31.1.
CONCEITO E ESPÉCIES
No Título IV do Livro I da Parte Especial, relativo ao inadimplemento
das obrigações, cuida o Código da mora. Os preceitos são aplicáveis às
obrigações em geral, ou a qualquer tipo de pagamento, e não
restritamente às dívidas em dinheiro.
Primeiramente, define-se a configuração da mora, tanto para o credor
como para o devedor. Assim aparece no art. 394: “Considera-se em mora o
devedor que não efetuar o pagamento e o credor que o não quiser
recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer”.
Está claro que o incumprimento determina a mora, ou o estado de devedor
propriamente dito. Não é exagero afirmar que, não atingido o termo
previsto para cumprir, sequer poderia, a rigor, considerar-se devedora a
pessoa que assumiu uma obrigação, quer de pagar, quer de receber. Nem
apropriado, pois, o termo devedor a quem não está, ainda, dentro do
tempo da exigibilidade da prestação, embora marcado pelo contrato o
compromisso.
A definição de mora colhe-se da ideia de retardamento, de atraso,
ensejando um primeiro conceito: a situação do devedor que está em atraso
no cumprimento daquilo que se comprometeu. Mais apropriado às relações
decorrentes de contrato considerá-la como a situação de quem não
satisfez a obrigação no tempo, modo e lugar convencionados, ou seja, o
não cumprimento segundo o acordado.
A mora envolve incumprimento ou inadimplemento, mas com um alcance
menor, pois não diz com a definitividade da falta de cumprimento. Poderá
caracterizar-se com o simples retardamento, ou o cumprimento não
conforme com o estipulado. Embora traga consequências negativas e,
assim, prejuízos, não importa estabelecer o inadimplemento. Este se
consuma diante da total omissão em atender o que ficou estipulado, e
assim quando perece o objeto da prestação, ou quando se inviabiliza a
sua satisfação, ou quando inútil a prestação porque totalmente sem
valor, como no caso da entrega extemporânea de um objeto para um evento
previsto em data anterior.
Tanto o devedor como o credor podem incorrer em mora. Têm-se, pois, a
mora debitoris e a mora creditoris, considerada em vista da pessoa que
se omite ou não cumpre em pagar ou receber na forma da lei ou do
contrato.
31.2. MORA DO DEVEDOR. CARACTERIZAÇÃO E EFEITOS
Constitui aquela que advém do não cumprimento, ou do cumprimento
atrasado ou não conforme com o modo, tempo e lugar estabelecidos, de uma
obrigação, por parte do devedor. Na excelente e sempre atual explanação
de Werter R. Faria, “tem como pressuposto o não cumprimento, imputável
ao devedor, somando à possibilidade de vir a ser executada a obrigação.
Como decorrência, o devedor se torna responsável pelo prejuízo
ocasionado ao credor e este, por sua vez, pode exigir o cumprimento
judicial da prestação, acrescida do dano emergente e do lucro
cessante”.1
A mora debitoris, ou a mora solvendi, é a mais comum e a que mais enseja
problemas, definida por Arnoldo Wald como aquela que “pressupõe uma
dívida líquida e certa, vencida e não paga, em virtude de culpa do
devedor”.2
Para o seu reconhecimento, além de vencido o termo ou a data para o
cumprimento, é imprescindível a ocorrência de culpa, ou seja, que o
devedor incorreu a ela por ato de vontade ou por negligência,
imprudência ou imperícia. Permanece ainda hígido o ensinamento de
Guilherme Alves Moreira, inclusive frente ao Código Civil de 2002:
“Consideramos a mora como sendo um retardamento culposo no cumprimento
da obrigação, pois que, se esse retardamento for devido a caso fortuito
ou de força maior, não derivará dele responsabilidade alguma para o
devedor, salvo casos especiais em que, por disposição da lei ou por
cláusula do negócio jurídico, se deem alguns dos efeitos da mora
independentemente de culpa por parte do devedor ou do credor”.3
O art. 396 mostra-se categórico a respeito: “Não havendo fato ou omissão
imputável ao devedor, não incorre este em mora”. No que analisa Werter
R. Faria: “Sempre que o descumprimento resulta de caso fortuito ou força
maior não cabe atribuí-lo ao devedor. O art. 963 do Código Civil
preceitua que na falta de imputação o obrigado não incorre em mora. A
imputação designa a capacidade de suportar as consequências da ilicitude
do ato, ou omissão. Se o inadimplemento decorre de caso fortuito ou
força maior, surgidos após a formação da relação jurídica, a mora não se
estabelece, salvo quando o devedor tenha se responsabilizado,
expressamente, pelos prejuízos derivados dessas causas não imputáveis a
ele (art. 1.058 do Código Civil)”.4 Os arts. 963 e 1.058, citados no
texto, equivalem aos arts. 406 e 393 do Código em vigor.
