29.1. A IMPUTABILIDADE NO INADIMPLEMENTO
No Código de 1916, a matéria vinha tratada no Título II do Livro III da Parte Especial, que abrangia os efeitos das obrigações, e destacada no Capítulo XIII, com o nome “Das consequências da inexecução das obrigações”. O Código de 2002 colocou o assunto no Título IV do Livro I da Parte Especial, sob a denominação “Do inadimplemento das obrigações”, e nele incluindo os capítulos de I a VI, compreendendo as “Disposições gerais”, “Da mora”, “Das perdas e danos”, “Dos juros”, “Da cláusula penal”, e “Das arras ou sinal”. O sentido de inexecução empregado no antigo regime, cuja expressão se encontra na doutrina, equivale a inadimplemento.
Salienta-se, ainda, que o atual Código considerou os assuntos incluídos nos Capítulos I a VI ligados ao inadimplemento das obrigações, já que os colocou no mesmo Título.
No Capítulo I, fornece os princípios gerais sobre o inadimplemento, sendo que, nos demais, entra sobretudo nos seus efeitos.
A obrigação, ou mais especificamente o contrato, deve ser cumprido no modo, tempo e termos devidos. O grande problema das obrigações está na falta de cumprimento, o que constitui um fenômeno que leva ao rompimento da harmonia social, ou provocando uma crise de relações, com graves abalos no equilíbrio econômico. Oferece o ordenamento jurídico à parte lesada alguns mecanismos para encaminhar e exigir a satisfação de seu direito ou crédito.
O tratamento do Código é no sentido de que as partes honrem aquilo que estipularam, considerando como exceção a inadimplência. Com o adimplemento, ou a solutio, realiza-se, no modo de ver de Pontes de Miranda, “o fim da obrigação: satisfaz, libera; donde cessar a relação jurídica entre o devedor e o credor”.1 Entrementes, imensa parcela das avenças, embora as obrigações devidamente construídas, com clareza das cláusulas, formadas por pessoas capazes ou aptas a contratar, não chega ao resultado visado, que é o seu atendimento pleno, ensejando uma situação de intranquilidade e insegurança social, máxime aquelas de cunho pecuniário. Constitui um fator de desestabilização das relações econômicas de um país a contumaz e generalizada inadimplência, que se acentua consoante o recrudescimento das crises nos mais variados setores da economia, com implicações na desestruturação de empresas, dos mecanismos de produção, da própria família e do Estado.
Quanto aos princípios gerais, que serão desenvolvidos no presente capítulo, o Código os trata em poucos dispositivos. Começa com o art. 389, nestes termos: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”. Está consagrado o direito de impor o cumprimento. Primeiramente, garante-se o direito de exigir que se realize a sua tipicidade, ou o objeto visado. Nesta ordem, a obrigação de dar, de fazer ou não fazer, a que todas se reduzem, seja qual for o campo a que se dirige. Mesmo que assim se consiga, se caracterizada a mora ou a recusa, incide a indenização pelas perdas e danos, que se efetiva pela incidência dos juros, mas podendo envolver outros consectários.
A correção monetária, já consolidada em extensa legislação no direito positivo, reflete mera forma de manter indene ou atual o valor das perdas e danos, enquanto os honorários advocatícios correspondem aos custos para viabilizar a sua consecução.
Pela regra do dispositivo acima transcrito, ou o devedor simplesmente deixa de cumprir, dando-se o incumprimento absoluto; ou cumpre mal, isto é, não de forma completa, e pelo tempo e modo a que se encontrava obrigado. Nesta segunda situação, tem-se o incumprimento relativo ou parcial. Em ambos os casos, porém, há responsabilidade baseada na culpa. Incide em culpa quando viola explicitamente dispositivos de lei, ou quando se dá o não cumprimento da obrigação, ou deixando-a de cumpri-la pelo modo e no tempo devidos.
Em síntese, a prestação deixa de ser realizada por desobediência ao contrato e à lei. Há um fato imputável ao devedor; a sua culpa levou ao incumprimento. Ou, bem conceituavam Colin e Capitant, “el incumplimiento procede de la culpa del deudor. Cuando esto ocurre, por lo menos, si la obligación procede de un contrato sinalagmático, la ley... permite al acreedor pedir ante los Tribunales la resolución del contrato, lo que producirá la consecuencia de liberarle de su propia obligación, si se supone que aún no la haya cumplido, y de obtener la restitución de lo que ha entregado si se supone que haya cumplido la prestación que le correspondía”.2
Todavia, existem incumprimentos não imputados ao devedor, mas decorrente da impossibilidade originária, ou subsequente à obrigação. Em ambos os casos, não nasce de um ato do devedor a falta de cumprimento. Contrata-se, na primeira hipótese, uma obrigação com um objeto impossível, que está fora do comércio, ou impraticável, como realizar uma pintura por alguém que jamais foi pintor. De que maneira, então, exigir o cumprimento? Não há viabilidade. Na segunda, embora válida e com uma prestação possível, por circunstâncias independentes da vontade do devedor surge a impossibilidade: a realização de uma construção adaptada para finalidades comerciais em uma zona da cidade que, mais tarde, em face de mudança do plano diretor, fica proibida a prática do comércio; ou combina-se a entrega de mercadoria fabricada pelo devedor, vindo, posteriormente, a ser proibida a importação da matéria-prima necessária à fabricação.
Com isto evidencia-se que o incumprimento tem várias causas: a culpa do devedor, a impossibilidade do objeto, a superveniência de impossibilidade, e até outras, como a mudança da situação vigente quando da contratação. Nesta última situação, há responsabilidade do devedor unicamente se está em mora, como já apontava Clóvis Beviláqua: “Incorrendo em culpa ou mora o devedor, então a sua responsabilidade é manifesta, porém, como não poderá mais cumprir a prestação tornada impossível, esta se transforma, para ele, em obrigação de pagar perdas e danos”.3
No entanto, o art. 389 restringe o incumprimento a fato imputável unicamente ao devedor. Ele infringe o contrato, não cumprindo por culpa sua. Não se cogita, aqui, de outros fatores de não realização do contrato, ou do incumprimento não imputável ao devedor.
29.2. A CONDUTA DO DEVEDOR NO INADIMPLEMENTO
Já ficou dito que o art. 389 trata do inadimplemento em face da conduta do devedor. Ele é o responsável pelo inadimplemento. Não há a superveniência de um fator externo, como a impossibilidade. Pode-se repetir, aqui, a seguinte conclusão de Jefferson Daibert: “O que caracteriza, pois, o inadimplemento é o fato de descumprir o devedor aquilo a que se obrigou, quer voluntária ou involuntariamente”.4 Está-se diante da responsabilidade do devedor pelo incumprimento. Incidem as perdas e danos, eis que ele causou a quebra do equilíbrio, que devem consistir nos prejuízos causados pelo sujeito passivo da obrigação. Mas isto se não é possível o cumprimento in natura, como, aliás, já observado. Todavia, o campo do incumprimento é vasto. Pode levar à resolução do contrato, assunto de outros itens ou subitens que serão desenvolvidos adiante. Estudam-se, por ora, as decorrências do não cumprimento da obrigação, com as consequências da indenização pelas perdas e danos, ainda que de ordem exclusivamente moral, derivado o não cumprimento da culpa do devedor. Há, portanto, necessidade do delineamento da culpa em si e da culpa contratual.
Na culpa extracontratual ou aquiliana não se tem em conta a obrigação contratual, mas a ofensa a um dever jurídico, a um preceito de lei, e, consumada na ação, corporifica-se no ato ilícito.
O art. 186 trata da culpa, que tanto pode ser a contratual como a extracontratual. Nesta última, constitui o elemento determinante de toda e qualquer indenização, por atos praticados fora do contrato. Impõe a obrigação de indenizar pelas decorrências de toda e qualquer ação ou omissão, de ordem voluntária ou involuntária. Por outras palavras, por dolo – ação ou omissão voluntária, ou por culpa – ação ou omissão involuntária, isto é, com negligência, imprudência ou imperícia, desde que advenham prejuízos.
