exigência: “Estinguendo uni’obbligazione e creandone ad un tempo una nuova, la novatio richiede necessariamente la capacità di agire da parte dei soggetti della prima obbligazione. Il creditore deve essere capace di rinunziare ai propri diritti per liberare uno da un’obbligazione e il debitore, in genere, deve potere obbligarsi validamente”.12
25.4. NOVAÇÃO E DÍVIDA NATURAL
Embora as profundas divergências que lavram sobre o assunto, o entendimento mais consentâneo com a realidade é o que admite a validade da novação de dívida natural, que o atual Código, buscando dar maior abrangência, denomina “obrigação judicialmente inexigível”.
Lembra-se que a obrigação natural vem a ser a exigência de ordem social e moral, não regulada por lei, ou o comportamento imposto diante das conveniências de conduta pacífica entre os cidadãos, a fim de tornar mais fácil a convivência. Pode-se definir também como o conjunto de normas praticadas pela sociedade, que a dirige, mas não originadas as normas do Estado, e, assim, não constituindo leis, mas ditadas pela moral, pelo costume, pelo uso e por imposições para possibilitar a convivência. Nesta ordem, restringe-se a um dever de consciência, não podendo ser exigido o seu cumprimento.
Existem dispositivos do Código Civil que tratam da mesma, embora não disciplinada sistematicamente.
Assim o art. 882, que expressa: “Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”. Vê-se, aí, uma mera consequência de quem pagou por uma obrigação que não era mais exigível por lei.
Outra referência à obrigação natural estava igualmente no art. 1.263 do Código revogado, onde aparecia um pagamento a que não era obrigada a parte: “O mutuário, que pagar juros não estipulados, não os poderá reaver, nem imputar no capital”. Presumia-se que pagou voluntariamente, ou porque assim quis. A matéria, porém, não se apresentava simples, comportando a nulidade da exigibilidade, se infringida uma lei que estabelecesse uma taxa certa, como acontecia com o Decreto nº 22.636, de 1933.
Já no art. 814, relativamente a dívidas de jogo ou apostas, assinala-se: “As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam o pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito”. Nota-se claramente que as dívidas de jogo e apostas não determinam o respectivo pagamento. Uma vez, porém, paga a dívida ou a aposta espontaneamente, não se autoriza a ação de repetição. Mas, se celebrada a avença, a ainda não paga, é possível a recusa, desde que provada a origem. Há até doutrina que impede a novação, como defende Luis de Gásperi: “Las obligaciones naturales no son susceptibles de novación cuando son contrarias a la ley o al orden público sino unicamente en el caso de que puedan valer como obligaciones civiles. Obligación prohibida es la proveniente de juego o apuesta, que por expresa disposición del artículo 2.057 no puede ser objeto de compensación, ni de novación”.13
Por outro lado, o art. 564, inc. III, também do Código Civil, mais explicitamente dando validade à obrigação natural, encerra: “Não se revogam por ingratidão: (...) III – as que se fizerem em cumprimento de obrigação natural”. Nesta previsão, havendo uma doação para compensar o atendimento desprendido e generoso concedido ao doador, não cabe, posteriormente, a revogação.
Encontra-se, no art. 191, mais uma regra que envolve a obrigação natural, e concernente à renúncia da prescrição: “A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição”. Verificada a prescrição, e ciente o devedor, se houver a novação, mantém-se a obrigação. Ruy Cirne Lima sintetiza a questão: “Entre as mesmas partes, uma obrigação nova, idêntica pelo objeto à anterior, ineficaz ou inane, pode estabelecer-se validamente, suposto não persista, dissimulada, a causa da obrigação anterior, se reprovada [...] Qualquer que seja a natureza jurídica da operação, a nova obrigação se entenderá válida e exigível. Lacerda de Almeida diz, excelentemente: ‘Subsiste [...] a segunda dívida, em seu caráter próprio, se os contratantes sabiam da não existência da primeira.’”14
Veja-se quanto à remissão de dívida – art. 386 da lei civil –, verificada quando há a devolução voluntária do título da obrigação ao devedor, acarretando a desoneração deste último e de seus coobrigados. Se tal aconteceu por mera liberalidade, ou por um impulso moral, é irrelevante ao direito, perfectibilizando-se o ato.