Resta não configurada a mora se um fato surge, impedindo o cumprimento,
como a doença, um desastre, interrupção de meios de transporte, falta de
material para a execução – tudo relacionado ao objeto da obrigação.
A dívida, por outro lado, para determinar a mora, deve já encontrar-se
líquida e certa, ou definida. Impossível exigir o cumprimento sem,
antes, o cálculo do montante ou do tipo de obrigação. Werter R. Faria
aduz: “Enquanto a prestação estiver pendente de determinação do
conteúdo, o credor não poderá executar o devedor. Se for o caso, proporá
a ação para obter a sua condenação. Proferida sentença líquida, ou
julgada a liquidação da sentença ilíquida, com base nela promoverá a
execução”.5 No entanto, se o devedor não providencia na sua liquidação, a
tanto encontrando-se obrigado, incorre em mora.
De outra parte, caso não prevista a época do vencimento da obrigação, ou
não estabelecido o termo, o dia da exigibilidade, impõe-se a
interpelação, ou notificação, ou protesto, referindo o período de tempo
para o cumprimento.
Das consequências da mora do devedor, a mais ressaltada é a indenização
pelos danos causados. Realmente, encerra o art. 395: “Responde o devedor
pelos prejuízos a que a sua mora der causa, mais juros, atualização dos
valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos,
e honorários de advogado”.
A indenização decorre não apenas da não disponibilidade do bem no
momento aprazado, mas também dos prejuízos causados, ou da falta de
fruição das vantagens do bem. Os juros são devidos pelo simples fato do
não cumprimento da obrigação no tempo oportuno. Uma quantia em dinheiro
não restituída no prazo acertado pode fazer falta ao credor,
obrigando-se ele a realizar um empréstimo bancário, ou ficando
impossibilitado de adquirir um bem. Aí temos o prejuízo, cabendo a
indenização. Assim também a não restituição de um imóvel alugado quando
do vencimento do contrato, se a destinação era para o próprio locador
que, em face de tal desídia do locatário, vê-se impelido a alugar outro
prédio, ou a hospedar-se em hotel com sua família. Ressarcem-se, no
primeiro caso, a diferença de juros entre os que percebiam e aqueles
cobrados pela instituição financeira e, na outra hipótese, a diferença
entre o aluguel percebido e a quantia que pagou pelo aluguel ou pela
hospedagem a que se viu obrigado a contratar.
Se o bem produzia frutos, a indenização abrange os perceptos e os
percepiendos, durante o período de atraso.
Karl Larenz vai além na discriminação: “Estos perjuicios pueden
consistir, p. ej., en gastos que tuvo que hacer para satisfacer de otra
forma sus intereses durante el tiempo en que el deudor estaba en mora;
en ganancias frustradas, cuando probadamente hubiera podido vender las
cosas debidas, si se le hubiesen entregado a tiempo a un mayor precio
que el que habría de aceptar si las vendiera en el momento de cumplirse
con retraso la prestación; en los gastos hechos en procedimientos
judiciales necesarios según las circunstancias de cada caso”.6
Não provando prejuízos, unicamente os juros de mora, poderá o credor
exigir, que não poderão ser superiores à taxa para a mora do pagamento
de impostos devidos à Fazenda Nacional, e que, conforme se examinará,
não ultrapassará a um por cento ao mês.
A exigibilidade encontra supedâneo no art. 407: “Ainda que se não alegue
prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora que se contarão assim
às dívidas em dinheiro, como às prestações de outra natureza, uma vez
que lhes esteja fixado o valor pecuniário por sentença judicial,
arbitramento, ou acordo entre as partes”.