No estudo ora desenvolvido, interessa a obrigação de reparar o dano por toda e qualquer pessoa que, agindo com dolo ou mera culpa – isto é, de maneira voluntária ou involuntária –, desrespeita as obrigações nascidas do vínculo contratual. Existe um vínculo obrigacional, surgido do consenso de um sujeito ativo e de um sujeito passivo, em torno de determinado assunto ou objeto. Este vínculo é a relação, que se qualifica como jurídica porque escudada no ordenamento legal. E aparece um comportamento voluntário (doloso) ou involuntário (culposo), desrespeitando o vínculo ou a relação. De sorte que o art. 389, tratando do descumprimento das obrigações, não ilide ou afasta o art. 186. Não se pense que este último cânone restringe-se à culpa extracontratual ou aquiliana, como alguns pretendiam já ao tempo do Código de 1916, e que regula o incumprimento da obrigação contratual unicamente o primeiro dispositivo – art. 389. Pensa-se que jamais se pode alijar a teoria da indenização por incumprimento contratual do pressuposto do art. 186. Na tradicional doutrina é desta forma que se ensinava, recorda Carvalho Santos, que transcreve J. X. Carvalho de Mendonça: “A reparação de dano, proveniente de inexecução ou inadimplemento da obrigação, bem apreciada, não é mais do que a reparação pelo ato ilícito, enquadrando-se em sua generalidade no art. 159 do Código Civil, visto como se dá a violação do direito e prejuízo a outrem em virtude de ato ou omissão voluntária do devedor”.5 Lembra-se que o citado art. 159 corresponde ao art. 186 do vigente Código.
Justamente porque não só da culpa aparece a falta de cumprimento, admissível não cumprir por impossibilidade ou mera incapacidade econômica, o que não afasta as perdas e danos. Afasta unicamente se a impossibilidade ou incapacidade econômica derivar de caso fortuito ou força maior, ou de outras situações independentes da vontade humana ou da culpa, assunto que se desenvolverá neste mesmo capítulo. Nestas eventualidades, há a reposição sem perdas e danos – art. 395. Acontece que o âmbito do art. 389 abrange o incumprimento por culpa. Quando prevê as perdas e danos, pressupõe a culpa. A reposição, não havendo culpa, encontra como fulcro a proibição do enriquecimento sem causa. Tal reposição, ou retorno à situação anterior, passa a reger-se, então, mais pelo art. 884 do Código Civil. Aí, fica-se diante da resolução.
Finalmente, ressalta-se que o incumprimento revela-se nas obrigações positivas e nas negativas – aquelas que envolvem um facere, ou um ato, uma atuação, uma prestação; e as últimas consistentes em um non facere, ou uma abstenção, ou uma conduta a ser evitada, constando a sua previsão no art. 390 do Código Civil, sem que houvesse regra igual no diploma civil revogado: “Nas obrigações negativas, o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster”. Seria a hipótese, nesta espécie, do possuidor que, malgrado obrigação de não utilizar, passa a servir-se de bens sobre os quais detém a mera posse para fins de guarda, ou daquele que, desrespeitando a avença ou a lei, invade área de outrem, ou constrói junto à parede do vizinho.
29.3. O INADIMPLEMENTO CULPOSO
A inadimplência decorre da culpa. É o que se extrai do art. 389. Não se cumpre por motivações voluntárias, ou involuntárias mas assumidas. O fato de não cumprir advém de um ato pretendido, ou de conduta culposa. Rasteiam-se os atos que conduzem ao inadimplemento e percebe-se que o devedor foi o responsável.
Cumpre se veja o conceito de dolo, posto que a culpa tem um sentido lato. Envolve uma violação intencional de uma norma ou conduta, ou de um dever. Há a vontade de contrariar o direito.6 Em termos que já não se apresentam como dialéticos, caracteriza-se o dolo quando o ato revela que o agente conheceu e pretendeu os efeitos danosos produzidos, e também quando o agente tinha a consciência do ato nocivo e contrário à lei, não querendo, no entanto, o resultado. Basta, assim, a voluntariedade do ato para o reconhecimento do dolo. É suficiente “tê-lo querido com má intenção, sendo evidente que, na maioria dos casos, conhecer se um ato é ou não mau, dependerá dos efeitos que ele possa produzir; e nestes casos naturalmente, o simples fato de ter querido o ato, não basta para caracterizar a intenção dolosa”, explica Serpa Lopes.7
Todavia, o dolo, aqui, deve ser visto no inadimplemento da obrigação. Considera-se presente na vontade de não cumprir a avença. Não importa a presença da má intenção, ou da vontade dirigida para prejudicar. Sabe-se e pretende-se o não cumprimento das cláusulas. Não se vai além, como no dolo civil, que se exterioriza no engenho ou no entabulamento de vontades levado a efeito para prejudicar a outra parte. Dispensase a demonstração da direção da vontade para prejudicar, ou o entabulamento de manobra, de artifício, do expediente malicioso empregado pela outra para com vistas induzir alguém em erro.
Importante também se conceitue a culpa, embora em passagem rápida, para a exata compreensão também do art. 392, que se abordará adiante. Uma das mais precisas ideias foi dada por Savatier, lembrado por José de Aguiar Dias: “É a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar. Se efetivamente o conhecia e deliberadamente o violou, ocorre o delito civil ou, em matéria de contrato, o dolo contratual. Se a violação do dever, podendo ser conhecida e violada, é involuntária, constitui a culpa simples, chamada, fora da matéria contratual, de quase delito”.8
Existe um vasto mar de conceituações e caracterizações em torno da matéria. Alguns veem na culpa um erro de conduta, que ocorre toda vez que nos afastamos do procedimento tido como padrão. Outros, o que já foi referido, situam-na como a quebra de um dever a que o agente está adstrito, onde se assenta o fundamento primário da reparação. Assim no direito alemão, em que se destaca o elemento moral do dever. No direito italiano, é dada ênfase à inobservância da diligência na apreciação do resultado dos atos, ou na transgressão da norma de conduta. Em linha semelhante o direito português, lembrando João de Matos Antunes Varela, que o “lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo”.9 Cada pensamento revela aspectos da mesma verdade, ou seja, a conduta produzindo danos porque eivada de negligência, de imprudência ou imperícia. Embora não contenha o elemento interno da intenção dirigido a causar o dano, no entanto dirige-se a vontade ao fato causador do dano, mesmo que este não querido.
É de realce abordar se há ou não distinção ou diferenças entre a culpa contratual e a extracontratual. Deixando-se de lado as várias teorias que se formaram ao longo dos tempos, pensa-se que, em se tratando de obrigações, e vindo estabelecidas em algum vínculo formado entre as partes, a culpa contratual se ostenta muito mais sensível, ou requer menos requisitos, do que na culpa extracontratual. Suficiente a mera inadimplência para detectar a sua presença. Não importa que o sujeito passivo seja negligente, imprudente, imperito, ou revele outras falhas, para exigirem-se as perdas e danos. O mero inadimplemento basta, desde que não advindo de caso fortuito ou força maior, dentre outras situações, como a alteração substancial da base do negócio. Em casos específicos há o afastamento das perdas e danos. Se não se deu o atendimento no prazo da obrigação, mesmo que em razão de perda do emprego do devedor, ou de uma doença que mine os recursos, ou até de um acidente que não diz com o objeto do que se tratou, não se afastam as perdas e danos. Arredam-se caso a impossibilidade disser respeito ao próprio objeto da obrigação, e assim na eventualidade de uma intempérie arruinar toda a cultura de um produto, ou se o prestador é acometido de um mal, ou se o terceiro não entregar a matéria-prima necessária à fabricação do produto.