Do exposto depreende-se que a lei protege alguns efeitos da obrigação natural. Por isso, se as partes a respeitam e contratam sobre ela, não se impede que assim também o façam por meio da novação, desde que não oriunda a dívida de uma causa ilícita.
25.5. EFEITOS DA NOVAÇÃO
O pagamento de dívida antiga e o surgimento de uma nova, ou a troca dívida antiga por uma nova – este o principal efeito da novação. Com o desaparecimento da antiga, há uma série de decorrências: cessam os juros porventura incidentes na obrigação antiga, especialmente se já vencida; não mais há o estado de mora, se igualmente vencida a obrigação, com o que se tranca a possível ação oferecida para exigir a satisfação da obrigação.
Um outro efeito da maior relevância vem na primeira parte do art. 364: a extinção dos acessórios e das garantias: “A novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipulação em contrário”. Tanto na novação objetiva como na subjetiva, a eliminação da obrigação antiga traz a eliminação das garantias e dos acessórios. Desaparecem, pois, as multas, a cláusula penal, a fiança, a hipoteca, o penhor. Excepciona-se a hipótese de disposição em contrário, desde que não envolva terceiros, como lembrava Clóvis: “Se for envolvido na relação algum terceiro, cujas obrigações sejam conservadas, apesar da substituição novatória, será necessário que o consentimento dele dê validade ao ato”.15
Robora a afirmação acima a segunda parte da regra do art. 364: “Não aproveitará, contudo, ao credor ressalvar o penhor, a hipoteca ou a anticrese, se os bens dados em garantia pertencerem a terceiro que não foi parte na novação”. É claro que terceiros não podem ficar comprometidos nas relações em que estiveram pessoas alheias, lembrando Francisco de Paula Lacerda de Almeida: “É por isso que, estipulada a reserva das cauções e acessórios da primeira dívida, a hipoteca não pode ter outra data que não a da nova obrigação, e não se podem prorrogar essas garantias sem anuência dos fiadores e garantes hipotecários da antiga dívida: a novação celebrada entre credor e devedor é, com efeito, em relação àqueles garantes, res inter alios acta”.16
No acima exposto abrange-se o art. 366, especificamente quanto ao fiador: “Importa exoneração do fiador a novação feita sem o seu consenso com o devedor principal”. É que o fiador obrigou-se com determinado devedor, e não com o que veio depois. Ademais, extinta a obrigação principal, e, na novação, a primitiva, segue no mesmo rumo a acessória. Este dispositivo, no entanto, tem suscitado controvérsias nos contratos de locação, quando, mediante simples aditivos, alteram-se os aluguéis, ou os índices de reajuste. Não haveria novação, conforme bem coloca o advogado gaúcho José Fernando Lutz Coelho, apoiado em jurisprudência do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul: “... O aditivo ao contrato de locação, no qual ajustem locador e locatário a majoração dos aluguéis e modificação do prazo de reajustamento não consiste em novação do pacto locatício, pois tal alteração não provoca a desaparição da obrigação antiga, característica indispensável e elemento nevrálgico para a configuração da novação, que basicamente extinguiria a obrigação primitiva, visto que o termo aditivo ou adendo ao contrato locatício não apresenta os elementos novatórios; existe, sim, apenas a atualização do valor locacional mediante acordo, que visa a diminuir a defasagem entre o valor do aluguel pago e o valor real do mercado ou mesmo para repor eventuais perdas decorrentes do processo inflacionário”.17 Restaria ao fiador a ação para o pedido de exoneração, no enfoque mais do art. 835.
Possível, é verdade não caracterizar-se, nos aditivos ou adendos, a novação nos termos de sua conceituação. Entrementes, dada a interpretação restritiva, consoante o art. 819, não será atingido o fiador com as inovações introduzidas. Como ele aceitou determinado encargo, de conformidade com as condições avençadas, não lhe afeta o novo pacto. Responsabilizando-se pelo pagamento, lhe é indiferente a parte do contrato que não envolve o ponto crucial da garantia. Esta a exegese preferida pela jurisprudência anterior ao atual Código, mas perfeitamente aplicável, porquanto as disposições legais do antigo e do novo regime mantêm idêntico sentido: “Houve transação com a locatária, da qual não participaram os fiadores, e com ela novação da dívida. A par de outros débitos criados, novas condições foram estabelecidas para a solução da dívida. Houve nitidamente modificação do débito resultante do contrato, não em razão de lei, mas por vontade das partes (locadora e locatária), sem nenhuma participação dos fiadores, que dessa maneira ficaram desvinculados da nova dívida. A esse entendimento conduz os termos da transação e o requisito da gratuidade do contrato da fiança, que determina ser ele interpretado restritivamente”.18
O art. 365 trata da novação em obrigação solidária: “Operada a novação entre o credor e um dos devedores solidários, somente sobre os bens do que contrair a nova obrigação subsistem as preferências e garantias do crédito novado. Os outros devedores solidários ficam por esse fato exonerados”.