Lembra-se que a mora importa, nos contratos bilaterais, na resolução,
dentro do estatuído no parágrafo único do art. 475: “A parte lesada pelo
inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir
exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização
por perdas e danos”.
Outrossim, se em vista da mora não mais servir a prestação, a
indenização corresponderá ao valor da própria prestação, segundo
autoriza o parágrafo único do art. 395: “Se a prestação, devido à mora,
se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a
satisfação das perdas e danos”. Realmente, a prestação pode ser útil até
determinada data. De que adianta, v.g., a compra de um vestido de gala
para determinada festa, se a entrega se faz depois do evento, ou a
publicação de uma notícia para um certame dandose a edição
posteriormente? Comum o descumprimento de prazos nas obrigações de dar e
fazer, com grandes transtornos para os contratantes. Falha-se não
apenas no cumprimento dentro dos prazos, mas também no modo, no lugar de
se efetuar. Há mora na qualidade da prestação, espécie melhor
tipificada como cumprimento imperfeito.
Encontrando-se em mora, e advindo, depois, a impossibilidade de
cumprimento, também responde o devedor. É severo, a respeito, o Código
Civil, no art. 399: “O devedor em mora responde pela impossibilidade da
prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de
força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar
isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação
fosse oportunamente desempenhada”.
Ocorre que, se o devedor se mostrasse cioso de sua obrigação, já a teria
cumprido, e não prejudicaria o credor a superveniência do fato que
impediu a realização. Tal acontece na hipótese de contratar alguém a
fabricação de um maquinário, com produto importado. Se depois do prazo
para a entrega o país do exportador proíbe a venda da matéria-prima que
seria usada nas peças, há a superveniência de caso fortuito ou de força
maior. Todavia, houvesse o fabricante adimplido a tempo a obrigação,
teria conseguido o cumprimento.
Contrata-se a importação de um veículo até uma data assinalada.
Surgindo, posteriormente, a proibição de importar o bem contratado,
responde o devedor pelos danos em razão da não aquisição quando era
permitida a importação. A seguinte ementa ostenta a aplicabilidade do
dispositivo: “A ocorrência de caso fortuito, caracterizado pelo
desprendimento de blocos de rocha sobre o imóvel em construção que venha
a ocasionar o inadimplemento do cronograma físico da obra pactuado
entre as partes, não exime o devedor da responsabilidade perante o
contratante, se já se encontrava em mora pelo não cumprimento de
diversas cláusulas contratuais, conforme interpretação do art. 957 do
CC”.7 O art. 957 mencionado equivale ao art. 399 do atual diploma civil.
Todavia, se o incumprimento no devido tempo foi consequência de força
maior ou caso fortuito, afasta-se a indenização por perdas e danos, como
quando o devedor deixa de atender porque adoeceu, ou em virtude de
novas exigências impostas pelo credor, acarretando atraso na conclusão.
Na elaboração de um produto, dando-se o atraso na sua conclusão, pela
demora em chegarem as peças por causa da interrupção do trânsito em uma
via, sendo a mesma a única alternativa para o transporte, também não
incidem as perdas e danos caso um incêndio atingir, depois do prazo
marcado, as instalações da fábrica do devedor.
Mais uma situação assinala o art. 399, na segunda parte: “... ou que o
dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente
desempenhada”. Mesmo encontrando-se satisfeita a prestação, não
escaparia o credor do dano. Incumbindo-se a uma pessoa de colher a safra
de um produto até a data marcada, surge uma intempérie que a destrói
completamente, inclusive inundando o depósito do credor onde seria
colocada a produção. Embora sem a mora, não se isentaria o credor da
destruição de sua produção. Alguém fica de entregar um produto químico.
Depois de passado o prazo, é promulgada uma lei, vedando o uso. Se
estivesse já o credor com o produto, não fugiria do ditame legal.
Situações essas que bem revelam o conteúdo da regra em exame.