Para os efeitos do art. 389, não há qualquer correlação entre a gravidade da culpa e a reparação do dano. O art. 403 é expresso: “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”. Yussef Said Cahali resume o pensamento que dominava e mantém-se vigente: “A maior ou menor gravidade da falta não influi sobre a indenização, a qual só se medirá pela extensão do dano causado. A lei não olha para o causador do prejuízo, a fim de medir-lhe o grau de culpa, e sim para o dano... A classificação da infração pode influir no sentido de atribuir-se ou não responsabilidade ao autor do dano, o que é diferente”.10 No inadimplemento de contratos unilaterais faz-se a distinção, para fins de indenização, entre culpa e dolo, ocorrendo também outras hipóteses onde se leva em consideração a gravidade da culpa, como no art. 940.
Não verificada a culpa, o contraente está apto a buscar somente a resolução, ou o retorno à situação anterior, sem pedir a indenização. Convém lembrar, porém, tal em não se tratando de responsabilidade objetiva.
No pertinente à indenização, respondem todos os bens do devedor, como garante o art. 391 do Código Civil, o que é natural e decorre dos princípios que regem qualquer tipo de reparação. Norma equivalente também se encontra no art. 789 do Código de Processo Civil: “O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.”
As restrições consistem especialmente na impenhorabilidade de certos bens, como o de família, regida pela Lei nº 8.009, de 1990.
29.4. INADIMPLEMENTO NOS CONTRATOS BENÉFICOS E ONEROSOS
Deixa-se de cumprir a obrigação nos contratos benéficos, que correspondem, de modo geral, aos unilaterais ou não sinalagmáticos, e nos onerosos, isto é, nos bilaterais ou sinalagmáticos. Os primeiros são os que não trazem obrigações a uma das partes, ou os que resultam obrigações para um só dos contraentes, enquanto nos onerosos, que são bilaterais, as obrigações distribuem-se para ambos os participantes da relação. Às duas espécies dirige-se o art. 392, desta maneira redigido: “Nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei”.
O art. 1.057 do Código revogado, com redação semelhante, ao invés de contratos “benéficos” e “onerosos”, denominava contratos “unilaterais” e “bilaterais”. É necessário observar que todo contrato bilateral ou sinalagmático revela-se oneroso, sendo exemplos fortes a compra e venda e a locação, enquanto o contrato unilateral pode ser gratuito (doação pura) e oneroso (doação com encargo). Portanto, nem sempre o contrato unilateral equivale é benéfico.
Nota-se da regra que não há um princípio que estabelece uma graduação da culpa. Procede-se à classificação da infração para fins de atribuir-se ou não a responsabilidade ao autor do dano, o que é diferente da graduação.11
De acordo com seu conteúdo, na primeira previsão regula-se a indenização por descumprimento dos contratos benéficos, como no comodato, na doação pura e simples, na remissão de dívida, no depósito, na promessa de recompensa, dentre outras figuras. Neste tipo, a parte beneficiada responde por simples culpa. Contraída a obrigação a seu favor, a menor culpa importa em responsabilidade. Exemplo típico é o comodatário, que arcará com as despesas decorrentes da deterioração se não conservou a coisa como se sua fosse, em obediência ao art. 582: “O comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos. O comodatário constituído em mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo comodante”. Relativamente ao depósito, o beneficiado é o depositante, porquanto por ele alguém guarda o bem. Desde que, por simples negligência, não entrega os meios de conservação, assume as consequências.
Quanto ao que assume os encargos e não é favorecido, impõe-se que se caracterize o dolo para estabelecer as perdas e danos. Sua conduta de prejudicar o beneficiado revela a intenção, a vontade, como se o comodante danifica o bem que entregou para outra pessoa. A mera culpa, ou a simples falta de cuidados, em princípio, não importa em responder. A menos que diferentemente dispuser a lei. No pertinente ao depósito, v.g., mesmo que gratuito, regras especiais cobram do depositário a extrema diligência nos cuidados, como se fosse do depositante o bem. Estatui o art. 629: “O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando o exija o depositante”.
Sobre a necessidade, como regra geral, do dolo na conduta do que assumiu a obrigação, pontifica a Súmula nº 145, do Superior Tribunal de Justiça, com a seguinte redação: “No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave”. Nesse tipo de transporte, ou no gratuito, que é o feito por amizade ou cortesia, o enquadramento é de contrato benéfico, impondo-se a culpa para responsabilizar o transportador, como exsurge do art. 736 do Código Civil, que afasta a incidência das normas que obrigam a responsabilização independentemente de culpa no contrato de transporte oneroso.
Nos contratos onerosos, nos quais a ambas as partes cominam-se direitos e obrigações, suficiente a caracterização da culpa para qualquer delas sujeitar-se a ser demandada pelos prejuízos. Considerando que os contratantes encontram-se colocados no mesmo grau de igualdade, a simples inadimplência pela mais tênue culpa traz o direito às perdas e danos.
Mas se ambas as partes infringiram o contrato, a cada uma reserva-se o direito de pedir a reparação, e inclusive permitindo-se a compensação, conforme ilustrava Carvalho Santos, anotando a aplicabilidade do ensinamento, eis que igual o princípio no atual e no anterior Código: “A melhor doutrina admite a compensação de culpas, pela razão de que admitindo a exceção inadimpleti contractus forçosamente fornece ao juiz elementos para, em casos tais, compensar a pretensão de um contraente com a do outro, cabendo ao juiz decidir sobre a compensação, diante das provas que lhe forem apresentadas”.12
Haverá uma certa dificuldade na aplicação do princípio, eis que indispensável determinar a quem por primeiro compete o cumprimento, em face da regra do art. 476: “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”. Resta clara a situação complexa, porquanto a inadimplência de um dos figurantes enseja a resolução da avença. Seria de cogitar-se se, não atendida a obrigação da qual era credor, permite-se também não satisfazer o dever a que se encontra adstrito pelo contrato. Se o inadimplemento for motivo de resolução, não há motivo para o não cumprimento posterior. Mas, partindo do credor a falta de cumprimento, e não interessando ao devedor a resolução, admite-se, na orientação doutrinária acima, buscar a compensação. Tanto costuma acontecer nas locações, quando se compromete o locador a efetuar reformas no prédio, sem o devido cumprimento. No caso, dada a indispensabilidade das obras, nada mais justo que as empreenda o locatário, buscando a posterior compensação com os aluguéis.
Dos princípios acima, excepcionam-se os casos previstos em lei, conforme assinala a parte final do art. 392. Deverá haver lei estabelecendo diferentemente a responsabilidade, ou que a responsabilidade incida mesmo na culpa em contratos benéficos. Exemplo claro da responsabilidade desconsiderando a culpa está no contrato de transporte oneroso de pessoas, regulado pelos arts. 734 e seguintes do Código Civil, aventando lembrar que o transportador responde pelo mero contrato, salvo motivo de força maior, e ficando nula qualquer cláusula excludente de responsabilidade.
Enseja-se ao lesado com o inadimplemento a competente indenização, assegurada pelo art. 391 do Código Civil: “Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”.
29.5. INCUMPRIMENTO POR CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR
Matéria importante, de grandes repercussões práticas, traz o art. 393: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”.
Por sua vez, o parágrafo único traz a definição de caso fortuito ou força maior: “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.
Inicialmente, salienta-se que trata o Código de situações em que é admitido o não cumprimento. Está-se diante do incumprimento não imputável ao devedor. Arrolam-se alguns casos, mas existem várias outras situações, que também serão abordadas.