Acontece que, na solidariedade, a obrigação é de um e de todos. Junto a um assegura-se a exigibilidade e perante todos os devedores. Por isso que, se o credor admitiu a novação com apenas um dos devedores, significou seu ato a dispensa ou exoneração dos demais. Se a tanto conduz a segunda parte do dispositivo acima, com mais razão quanto à restrição da garantia unicamente nos bens do que novou, segundo assinala o caput do mesmo preceito. Segue Maria Helena Diniz: “A novação ao extinguir o débito alforria os codevedores da relação obrigacional, assim sendo as garantias e preferências que recaiam sobre seus bens desaparecem e só poderão ressurgir se eles concordarem com isso. Se não o fizerem, ficam exonerados da obrigação.”19
Lembra-se, ainda, que, com o novo devedor, ou com a nova obrigação, aquelas exceções que tinha o anterior, ou que atingiam a antiga obrigação, não podem transmigrar para a nova relação. A presunção é de que o novo responsável reconheceu a validade da dívida, ao assumi-la. A nova dívida vem despida de todas as imperfeições ou comprometimentos da anterior, passando a valer com mais pujança da anterior.
25.6. NOVAÇÃO E RENEGOCIAÇÃO DE DÍVIDA
Está bastante em voga a renegociação de dívidas bancárias, interessando, aqui, aquelas decorrentes de financiamentos, ou da falta de pagamento das prestações avençadas em contratos relativos a crédito rural, industrial, comercial, habitacional, à exportação, e outros previstos em leis especiais, com garantia real. Ou seja, celebra-se um contrato específico, para determinada finalidade, e regulado por diplomas como o Decreto-Lei nº 167, de 1967 (crédito rural), ou o Decreto-Lei nº 413, de 1969 (crédito industrial), além de outros. A dívida contraída constitui-se de financiamento para uma atividade. Para tanto restou concedido, submetido sempre a um tratamento especial, em face da legislação específica.
Como o devedor não cumpre os pagamentos previstos, na maior parte das vezes em vista dos altos encargos embutidos, como juros extorsivos e capitalizados, e mais cláusulas penais repetidas e elevadas, visando o agente financeiro uma solução, e como que escoimar de dúvidas ou controvérsias o histórico da dívida primitiva, enceta uma renegociação da dívida, junto ao devedor, anulando a anteriormente existente, e surgindo uma nova, a qual parte da simples referência a determinado valor. Em vista da natureza que se procura imprimir à novação, apoiada em uma corrente doutrinária forte, firmou-se a impossibilidade da novação quando se dá uma simples renegociação.
Justifica-se o ponto de vista na finalidade que sustenta a existência da novação, que é a liberação ou a extinção de uma obrigação. Em princípio, por desaparecer a antiga e aparecer a nova obrigação, pouco resultado concreto advém ao devedor. Parte-se do axioma de que o elemento essencial para novar está no ânimo para tanto dirigido. Mas a dificuldade não está tanto em novar ou não. Ocorre que a renegociação envolve encargos acumulados através de um histórico duvidoso. Transformou-se em um expediente para impedir o retorno ao exame dos encargos que formaram a dívida, existente quando da novação. Aliás, passou a revelar um modo de perpetrar graves injustiças, de encobrir a espoliação. A força do poder econômico é que conduziu à exegese extremamente formalista, ignorando que as renegociações de dívida são aceitas porque colocadas como condições para novos financiamentos, sem os quais os produtores não podem seguir nos seus empreendimentos.