Outros efeitos existem, como o de conservar a coisa durante o atraso, de
repará-la e dispensar-lhe os cuidados exigidos. O Código Civil aponta
os efeitos especiais em algumas figuras contratuais. No art. 562, é
permitido que se revogue a doação se inexecutado o encargo: “A doação
onerosa pode ser revogada por inexecução do encargo, se o donatário
incorrer em mora. Não havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá
notificar judicialmente o donatário, assinando-lhe prazo razoável para
que a obrigação assumida”.
O § 2º do art. 492, relativamente à compra e venda, atribui ao comprador
os riscos das coisas, se o mesmo “estiver em mora de recebê-las, quando
postas à sua disposição no tempo, lugar e pelo modo ajustados”.
31.3. MORA DO CREDOR. CARACTERIZAÇÃO E EFEITOS
Trata-se da mora decorrente da recusa do credor em receber o seu
crédito. Com efeito, estando vencida uma dívida, certa, bem definida, e
prestando-se o devedor a satisfazê-la, verifica-se a recusa do credor no
recebimento, não aceitando que o devedor cumpra a obrigação. Conhecida
como mora creditoris, ou mora accipiendi, não é tão comum como a
debitoris.
Embora as longas discussões que se travam em torno da matéria, parece
também necessária a presença da culpa para o seu reconhecimento, ou
seja, na explicação de Luiz de Gásperi, há “una transgresión de deberes,
e impone a éste, por consiguiente, la obligación de resarcir los daños y
perjuicios ocasionados al deudor”.8 É possível que o credor justifique
ou tenha motivos para a recusa no recebimento. Apesar de dificilmente
acontecer, viável a verificação de motivo de força maior ou caso
fortuito para o não recebimento. Assim quando o credor é acometido de
uma enfermidade, ficando impossibilitado de dirigir-se ao local da
entrega de uma obra, ou mesmo do pagamento de uma importância em
dinheiro.
Em se tratando de bens ou coisas cuja posse e guarda comportam despesas,
reconhece-se ao devedor o direito de ressarcir-se dos gastos após o ato
que evidencia a recusa.
Como foi salientado, não é comum a mora do credor. Em geral, quando
surgem controvérsias sobre o valor da prestação ou sobre a sua
qualidade, é que se dá a recusa. Unicamente através da competente ação
consignatória chega-se à definição do montante.
Sempre que presente a divergência, a priori não se caracteriza a mora.
Tanto que o art. 335, inc. I, coloca o requisito da recusa injustificada
para caracterizar a mora. Sobre o assunto, escreveu Antunes Varela,
mantendo-se atual a lição, dada a equivalência do dispositivo ao art.
973, I, do diploma de 1916: “Se o credor recusa receber o aluguel porque
o donatário não inclui na prestação a majoração determinada por lei; se
o advogado recusa o documento de quitação porque o cliente quer pagar
10% do valor da causa, quando ele tem direito a 20%; se o carregador
recusa a entrega da mercadoria ao transportador porque o veículo de
carga não oferece condições mínimas indispensáveis ao acondicionamento
da mercadoria, entende-se que não há mora do credor, porque a sua recusa
de cooperação é objetivamente justificada”.9
Para o devedor ter o direito de cumprir a obrigação, é necessário que a
dívida se apresente como líquida, certa e vencida. Em princípio, como é
seu dever cumprir a obrigação no tempo, local e modo devidos, cabe-lhe
exigir que o credor aceite o pagamento nas mesmas circunstâncias, isto
é, no tempo, local e modo acertados. Quanto a encontrar-se vencida a
dívida, não se coloca como requisito se prejuízo e ônus não decorrerem
para o credor. Mesmo que a dívida se constitua de um investimento para o
credor, posto que recebe a remuneração, não lhe cabe recusar o
pagamento antecipado do devedor, como permite o art. 52, § 2º, do Código
de Defesa do Consumidor. Além do direito em solver a obrigação,
assegura-se o desconto da parcela de juros e encargos vincendos, ou a
sua redução proporcional.
Questão nem sempre fácil de resolver está na efetiva oferta que faz o
devedor. Não basta que afirme ter havido a recusa. Será ônus seu
demonstrar que houve o oferecimento, não se possibilitando a liberação
por injustificada recusa do credor. Como a prova testemunhal não se
presta para a elucidação da oferta e da recusa em receber, a solução que
melhor se afigura está na notificação por escrito de que o montante, ou
o serviço, se encontra à disposição do credor, ou através de depósito,
ou em determinado local, marcando-se a data para a entrega real. Na
falta de aceitação, abre-se a via para a consignação em pagamento.