Há impossibilidades de cumprimento, que afastam a exigibilidade. Já chamava a atenção Francisco de Paula Lacerda de Almeida: “A possibilidade da prestação constitui um dos elementos essenciais da obrigação, e assim, como a prestação impossível impede, em princípio, a formação do vínculo obrigatório por falta de objeto, assim também e pelo mesmo motivo a impossibilidade superveniente, suprimindo um elemento essencial da obrigação, acarreta a extinção desta”.13
Efetivamente, importa, como condição primordial, a possibilidade do cumprimento. Não é sensato que alguém contrate com um trabalhador rural uma atividade incompatível com sua condição. A respeito, o Código Civil, no art. 104, ergue como condições para a validade do ato jurídico o agente capaz, o objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e a forma prescrita ou não defesa em lei. No âmbito de objeto lícito, possível, determinado ou determinável, inclui-se o objeto realizável, existente, encontrando-se no comércio. Não há obrigação quando o objeto é impossível, o que pode ocorrer por duas razões: ou porque está fora do comércio, ou porque é inatingível. De outro lado, tem-se a impossibilidade física e jurídica. Na primeira, aquilo que se promete cumprir nunca existiu e nem poderá existir. Quanto à segunda, a lei impede que seja contratado, e, nesta órbita, a compra e venda de direitos indisponíveis, como da tutela, da curadoria, do poder familiar, e até quanto a bens, como a venda de um imóvel público ou de imóvel que já é do pretendido comprador. Em todas essas situações, incogitável procurar perdas e danos em face do não cumprimento.
29.5.1. Conceito
No presente item, restringe-se o estudo à impossibilidade da prestação proveniente de circunstâncias estranhas à vontade do devedor, e não imputáveis a ele, mas relativamente ao caso fortuito ou a uma circunstância de força maior. Verificando-se uma dessas hipóteses, não incidem as perdas e danos.
Os conceitos sobre referidas causas de isenção estão bem difundidas na doutrina, sendo desnecessária a abordagem das teorias que durante longo tempo martirizaram os aplicadores do direito. Importa perscrutar os traços comuns na sua identificação. Nesta ordem, perdura a importância do ensinamento de Arnoldo Medeiros da Fonseca, um dos que melhor trataram do assunto, para quem caracterizam a força maior ou o caso fortuito, expressões que encerram o mesmo sentido, o elemento objetivo, que é a inevitabilidade do evento, e o elemento subjetivo, considerado como a ausência de culpa no comportamento.14
Relativamente às expressões, Pontes de Miranda trouxe à tona a distinção que já havia feito Lacerda de Almeida: “Força maior diz-se mais propriamente de acontecimento insólito, de impossível ou difícil previsão, tal uma extraordinária seca, uma inundação, um incêndio, um tufão; caso fortuito é um sucesso previsto, mas fatal como a morte, a doença etc.”15 Em seguida, porém, adverte: “A distinção entre força maior e caso fortuito só teria de ser feita, só seria importante, se as regras jurídicas a respeito daquela e desse fossem diferentes”,16 o que não se verifica, pois o Código empresta o mesmo significado às expressões, como ocorria com o Código de 1916. Considera a força maior ou o caso fortuito o acontecimento, previsível ou não, que causa danos e cujas consequências são inevitáveis. Ou, o que vem a dar no mesmo, ocorre um fato sem que o homem, especialmente o devedor, tenha dado causa. De ordinário, é de acontecimento natural que se trata. Mais para bem entender essas excludentes de responsabilidade, vale transcrever a distinção feita por Mário Júlio de Almeida Costa: “... O caso fortuito representa o desenvolvimento de forças naturais a que se mantém estranha a ação do homem (inundações, incêndios, a morte etc.), e o caso de força maior consiste num facto de terceiro (a prisão, o roubo, uma ordem da autoridade etc.). De acordo com o critério talvez mais difundido, o conceito de caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou ação humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências. Ao passo que o conceito de caso fortuito assenta na ideia da imprevisibilidade: o facto não se pode prever, mas seria evitável se tivesse sido previsto”.17 Exemplo de força maior revela-se nesta ementa: “Inexiste a responsabilidade civil do Município pelo dano causado em veículo por queda de árvore em consequência de fortes chuvas, se comprovado que o dano se deu exclusivamente pelo fato da natureza, sem nenhum nexo causal entre a atuação do Estado e a lesão produzida, pois nos termos do art. 1.058 do CC o caso fortuito ou de força maior, por imprevisível e inevitável, exclui o dever de indenizar”.18 Lembra-se que o art. 1.058 equivale ao art. 393 do atual Código Civil.
Enquanto Arnoldo Medeiros acentuava os dois requisitos acima para isentar de responsabilidade o ato humano, Aguiar Dias reduzia tudo a uma questão de causalidade. A supressão de causalidade exime da obrigação: “Esta noção atende melhor ao que se procura expressar com a noção de caso fortuito ou de força maior e prova do mesmo passo que a ausência de culpa não satisfaz como critério capaz de caracterizar essas causas de isenção”.19
No entanto, situando-nos mais no primeiro autor, tendo presentes os dois elementos identificados, o conceito envolve todo o acontecimento inevitável, necessário, “a cujos efeitos não seria dado a nenhum homem prudente prevenir ou obstar”,20 no que se coaduna com o Código Civil.
29.5.2. Ausência de culpa
Não comporta o caso fortuito ou de força maior com a culpa. Não se admite a presença de alguma possibilidade de culpa, pois aí já se depreende que houve a participação do sujeito da obrigação.
Apresenta-se como inevitável o evento se aponta uma causa estranha à vontade do obrigado, irresistível e invencível, o que sói acontecer caso não tenha concorrido culposamente o agente. Não agindo precavidamente, desponta a culpa, o que leva a deduzir não ter sido inevitável.
A inevitabilidade está ligada à ausência de culpa. Um requisito não subsiste sem o outro. Presentes os dois, há impossibilidade de impedir o acontecimento.
O conceito de culpa é amplo. Vindo incrustada no comportamento, desaparece a inevitabilidade. Ou o fato, pela sua imprevisibilidade, se tornou irresistível, aparecendo como inevitável, o que equivale à impossibilidade; ou o autor tinha meios de resistir ao evento, mesmo que imprevisível, conduzindo à configuração da culpa, se não resistir. Na eventualidade de estar munido de meios de resistir ao evento, mesmo que imprevisível, conduz à configuração da culpa se não resistir. O fato súbito e inesperado forma elemento integrante do caso fortuito quando não pode ser evitado, dentro das possibilidades do devedor. O que não acontece no furto de mercadorias do interior de um veículo que as transporta, diante da realidade atual de delinquência generalizada em que vive o País: “Se a transportadora, mesmo sabendo dos riscos que envolvem o transporte de mercadorias relativamente valiosas e cobiçadas por ladrões, aceita fazer o transporte, não pode depois, realizado o sinistro, ser liberada da indenização pelos prejuízos que tal fato, plenamente previsível, causou. A transportadora, tendo celebrado com a denunciada seguro facultativo de responsabilidade civil do transportador por desaparecimento de carga, tem direito a receber da seguradora o reembolso da reparação que terá de pagar às seguradas da proprietária da carga”.21
29.5.3. Inevitabilidade do fato e impossibilidade da obrigação
A inevitabilidade do fato constitui um elemento imprescindível, mas de relativa concepção. Não há fatos que possam, a priori, ser sempre considerados casos fortuitos. É que a inevitabilidade existe hoje e amanhã já poderá desaparecer. Para determinado cidadão, ela se apresenta, e diante de outra pessoa, numa posição diferente, não raro acontece o contrário. A fim de que ela seja completa e plenamente comprovada, a obrigação há de ser impossível. Só então não acontece a culpa e o fato é necessário.
Quanto à impossibilidade, de certa maneira está ligada à pessoa, como na contingência ou falta de condições da pessoa, mas configura-se mais se verificada em relação ao fato. De qualquer sorte, deve ser absoluta, não bastando a mera dificuldade. E revela-se absoluta quando o obrigado não conclui um trabalho contratado porque sobrevém uma doença, que o incapacita para o trabalho. Não é a dificuldade que desonera das perdas e danos, nem um problema posterior e inesperado, como a falta de dinheiro para adquirir a matéria-prima necessária à fabricação. Competia ao agente prever o custo e as exigências do compromisso aceito com a devida antecedência.