Uma inteligência que revela o âmago da injustiça e do formalismo mercantilista assenta-se no entendimento de que, tratando-se de execução de escritura pública de confissão de dívida resultante de renegociação de débito anterior livremente pactuado, não cabe a discussão sobre a causa subjacente. Operada a novação, extinguem-se as dívidas antecedentes, sendo inadmissível sua discussão em outro momento, como em processo de revisão e em embargos à execução. Havendo termo de renegociação, emerge a impossibilidade de discussão acerca de encargos anteriores.
Acontece que, com tal interpretação, desvirtuam-se as finalidades específicas dos financiamentos. Se dirigidos ao financiamento rural, há a proteção estabelecida no Decreto-Lei nº 167, de 1967, com os benefícios próprios, inclusive quanto à mora, restrita a penalidade a juros em mais 1%, e à cláusula penal, de até 10%, mas só exigível no caso de encetada a cobrança (arts. 5º, parágrafo único, e 71). Uma vez celebrada a renegociação, e dando-se aquela interpretação, impede-se o retorno à averiguação das ilegalidades perpetradas na montagem da dívida. O que, para fixar-se num exemplo, a própria regulamentação que trata da securitização das dívidas agrárias – Lei nº 9.138, de 1995, dispõe ao contrário, impondo, no art. 5º, § 11, o fornecimento ao mutuário de “extrato consolidado de sua conta gráfica, com a respectiva memória de cálculo, de forma a demonstrar discriminadamente os parâmetros utilizados para a apuração do saldo devedor”. Se tanto exige, e não passando a renegociação prevista na Lei nº 9.138 de uma novação, é porque não se pode ignorar os elementos anteriores. De certa forma, leva-se a admitir o perigo de se aceitar a transmissibilidade renovadora, como muitos defendem, e não a transladação de uma obrigação anteriormente contraída, que dominava no direito romano, aspecto examinado no item primeiro do presente capítulo.
O mais grave, porém, está em que, embora a novação, ficam mantidas as garantias reais que protegiam as dívidas antes da renegociação. Se, pelos princípios vistos, a novação importa em criar uma nova obrigação com a extinção da anterior, não podem subsistir as cédulas rurais ou industriais, hipotecárias ou pignoratícias, admitidas unicamente para dívidas dirigidas para os financiamentos específicos. Uma vez efetuada a renegociação, é primário que não mais persiste qualquer financiamento.
O Superior Tribunal de Justiça tem consolidado a possibilidade de revisão, conforme a linha do seguinte exemplo: “Possível a revisão de cláusulas celebradas antes da novação por instrumento de confissão de dívida, se há uma sequência na relação negocial e a discussão não se refere, meramente, ao acordo sobre prazos maiores ou menores, descontos, carências, taxas compatíveis e legítimas, limitado ao campo da discricionariedade das partes, mas à verificação da própria legalidade do repactuado, tornando necessária a retroação da análise do acordado desde a origem, para que seja apreciada a legitimidade do procedimento bancário durante o tempo anterior, em que por atos sucessivos foi constituída a dívida novada” (REsp nº 132.565-RS, da 4ª Turma, j. em 12.09.2000, DJU de 12.02.2001).
Em outra manifestação: “A renegociação de contratos bancários não afasta a possibilidade de discussão judicial de eventuais ilegalidades” (REsp nº 237.302-RS, da 4ª Turma, j. em 8.02.2000, DJU de 20.03.2000. Ainda, em vários outros julgamentos, como REsp nº 205.532-RS, da 4ª Turma, j. em 22.06.1999, em Revista do Superior Tribunal de Justiça, 127/329; REsp nº 230.559-RS, da 4ª Turma, DJU de 17.11.1999). Mesmo que depois de novado o contrato, admite-se a revisão, conforme o seguinte exemplo de decisão do STJ: “na Súmula n. 286/STJ estende-se a situações de extinção contratual decorrente de quitação, novação e renegociação”.20
No voto, lembra-se precedente: “Os contratos são passíveis de revisão judicial, ainda que tenham sido objeto de novação, quitação, extinção, pois inviável a validação de obrigações nulas. Incidência analógica da Súmula 286/STJ. [...] Agravo regimental não provido (AgRg no REsp n. 1.296.812-PR, Quarta Turma, relator Ministro Marco Buzzi, DJe de 11.12.2012).”
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