Reforçando-se o já referido, a recusa deverá vir justificada por razões
de fato e de direito que convençam, consistindo, em geral, na
insuficiência do valor e falta de qualidade da prestação, defeitos
técnicos, oferecimento em local diferente do acertado, nulidade da
obrigação, desobediência ao prazo etc., consoante o seguinte exemplo: “A
mora accipiendi ocorre com a simples recusa do credor, traduzida em
atos que dificultem o cumprimento da obrigação pelo devedor. Não havendo
o devido esclarecimento quanto ao mérito da dívida, fica configurada a
mora do credor, porquanto houve obstáculo ao exercício do direito do
devedor de cumprir integralmente a sua obrigação”.10
Se não previsto o tempo de se cumprir, é de primordial importância que
se constitua em mora o credor, isto é, que se avise da decisão de solver
a obrigação. A construção de um prédio, uma vez concluída, será
entregue. Mas, não comparecendo o credor, compete ao devedor que leve a
efeito o ato de cientificação da entrega, já se designando a data para o
recebimento.
Útil observar que a mora do credor não afasta a mora do devedor. Sob o
pretexto da recusa em receber, não se tolera a omissão em procurar os
meios legais para desincumbir-se da obrigação. Enquanto não procurada a
liberação, com o competente depósito, continuam a fluir os juros e
outras cominações. Exceto se completamente provada a insensata
obstinação em aceitar o pagamento, ou a pretensão em receber em valor
superior ao devido, ou diferente da pactuada. Em hipóteses tais, não se
caracterizam os efeitos acessórios, como exigibilidade de juros e outros
encargos, e muito menos decorre a resolução do contrato, ou o
vencimento antecipado da prestação.
Relativamente aos efeitos, uma vez verificada a mora do credor, desde
que demonstrada, justificada, e oferecida na sua plenitude a prestação, a
consequência primeira consiste na liberação do devedor da
responsabilidade pela conservação da coisa, caso não haja dolo ou culpa
de sua parte. Não suportará os efeitos da deterioração, ou do desgaste,
ou da ação do tempo.
Cabe ao credor ressarcir as despesas exigidas na conservação da coisa,
posto que, enquanto mantém-se a coisa em poder do devedor, persiste, na
sua pessoa, a responsabilidade na guarda e manutenção. Não podendo
simplesmente abandonar o bem ao relento, ou deixar de conservá-lo, todos
os gastos necessários são exigíveis do credor. O art. 400 é explícito
sobre o assunto: “A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à
responsabilidade pela conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir
as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela
estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia
estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação”.
Efeitos esses a que se submete o credor, já constantes do direito
pré-codificado ou anterior ao Código de 1916, segundo expõe Lacerda de
Almeida: “A mora do devedor isenta o devedor de responder pela
conservação da coisa, salvo caso de manifesto dolo; sujeita-o a receber a
coisa pela mais alta estimação ao tempo do contrato ou no lugar onde
devia ser paga, e a indenizar as despesas que porventura tenha
ocasionado à conservação dela”.11
Algumas considerações comporta o art. 400. No tocante à conservação,
referido que unicamente na existência de dolo remanesce o dever de
indenizar pelos danos havidos. Interessa, no caso, a referência à
palavra ‘dolo’, como pressuposto pela reparação, isto é, ao ato
voluntário, pretendido, dirigido a causar danos. O devedor pratica um
ato que deteriora o bem, causando prejuízos, como quando voluntariamente
não alimenta os animais que estão em seu depósito, ou deliberadamente
não conserva os bens perecíveis acondicionados em compartimentos
apropriados. Ora, no mesmo dispositivo está assegurado o direito ao
ressarcimento às despesas necessárias para a conservação, levando a
exigir dele os meios usuais ou as medidas recomendáveis para a
conservação. Não se estende a ausência de dolo a quem não alimenta o
gado, ou não dá o tratamento veterinário reclamado no caso de moléstias.