Há impossibilidade no cumprimento de uma obrigação porque aparece um acontecimento inevitável. É inevitável quando for superveniente. Nestas condições, se o contrato vem a ser celebrado durante uma guerra, não se admite ao devedor alegar, depois, as dificuldades oriundas desta mesma guerra para furtar-se às obrigações.
A inevitabilidade reclama que seja o evento irresistível, fora do alcance do poder humano. Desde que seja impossível a remoção pela vontade do devedor, não há de se cogitar da culpa deste pelo inadimplemento da obrigação,22 pois independe de qualquer previsão da pessoa o fato. O mesmo acontece se uma guerra surge depois de feito o contrato, impossibilitando o atendimento das obrigações, o que libera o devedor do adimplemento. De idêntica forma, se há o bloqueio de um porto, ou se uma autoridade proíbe o trânsito em determinada região, não permitindo, assim, que uma mercadoria chegue ao destino. Cai uma geada em região onde não ocorria tal fenômeno, inutilizando toda uma plantação; ou sendo sancionada uma lei, proibindo a exportação de um produto; ou acontecendo a queda de uma ponte, interrompendo o caminho para certo local; ou uma doença acamando o construtor, entre outros eventos, constituem fatos inevitáveis, que a vontade humana não está apta a superá-los ou removê-los, justificando a impossibilidade no cumprimento do compromisso contratado.
Envolvem a mesma liberação: se uma obrigação deixa de ser atendida em virtude de uma greve deflagrada, atingindo todos os empregados; a falta da matéria-prima no mercado, indispensável para a fabricação de um bem encomendado; o desaparecimento de uma espécie de semente para uma cultura agrícola. A impossibilidade advinda é absoluta. Mas há situações melindrosas. Muitos acontecimentos não determinam, propriamente, a impossibilidade no adimplir da obrigação assumida em um contrato. No entanto, a tornam extremamente difícil e onerosa, exigindo tamanhos sacrifícios que assume o aspecto de impossibilidade.
No caso de um contrato envolvendo a remessa de mercadorias para uma localidade servida de ferrovia, e danificando-se os trilhos, não está constrangido o devedor a adquirir caminhões, ou a fretá-los de terceiro, a qualquer preço, não havendo serviço regular de transporte em estrada de rodagem.
No entanto, os problemas que surgem imprevistamente no mundo dos negócios, como o repentino retraimento dos bancos, o cancelamento de um empréstimo prometido, não escusam o devedor. Comum é este expediente usado para justificar o não pagamento de uma dívida. A falta de recursos financeiros para aquisição de matéria-prima necessária a uma obra encaminhada; a crise econômica vigente; a insolvência ou falência; a inflação causadora da elevação do preço de um produto; a súbita alta de tarifas; o prejuízo provocado pela política cambial do governo relativamente a um bem importado e indispensável à fabricação de uma mercadoria contratada, formam hipóteses não identificadoras da impossibilidade, embora contenham certo grau de inevitabilidade. É que o risco, o aleatório, a viabilidade de prejuízos integram a natureza do ajuste, e constituem ingredientes da maioria dos ajustes negociais.
Nem o retraimento na procura de compra de imóveis se enquadra na causa de exclusão de responsabilidade: “O insucesso das vendas de unidades do edifício incorporado e a consequente falta de recurso para a sua construção, não sendo fatos necessários e inevitáveis, não constituem caso fortuito ou força maior, capaz de excluir a responsabilidade da empresa incorporadora e construtora da obra, por seu inadimplemento”.23
29.5.4. Hipóteses de não reconhecimento do caso fortuito ou força maior
O Código Civil de 1916, no art. 1.058, não tolerava o caso fortuito ou a força maior nas hipóteses dos arts. 955, 956 e 957 do mesmo diploma, ou seja: na mora do devedor que não efetuasse o pagamento, e do credor que o não quisesse receber no tempo, lugar e forma convencionados; no prejuízo a que respondesse o devedor pela mora que provocou; na impossibilidade da prestação advinda durante a mora, a menos que provasse o devedor a ausência de culpa no atraso da prestação, ou que o dano ocorreria ainda que a obrigação fosse desempenhada oportunamente. Em suma, em havendo mora era arredada a invocação da causa excludente de responsabilidade.
No entanto, não se impunha a referência. Desde que presente a mora, é possível entender-se que o caso fortuito ou de força maior surgiu quando da mora, não existindo ao tempo da previsão do cumprimento. Daí a desnecessidade da previsão daquelas hipóteses excludentes, no que agiu corretamente o Código em vigor.
Mas existem algumas situações especiais. Pelo art. 246, antes da escolha de coisa incerta, “não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito”. No art. 583, referente ao comodato: “Se, correndo risco o objeto do comodato justamente com outros do comodatário, antepuser este a salvação dos seus abandonando o do comodante, responderá pelo dano ocorrido, ainda que se possa atribuir a caso fortuito, ou força maior”.
Na locação, conforme o art. 575, “se, notificado o locatário, não restituir a coisa, pagará, enquanto a tiver em seu poder, o aluguel que o locador arbitrar, e responderá pelo dano que ela venha a sofrer, embora proveniente de caso fortuito”.
Pelo art. 667, § 1º, “se, não obstante proibição do mandante, o mandatário se fizer substituir na execução do mandato, responderá ao seu constituinte pelos prejuízos ocorridos sob a gerência do substituto, embora proveniente de caso fortuito, salvo provando que o caso teria sobrevindo, ainda que não tivesse havido subestabelecimento”.
Na forma do art. 862, “se a gestão foi iniciada contra a vontade manifesta ou presumível do interessado, responderá o gestor até pelos casos fortuitos, não provando que teriam sobrevindo, ainda quando se houvesse abstido”. Consoante o art. 868, temos que “o gestor responde pelo caso fortuito quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste em proveito de interesses seus”.
29.6. SITUAÇÕES ESPECIAIS QUE IMPEDEM O CUMPRIMENTO DO CONTRATO
Existem inúmeras situações que impedem o cumprimento do contrato, sobressaindo o caso fortuito ou força maior, como restou estudado acima. Uma vez verificadas, não que resultem prejuízo total à parte que restou inadimplida, eis que permitem o retorno à situação anterior, através da resolução, com a reposição do que percebeu o devedor. Todavia, afastam as perdas e danos. Há causas que podem levar à resolução, como as nulidades dos atos jurídicos e os vícios de consentimento. Mas aparecem circunstâncias especiais, eventos novos, modificações na estrutura do contrato, acontecimentos inesperados, que não se enquadram no caso fortuito ou de força maior, e que impedem o cumprimento na forma devida e contratada, criadas e ditadas pela doutrina, e impostas pela realidade das épocas. Melhor se adaptariam para a revisão dos contratos, onde se objetiva a alteração de cláusulas, de molde a trazê-las aos padrões normais do direito e da equidade. No Código de Defesa do Consumidor, consta uma infinidade de hipóteses que permitem a alteração, e embasam o não cumprimento, como as cláusulas abusivas e os contratos de adesão, nas previsões dos arts. 51 e seguintes. Se constituem muitas cláusulas motivos para a revisão ou modificação, também servem para justificar o incumprimento e afastar a indenização por perdas e danos.
Presentemente, vai perdendo força o princípio da irretratabilidade dos contratos. Se, de um lado, o elemento fundamental da segurança do comércio jurídico impõe a observância da regra clássica do pacta sunt servanda, pela qual os contraentes se vinculam em face da autonomia da vontade, não é menos verdade que se procura sanar os desvios, porquanto, na prática, se chegou à constatação de que a igualdade entre as partes é apenas teórica e formal, chocando-se com a desigualdade material entre os indivíduos. Na verdade, encontrando-se as partes desigualadas materialmente, a liberdade que se lhes assegura é ilusória. A decorrência consiste na exploração da parte mais necessitada pela parte economicamente mais privilegiada.
Por isso se indaga da viabilidade de admitir a quebra do negócio, ou a sua ruptura, sem as perdas e danos, já que não é matéria deste assunto a revisão dos contratos ou das obrigações.
Dentro deste objetivo, parte-se para o estudo de causas objetivas que se opõem ao cumprimento das prestações.
Dentre as mais salientes, embora não se oferecendo um desenvolvimento amplo, algumas considerações se fazem necessárias sobre as teorias da imprevisão, da base objetiva do negócio, da lesão no direito, da onerosidade excessiva e do lucro permitido nos negócios.
29.6.1. Teoria da imprevisão
Quanto à teoria da imprevisão, fundada na cláusula latina rebus sic stantibus, que expressa a subordinação do vínculo obrigatório à continuação daquele estado de fato vigente ao tempo da estipulação, nada tem de novo, eis que foi criação do direito canônico, desenvolvendo-se nos séculos XIV e XVI e sucumbindo com a Revolução Francesa. Foi exumada especialmente nos períodos que se seguiram às duas grandes guerras mundiais, diante da necessidade de ressurgir os valores dos negócios contratados antes das hecatombes, e a serem cumpridos depois, quando se verificava uma violenta desvalorização das moedas. No seu delineamento, corresponde a espécie ao princípio que admite a revisão ou a rescisão do contrato em certas circunstâncias especiais, como na ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevistos, que tornam a prestação de uma das partes sumamente onerosa.
Interessa estabelecer os elementos para a sua aplicação, reportando-se aos destacados por Arnoldo Medeiros da Fonseca:
“a) A alteração radical no ambiente objetivo existente ao tempo da formação do contrato, decorrente de circunstâncias imprevistas e imprevisíveis;
b) onerosidade excessiva para o devedor e não compensada por outras vantagens auferidas anteriormente, ou ainda esperáveis, diante dos termos do ajuste;
c) enriquecimento inesperado e injusto para o credor, como consequência direta da superveniência imprevista”.24
Mister acrescentarem-se, ainda, outros requisitos, para tornar induvidoso o direito ao uso da cláusula, como “inexistência de mora, ou culpa do devedor na alteração do ambiente objetivo”.25 No que segue a jurisprudência já antiga: “A cláusula rebus sic stantibus só aproveita à parte diligente, empenhada no cumprimento das obrigações que assumiu no contrato, mas foi surpreendida, durante a sua execução, por acontecimentos excepcionais e imprevistos, para provocar o seu empobrecimento e o enriquecimento injusto de outrem, no caso de ser mantido o que foi contratado. Assim, não aproveita àquele que, devido a procedimento culposo, já constituído em mora, é atingido pelas consequências de tais fatos ocorridos após a expiração do prazo contratual”.26
Dois aspectos convém ressaltar, máxime porque distingue a figura da teoria da base objetiva do negócio.
O primeiro reside no enriquecimento que advém a uma das partes, com a alteração imprevista da situação vigente ao tempo da celebração da avença. Se a oneração do contratante não redunda em benefício ou vantagem ao outro figurante, não há como reconhecer-se a espécie. Amiúde se parte para a admissão da imprevisão em virtude tão somente do agravamento da prestação. Não se examina o surgimento ou não da vantagem do credor. Para o reconhecimento de tal fator, é óbvio que o montante da prestação deve importar em uma significação patrimonial maior da que se obteria com idêntico valor ao tempo da celebração do ajuste.
O segundo aspecto está na mudança profunda das circunstâncias em que as partes se vincularam, tornando, na exposição de Mário Júlio de Almeida Costa, “excessivamente oneroso ou difícil para uma delas o cumprimento daquilo a que se obrigou”, ou provocando “um desequilíbrio acentuado entre as prestações correspectivas, quando se trate de contratos de execução diferida ou de longa duração. Nestas situações, às vantagens da segurança, aconselhando a irrevogabilidade, opõe-se um imperativo de justiça, que reclama a resolução ou modificação do contrato”.27
Nos tempos atuais, dados os requisitos nos quais se assenta a teoria, máxime o enriquecimento de uma das partes em detrimento da outra, da total imprevisibilidade, foi caindo em desuso a teoria, dando ênfase ao aparecimento da modificação do contrato, desde que não seja o inadimplemento culposo. Partiu-se para a verificação da base objetiva existente quando da celebração do contrato.
29.6.2. Teoria da base objetiva do negócio
Justamente em vista da constante mutação ou transformação do fato social e da realidade econômica é que melhor se adequa a teoria da base objetiva do contrato ou negócio, desenvolvida inicialmente por Paul Oertmann, o qual partiu da “teoria da pressuposição”, de Bernard Windscheid. A obrigação é firmada sob determinada realidade, devendo perdurar com aqueles pressupostos no futuro. Várias as ideias a respeito, mas que se aproximam quando se centram no fato de que, em todo o negócio, ambas as partes têm em mente as condições que vigem quando celebram o contrato. Projetam as condições em vista daquela realidade. Bem revela Mário Júlio de Almeida Costa, lembrando Enneccerus e Lehmann, a base do negócio como “as representações dos interessados, ao tempo da conclusão do contrato, sobre a existência de certas circunstâncias fundamentais, para a sua decisão, no caso de essas representações não terem sido meramente conhecidas, mas constituídas, por ambas as partes, em base do negócio, como, por exemplo, a igualdade de valor, em princípio, da prestação e da contraprestação nos contratos bilaterais (equivalência), a manutenção aproximada do preço convencionado, a possibilidade de repor a provisão de mercadorias e outras circunstâncias semelhantes”.28
Um dos estruturadores da teoria foi Karl Larenz, que a distinguiu da teoria da base subjetiva, havida como “las representaciones de las cuales han partido los contratantes en sus estipulaciones y que han servido de orientación a los mismos. Ambas partes han supuesto, p. ej., que el valor en curso de ciertos títulos negociables es de 340 y convienen la venta de los mismos al precio de 340 1/2, mientras que aquél era realmente de 430. Las dos se hallaban, pues, en el mismo error, y de haber conocido la verdadera situación de hecho no se hubiera celebrado la venta al valor en curso que en ella se estipuló. Ciertamente, se trata únicamente de un error en los motivos que en principio es indiferente; pero cuando ambas partes, como en el ejemplo ocurre, han incurrido en el mismo error, ello no puede menos de tener influencia sobre la validez del negocio...”. Em suma, entra-se no campo dos vícios de vontade.
Interessa a base objetiva, que é muito mais do que as partes pressupunham, ocorrendo uma alteração das circunstâncias, segue o mesmo autor: “A la ‘base’ objetiva de un contrato, que ha de existir aunque pueda (según la voluntad de las partes) cumplirse de otra forma su finalidad y deba subsistir generalmente como una ordenación en cierto modo conveniente, pueden pertenecer también aquellas circunstancias, como la conservación del valor de la moneda o la admisibilidad del uso de una cosa arrendada en la forma prevista en el contrato (p. ej., el poder aprovechar una pared para colocar anuncios), o la subsistencia de una concesión, sobre cuya utilización las partes hayan establecido una estipulación”.29
No Direito brasileiro, destaca-se, dentre os que abordaram o tema, Ruy Rosado Aguiar Júnior, que também enfatiza a figura: “Vista a obrigação como um processo e um sinalagma funcional como o aspecto social mais relevante dos contratos bilaterais – porquanto é na execução que se efetuam as prestações e ficam satisfeitos os interesses das partes – parece bem evidente que ao tempo do adimplemento, nos contratos duradouros ou de execução diferida, devem existir as circunstâncias que garantam a conservação do princípio da igualdade, expresso na equivalência entre as obrigações reciprocamente prometidas e a obtenção do fim natural do contrato. Não é preciso buscar, fora da própria natureza jurídica do contrato bilateral, fundamento para estabelecer, como requisito da eficácia continuada do contrato, a presença de condições que assegurem a equivalência e a finalidade objetivamente procurada”.30
Se, no curso do contrato, as circunstâncias não mais existem, ou desaparecem, não se justifica a manutenção do contrato. Mas, ao invés da resolução pura e simples, o mais prático consiste na recomposição das prestações, adequando-as às transformações surgidas, de sorte a retornar ao equilíbrio existente no início da formalização do ato bilateral de vontade.