Igualmente, não favorece a norma àquele que não protege das intempéries
os bens. O sentido do termo ‘dolo’ abrange a ausência de medidas
conservatórias, ou de providências necessárias a manter o bem no estado
em que se encontrava. Não envolve apenas aqueles atos que requerem
investimentos vultosos, como pinturas do prédio, constante revisão de um
equipamento, substituição de peças e outras conservações que reclamam
altos custos, insuportáveis pela sua condição econômica. Não pretendeu o
legislador assentar a responsabilidade apenas para os atos dirigidos
propositadamente para deteriorar a coisa, como a voluntária aplicação de
alimento inapropriado a animais, ou o uso irregular de um veículo, sem a
lubrificação do motor.
Outro aspecto que merece a análise prende-se à estimativa do valor da
coisa. Consistente a mercadoria em bens comerciáveis, como cereais ou
produtos agrícolas, valerá a estimativa do dia da entrega. Assim deve
ser, dada a constante variação do preço na bolsa de valores de certos
produtos, como a soja. Se o produto tem o preço majorado quando da
efetiva entrega, relativamente ao dia marcado, o último preço é que
prepondera. Situação comum nas transações entre produtores e
cooperativas intermediárias. Se prevista a entrega até certa data, pela
cotação que imperava quando da entrega, mas recusando-se o credor ou
adquirente a receber, e somente aceitando tempo depois, valerá o preço
da data marcada para o recebimento. Não pode submeter-se a parte ao jogo
especulativo do comerciante mais forte.
Cessam os encargos do devedor com a mora do credor – mas entendidos os
financeiros, como os juros ou as taxas remuneratórias. Não é justo
mantê-los se o devedor não mais pretende ficar com a dívida. Por isso,
cabe-lhe provar cabalmente a mora em receber. O mais conveniente será o
ingresso imediato com a ação de consignação.
31.4. MODALIDADES DA MORA DO DEVEDOR
Questão de frequentes controvérsias prende-se às espécies de mora
relativamente ao devedor. Mais propriamente, como se dará a mora? Ora
está prevista expressamente, ora depende de algum ato para a sua
constituição.
É o que se costuma denominar mora ex re e mora ex persona, matéria já
observada no item relativo ao “tempo de pagamento”.
De acordo com a primeira espécie, vem prevista a data do vencimento, ou o
prazo em que deve se operar o pagamento. Fica estipulado no contrato o
dia certo do vencimento, ou o período concedido para o pagamento. Não se
requer alguma medida para a constituição da mora, que se verifica pelo
simples fato da superveniência da data ou do evento. Opera-se de pleno
direito, incidindo a máxima latina dies interpellat pro homine – a
chegada do dia já importa em interpelação. Como decidido, “a mora ex re
caracteriza-se independentemente de interpelação”.12 Num exemplo
prático, relativamente à não entrega de uma construção no prazo:
“Prevendo o contrato de compra e venda dia certo para a entrega da obra,
a mora do vendedor opera-se pelo próprio tempo (dies interpellat pro
homine), prescindindo prévia notificação. Há incidência da Súmula nº 76
do STJ e o Decreto-Lei nº 745/69 só em caso de inadimplemento por parte
do promissário-comprador que tem, então, a oportunidade de purgar a
mora”.13
Tem aqui plena incidência o art. 474 do Código Civil: “A cláusula
resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de
interpelação judicial”.
Entrementes, mesmo nesse tipo de mora, se dispositivo de lei expresso
existir, é necessária a interpelação, a teor do art. 1º do Decreto-lei
nº 745/1969 e art. 22 do Decreto-lei nº 58/1938, rezando o primeiro, em
redação da Lei nº 13.097/2015: “Nos contratos a que se refere o art. 22
do Decreto-Lei no 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham
sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o
inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se,
interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro
de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de quinze
dias contados do recebimento da interpelação.” De relevância o parágrafo
único, em texto da mesma Lei nº 13.097/2015: “Nos contratos nos quais
conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do
promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código
Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no
caput, sem purga da mora.”