Tem grande aplicação a teoria nos contratos de financiamento, nos quais se inserem cláusulas de reajuste e de penalizações para a falta de cumprimento. No entanto, por circunstâncias até previsíveis, mas que não dependeram da vontade dos contratantes, a realidade subjacente foi se modificando com o passar do tempo. Aquilo que partiu de um equilíbrio, exemplificativamente aumentando as prestações e o saldo devedor nos patamares da depreciação da moeda, o mesmo não ocorreu com o produto que advém da atividade resultante do financiamento. Os preços oficiais e pagos na comercialização do produto mantiveram-se em percentuais inferiores. Na esteira da teoria da imprevisão, exigia-se, para a alteração das cláusulas, ou para afastar as perdas e danos, o advento da vantagem em prol de uma das partes, em detrimento da outra. Uma ganhava porque a outra perdia. No princípio da base do negócio, não há o ganho de um dos contraentes. Nada lucra alguém com a simples reposição da porção correspondente à depreciação da moeda. Entrementes, por não conseguir a outra sequer manter o equilíbrio nos preços de seus produtos diante da deterioração do dinheiro, não é justo que apenas ela sofra. Repugna, efetivamente, à consciência e ao bom senso que apenas uma das partes sofra os nefastos efeitos das contingências da economia de um país. Na órbita dos juros, a elevação das taxas pode determinar a quebra do equilíbrio econômico, e a impossibilidade de satisfação, se a margem de lucro não se mantiver na mesma proporção acima dos custos. Efetivamente, como permitir a taxa de cinco por cento ao mês, se o preço aplicado à produção financiada não alcançar a mesma média de lucratividade?
Daí que se partiu para a atualização e para a admissibilidade da remuneração nas concessões de crédito na mesma ordem de variação do preço aplicada ao produto objeto do financiamento. É que nos contratos comutativos o equilíbrio entre a prestação e contraprestação aparece como condição para a solvabilidade. Já passaram os tempos em que os negócios constituíam fator de enriquecimento, quando alguém acumulara fortunas da noite para o dia. Ressurge o princípio da comutatividade, com o que são abolidos os vícios da usura, da lesão, do enriquecimento sem causa. A desproporção econômica é contrária à moral e à igualdade das pessoas.
29.6.3. Do estado de perigo, da lesão no direito, da onerosidade excessiva e do lucro permitido nos negócios
Mais de passagem, lembram-se outras figuras que permitem a revisão dos contratos, e, decorrentemente, afastar as perdas e danos na inadimplência.
Não se cuida de princípios novos, tendo surgido frente à necessidade de aparar os excessos do voluntarismo contratual.
Inicia-se com o “estado de perigo”, figura não prevista no Código anterior. Envolve o ambiente em que se encontra uma pessoa, quando celebra um negócio, que tolhe a sua vontade, agindo basicamente pela pressão que vive. Corresponde a uma situação de fato, pela qual uma pessoa, para se livrar de um perigo desencadeado e que a pressiona, assente em um negócio, celebrando-o, não medindo os excessivos efeitos nocivos que lhe causa. Defronta-se o contratante com um perigo iminente e grave, levando-a a celebrar o negócio para livrar a si ou a pessoa de sua família de um grave dano que a parte que com ela contrata conhece e dele se beneficia. A previsão encontra-se no art. 156 do Código Civil: “Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa”.
Não é incomum a previsão. Muitas as eventualidades de se encontrar em perigo um indivíduo, e assumir obrigações de excessivo rigor ou ônus, desproporcional ao benefício. Enfrenta alguém um grave perigo, ou está na premência de solucionar um problema, mas exigindo quem se oferece para prestar socorro um pagamento muito oneroso e desproporcional ao benefício. É o caso da contratação de honorários médicos diante de uma doença grave; ou de remuneração excessivamente alta para a solução de um litígio que precisa de urgente intervenção; ou da prestação de um serviço de transporte em um momento intransferível e de extrema urgência. A prestação que paga a parte não equivale ao preço do serviço, e destoa da média que outras pessoas cobram. Há o estado de perigo consistente no advento da morte, ou da perda de um bem, ou que decorre se não removido um instrumento ou uma substância de um determinado local.
Aquele que exige essa contraprestação extremamente vantajosa está ciente da vantagem que procura obter, e da situação de extrema necessidade ou de perigo em que se encontra aquele que precisa do serviço. Para que prevaleça o império da justiça, e com a finalidade de evitar o enriquecimento fácil ou indevido, a lei socorre o prejudicado, com a viabilidade da anulação do negócio.
Essa possibilidade estende-se igualmente às pessoas da família daquele que celebrou o negócio. Quanto a estranhos, impende se afira o grau de relacionamento com a vítima, devendo estar presentes convincentes elementos para viabilizar a anulação, por ordem do parágrafo único do art. 156 do Código Civil, que submete a solução ao juiz, segundo as circunstâncias do caso.
No tocante à “lesão no direito”, ou à “lesão enorme”, introduzida no Código Civil de 2002 – art. 157 e parágrafos –, embora já considerado um velho instituto conhecido no direito, a própria expressão nos dá uma ideia do conteúdo. De um modo bem simples, define-se como lesão ou lesão enorme o negócio defeituoso em que uma das partes, abusando da inexperiência ou da premente necessidade da outra, obtém vantagem manifestamente desproporcional ao proveito resultante da prestação, ou exageradamente exorbitante dentro da normalidade.
Ou, também, conceitua-se como todo o contrato em que não se observa o princípio da igualdade, pelo menos aproximada, na prestação e na contraprestação, e em que não há a intenção de se fazer uma liberalidade. Revelando a falta de equidade, ou a iniquidade enorme, provoca um desequilíbrio nas relações contratuais, ocorrendo de modo geral nos contratos onerosos, como salientam Colin e Capitant: “Este perjuicio, cuya existência no puede evidentemente concebirse cuando se trata de un acto a título gratuito, puede producirse en los contratos a título oneroso sinalagmáticos, y en ciertos actos unilaterales, como la aceptación o la repudiación de una herencia, de un legado universal o a título universal”.31
Três os elementos necessários para a configuração:
I – A desproporção evidente entre as prestações;
II – a miséria, ou necessidade, a inexperiência e a leviandade;
III – a exploração por parte do lesionante.
Várias são as razões que justificam o instituto, como a proteção aos que se encontram em situação de inferioridade. Em determinados momentos, dadas certas premências materiais, a pessoa perde a noção do justo e do consentâneo com a realidade. É conduzida a praticar verdadeiros disparates econômicos. Evidentemente, sua vontade está contaminada por uma pressão muito forte, não agindo livremente.
No pertinente à natureza, aproxima-se de um defeito do consentimento, mas não se confunde. Pode-se dizer que, pela inexperiência, pela necessidade, fica ilaqueada a boa-fé, e favorece-se um erro na apreciação da realidade, na formação do consentimento, e na estimativa dos valores.
Caio Mário da Silva Pereira, um dos que, ao lado de outros, introduziu o instituto no direito brasileiro, revela este quadro para identificar a espécie: “Não é a miséria, a insuficiência habitual de meios para prover à subsistência própria ou dos seus. Não é a alternativa entre a forma e o negócio. Deve ser a necessidade contratual. Ainda que o lesado disponha de fortuna, a necessidade se configura na impossibilidade de evitar o contrato. Um indivíduo pode ser milionário. Mas, se num momento dado ele precisa de dinheiro de contado, urgente e insubstituível, e para isto dispõe de um imóvel a baixo preço, a necessidade que o leva a aliená-lo compõe a figura da lesão”.32
Não se aproxima das teorias da imprevisão ou da base do negócio, eis que, nestas, o desnível das partes aparece no curso das avenças, por circunstâncias supervenientes.
O STJ, na ementa abaixo, bem colocou os elementos tipificadores da conduta:
“...3. Consubstancia lesão a desproporção existente entre as prestações de um contrato no momento da realização do negócio, havendo para uma das partes um aproveitamento indevido decorrente da situação de inferioridade da outra parte.
4. O instituto da lesão é passível de reconhecimento também em contratos aleatórios, na hipótese em que, ao se valorarem os riscos, estes forem inexpressivos para uma das partes, em contraposição àqueles suportados pela outra, havendo exploração da situação de inferioridade de um contratante.
5. Ocorre lesão na hipótese em que um advogado, valendo-se de situação de desespero da parte, firma contrato quota litis no qual fixa sua remuneração ad exitum em 50% do benefício econômico gerado pela causa”.33
Todavia, a mera situação de se encontrar a pessoa acamada em virtude de doença ou de ferimentos causados em acidente, mas no pleno uso de suas capacidades mentais, não é suficiente para justificar a aplicação da teoria:
“1. Na hipótese específica dos autos, a partir do panorama fático traçado pelo TJ/RJ, constata-se que, no momento da assinatura de acordo para indenização da recorrente em virtude de atropelamento por ônibus de propriedade da recorrida, formalizado por instrumento público, aquela: (i) estava internada num hospital, mas dispunha de pleno discernimento sobre os atos da sua vida civil; (ii) estava representada por um advogado, tendo negociado previamente os valores envolvidos no negócio, levando em conta o risco de improcedência de eventual ação contra a recorrida, ante à possível caracterização de culpa exclusiva da vítima; (iii) ouviu a leitura dos termos do acordo, realizada por funcionário do cartório.
2. A quitação plena e geral, para nada mais reclamar a qualquer título, constante do acordo extrajudicial, é válida e eficaz, desautorizando investida judicial para ampliar a verba indenizatória aceita e recebida. Precedentes.
3. A internação em hospital para recuperação de acidente se enquadra na denominada incapacidade transitória, sem previsão expressa no CC/16, mas que encontrava amplo respaldo na doutrina e na jurisprudência e que contempla todas as situações em que houver privação temporária da capacidade de discernimento. O exame dessa incapacidade deve ser averiguado de forma casuística, levando-se sempre em conta que a regra é a capacidade; sendo a incapacidade exceção.
4. Não se pode falar na existência de erro apto a gerar a nulidade relativa do negócio jurídico se a declaração de vontade exarada pela parte não foi motivada por uma percepção equivocada da realidade e se não houve engano quanto a nenhum elemento essencial do negócio – natureza, objeto, substância ou pessoa.
5. Em sua origem, a ilicitude do negócio usurário era medida apenas com base em proporções matemáticas (requisito objetivo), mas a evolução do instituto fez com que se passasse a levar em consideração, além do desequilíbrio financeiro das prestações, também o abuso do estado de necessidade (requisito subjetivo). Ainda que esse abuso, consubstanciado no dolo de aproveitamento – vantagem que uma parte tira do estado psicológico de inferioridade da outra –, seja presumido diante da diferença exagerada entre as prestações, essa presunção é relativa e cai por terra ante a evidência de que se agiu de boa-fé e sem abuso ou exploração da fragilidade alheia.
6. Ainda que, nos termos do art. 1.027 do CC/16, a transação deva ser interpretada restritivamente, não há como negar eficácia a um acordo que contenha outorga expressa de quitação ampla e irrestrita, se o negócio foi celebrado sem qualquer vício capaz de macular a manifestação volitiva das partes. Sustentar o contrário implicaria ofensa ao princípio da segurança jurídica, que possui, entre seus elementos de efetividade, o respeito ao ato jurídico perfeito, indispensável à estabilidade das relações negociais”.34
Já a “onerosidade excessiva” parece mais uma variante das duas figuras acima, constando regulada no Código Civil. Inclui, entre os seus requisitos, na doutrina de Ruy Rosado Aguiar Júnior, “além da extraordinariedade dos acontecimentos imprevisíveis e do ônus excessivo para uma das partes, ainda o da extrema vantagem para a outra, o que limita ainda mais o âmbito de abrangência da cláusula. Os fatos modificativos extraordinários incidem quase sempre igualmente sobre as duas partes, tornando inviável a prestação, sem que disso decorra vantagem para a outra; assim, a guerra, as revoluções, os planos de intervencionismo econômico etc.”35
O anterior Código Civil Brasileiro nada referiu a respeito do assunto. Mas o vigente diploma introduziu a figura da onerosidade excessiva, que tem o substrato comum da imprevisão, autorizando a resolução do contrato, dentro das condições do art. 478: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença, que a decretar, retroagirão à data da citação”.
Não é fácil a caracterização da onerosidade excessiva, sobretudo em face do requisito da imprevisibilidade. Especialmente em casos de fenômenos da natureza, possíveis de imaginá-los, não tem admitido o STJ o reconhecimento:
“1. A prévia fixação de preço da soja em contrato de compra e venda futura, ainda que com emissão de cédula de produto rural, traz também benefícios ao agricultor, ficando a salvo de oscilações excessivas de preço, garantindo o lucro e resguardando- -se, com considerável segurança, quanto ao cumprimento de despesas referentes aos custos de produção, investimentos ou financiamentos.
2. A “ferrugem asiática” na lavoura não é fato extraordinário e imprevisível, visto que, embora reduza a produtividade, é doença que atinge as plantações de soja no Brasil desde 2001, não havendo perspectiva de erradicação a médio prazo, mas sendo possível o seu controle pelo agricultor. Precedentes.
3. A resolução contratual pela onerosidade excessiva reclama superveniência de evento extraordinário, impossível às partes antever, não sendo suficiente alterações que se inserem nos riscos ordinários”.36
Nos arts. 479 e 480, constam medidas asseguradas às partes a fim de evitar a resolução. Eis a redação do primeiro: “A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato”. Quanto ao segundo: “Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”.
Resumem-se os requisitos na seguinte ordem:
I – Prestação de uma das partes que se torna excessivamente onerosa;
II – o aparecimento da excessiva onerosidade em decorrência de um acontecimento imprevisível e extraordinário;
III – não encontrar-se em mora a parte prejudicada.
A distinção, quanto à teoria da imprevisão, está mais em não trazer necessariamente benefício ao outro contraente; e no pertinente à da base do negócio, em exigir a imprevisibilidade.
Na inviabilidade de aplicação do art. 192, § 3º, da Constituição Federal, quando de sua vigência, diante do óbice imposto pela ADIn nº 4, do STF, se socorriam os tribunais da presente teoria, para combater taxas de juros extorsivas: “Entretanto, embora inaplicável o art. 192, § 3º, da CF, a alegação de excessiva onerosidade é, em parte, procedente, pois, pelo demonstrativo contábil de f., verifica-se a prática da capitalização de juros, que, todavia, em contratos como o dos autos, de abertura de crédito em conta corrente, é inadmitida. De fato, o STJ fixou entendimento no sentido de que a capitalização dos juros é permitida apenas nas hipóteses de cédulas de crédito rural, comercial e industrial, consoante Súm. 93. Fora desses casos, descabe o anatocismo, a teor do art. 4º do Dec. 22.626/33 e Súm. 121 do STF”.37
Por último, tem-se o “lucro permitido nos negócios”, limitado a um quinto do valor da prestação, por força da Lei nº 1.521, de 26.12.1951 (Lei da Economia Popular). Este diploma colocou um freio à vantagem nos contratos, não podendo ultrapassar em um quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida.
Com efeito, reza o art. 4º:
“Constitui crime da mesma natureza a usura pecuniária ou real, assim se considerando:
a) cobrar juros, comissões ou descontos percentuais sobre dívida em dinheiro, superiores à taxa permitida por lei; cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada por moeda estrangeira; ou, ainda, emprestar sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito;
b) obter ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida”.
Vêm cominadas penas de detenção e multa aos infratores.
De sorte que, verificada a infração, não se terá como indicador de perdas e danos o incumprimento do contrato.
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