O simples vencimento da obrigação acarreta a mora, mesmo que seja um
contrato de compra e venda, com prestações a vencer, a teor do seguinte
exemplo:
“Segundo a dicção legal do artigo 397, do Código Civil: ‘O
inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui
de pleno direito em mora o devedor’. Em assim sendo, desnecessário aos
autores notificaram previamente os devedores, tendo em vista que a mora
destes decorre no inadimplemento da obrigação. 2. Uma vez não tendo os
compradores do imóvel cumprido com a obrigação de pagar a segunda e
última parcela do contrato, conduta esta culposa, e, havendo a previsão
de pacto comissório na avença, tem-se por possível aos vendedores
desfazerem o negócio, pois a legislação civil possibilita a estes tal
possibilidade (artigo 1.163 do Código Civil de 1916). 3. Em virtude dos
princípios da eventualidade e da impugnação específica, bem como em
observância ao contraditório, à ampla defesa e ao duplo grau de
jurisdição, é inviável o conhecimento de alegação suscitada apenas em
sede de recurso de apelação. 4. Os honorários advocatícios arbitrados
pelo julgador de primeiro grau ao sentenciar a demanda de rescisão
contratual, mostram-se justos, tendo em vista as peculiaridades da causa
sub judice, mormente o trabalho desenvolvido pelo advogado dos autores e
a importância da causa”.14 O referido art. 1.163 não tem disposição
correspondente no CC/2002.
De outro lado, conhece-se a mora que depende de um ato do credor para se
formar. Não está previsto o termo do vencimento. Daí a necessidade de
iniciativa. Temos, aqui, a mora ex persona, ou que vem da pessoa. O ato
que a constitui depende de uma interpelação, ou de uma notificação, ou
do protesto – formas diferentes de denominar o mesmo conteúdo da
providência, que se efetiva não só por meios judiciais, mas também
através de meras cartas com a prova do recebimento pelo devedor.
Inclusive por meio de instrumentos de informatização, via comunicação
internet, ou fax, desde que apresentada cópia da ciência do devedor. A
citação revela-se na forma mais incontroversa de constituir em mora,
efetuando-se na ação que discute a relação jurídica.
Operando-se por ato interpelatório, decorrido o prazo concedido, inicia a
mora. A previsão decorre do parágrafo único do art. 397: “Não havendo
termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou
extrajudicial”.
O caput do preceito requer que a obrigação seja positiva e líquida.
Em face de tal imposição, há de ser positiva a obrigação, isto é, de dar
ou fazer; líquida, ou já definida e estabelecida em valores, ou com
objeto certo. O mais importante é que chegue a seu termo, ou ao dia
previsto para a satisfação, sem que tenha agido o devedor no sentido de
saldá-la. Aí ocorre o vencimento automático.
Desde a verificação da mora, seja a ex re ou a ex persona, passam a
incidir os juros. Não é necessário que se ingresse em juízo, e citar o
devedor para a exigência. Neste sentido o art. 407: “Ainda que se não
alegue prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora que se contarão
assim às dívidas em dinheiro, como às prestações de outra natureza, uma
vez que lhes esteja fixado o valor pecuniário por sentença judicial,
arbitramento, ou acordo entre as partes”.
Acontece que se arraigou nos pretórios uma exegese de somente se fixar
os juros de mora a partir da citação, embora vencidas as obrigações, e
constituída a mora, especialmente nas ações de cobrança. Sendo ex re a
mora, ou já assinalada quando inicia, ingressa-se de imediato com a ação
judicial. Não traz a citação efeitos de constituir em mora. Se ex
persona, imprescindível, antes do ajuizamento, o ato que coloca em mora o
devedor. Uma vez efetuado, também fica em mora o devedor, o que permite
a contagem dos juros. Apenas naquelas demandas declaratórias, ou
constitutivas, e se delas decorrerem efeitos patrimoniais, a citação
importa em proclamar a mora. Assim na ação de indenização por dano
extracontratual, mas não decorrente de ato ilícito. A ação revisional de
uma dívida, firmando o montante certo que é devido, não importa em
quaisquer juros, eis que não houve mora. A citação constituiu litigiosa a
relação jurídica, mas não induziu em mora o credor. Na cobrança de
alimentos, embora se coloque o início dos juros a partir da citação, na
verdade a sua exigência se opera a partir do momento do atraso. Da mesma
forma quanto à execução de aluguéis, de encargos ou despesas de
condomínio, de duplicatas e quaisquer títulos de crédito. Em suma, em
todas as lides patrimoniais de cobrança ou execução de obrigações de
quaisquer tipos, desde que exigíveis porque referido o vencimento, ou
provocado. De observar que a citação, quando constitutiva da mora, tem o
efeito de oportunizar a satisfação. Acorrendo o devedor, e satisfazendo
a obrigação no prazo da contestação, fica isento dos encargos e da
sucumbência. Se era de rigor a constituição em mora, e se esta se deu
com a citação, ainda há oportunidade para o adimplemento, cujo único
caminho possível é no próprio feito.
Deve ser arredado da tradição ou da praxe processual a contagem dos
juros a partir da citação, quando a mora remonta ao vencimento do
título, ou ao ato interpelatório.
O Código, para situações especiais, já explicita quando se dá a mora, o
que possibilita a cobrança de juros desde a sua verificação, saindo da
regra geral do art. 397. Assim no art. 390, quanto às obrigações
negativas, ou de não fazer: “Nas obrigações negativas o devedor é havido
por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia
abster”. Nesta hipótese, não se reclama qualquer ato constitutivo da
mora. Aliás, nem há possibilidade de se pensar em mora, posto que o
dever é abster-se, e enquanto tal, verifica-se o cumprimento. Uma vez
vindo praticado o ato proibido, de imediato opera-se a vulneração. O
inadimplemento torna-se definitivo. Autorizado fica o credor de pleitear
as perdas e danos. Não há mora porque não existe mais a possibilidade
de não fazer. Existe, isto sim, o descumprimento de não cometer o ato.
No caso das indenizações por atos ilícitos, vem mais saliente a
distinção com o art. 397. Desde a perpetração da ação ilícita, começa a
mora. Não se requer qualquer medida interpelatória, como se depreende do
art. 398: “Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o
devedor em mora desde que o praticou”.
O Superior Tribunal de Justiça emitiu a Súmula nº 54, dando cumprimento à
regra do art. 962 do anterior Código Civil, que se manteve no art. 398
do atual: “Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso
de responsabilidade extracontratual”. Não se aplica a cominação apenas
às indenizações decorrentes de delitos no sentido de crimes, mas a
qualquer ação ou omissão dolosa ou culposa. Basta que a ação contrarie a
lei e provoque um dano, para ensejar a incidência imediata dos juros.
Equivale a todas as ações que fazem nascer a responsabilidade em virtude
de ofensa à lei ou ao direito.
31.5. PURGAÇÃO DA MORA
Contempla o Código Civil a possibilidade de purgar a mora, fazendo
cessar os seus efeitos para o futuro. Nada de novo encerra, posto que
revela algo natural, que decorre da simples satisfação de uma obrigação.
A todos permite-se reconsiderar a decisão que levou ao descumprimento, e
atender ao compromisso que se havia aceito.
O devedor e o credor podem voltar atrás, pagando a prestação, ou
aceitando-a na forma de seu oferecimento.
O art. 401 disciplina a matéria:
“Purga-se a mora:
I – por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância
dos prejuízos decorrentes do dia da oferta;
II – por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e
sujeitando-se aos efeitos da mora até a mesma data”.
Nos itens I e II, abre-se o caminho para a decisão unilateral do devedor
ou credor em emendar ou purgar a mora, independentemente do
consentimento da parte contrária, mediante o pagamento ou o recebimento
da prestação e mais da importância que corresponde aos prejuízos.
Enquanto o devedor indeniza as perdas e danos, o credor repõe a quantia
gasta na conservação da coisa.
O Código de 1916, no art. 950, acrescentava mais uma hipótese,
consistente na transação, ou no acordo, que se verificaria quando o
prejudicado pela mora renunciasse à indenização a que faria jus, ou ao
ressarcimento dos encargos. Por decorrer naturalmente essa previsão, não
constou prevista no vigente diploma.
De sorte que nenhuma dificuldade há na aplicação da previsão acima, eis
que previstas formas naturais das pessoas cumprirem as avenças firmadas
Nenhum comentário:
Postar um comentário