Celso Lafer
Meu ponto de partida para responder à pergunta "O que é a Filosofia do
Direito" é a distinção que faz Kant entre o pensar — voltado para a busca do significado
— e o conhecer— ocupado com o rigor da cognição. Valho-me dessa distinção entre o
pensar (Vernunfi) e o conhecer (Verstand), seguindo a orientação de Hannah Arendt mas
dela me utilizando à maneira de Bobbio.
Trata-se de uma dicotomia, mas não uma dicotomia do gênero excludente, tipo
aut/ant — ora eu penso, ora eu conheço. É uma dicotomia que é o produto, como diria
Miguel Reale, de uma dialética de mútua implicação e polaridade. Penso a partir daquilo
que conheço e conheço levando em conta aquilo que penso.
Conhecer, no nosso campo, é conhecer o Direito Positivo. É a dimensão
técnica sobre a qual já se falou nesse evento. Pensar é parar para pensar o Direito
Positivo. Eu creio que a tarefa da Filosofia do Direito é parar para pensar o que é o Direito
Positivo. Por que se pára para pensar e quem pára para pensar? Quem pára para pensar
são os juristas com interesses filosóficos em função dos problemas colocados pelo Direito
Positivo — problemas que não encontram solução e encaminhamento no âmbito estrito
do Direito Positivo.
A Filosofia do Direito é, assim, o campo dos juristas com interesses filosóficos,
instigados, na sua reflexão, pelos problemas para os quais não encontram solução no
âmbito do Direito Positivo. Por isso a Filosofia do Direito é, como diz Bobbio, obra de
juristas e não de filósofos stricto sensu. Os grandes nomes da Filosofia do Direito do
século XX são uma comprovação dessa afirmação. Basta mencionar Kelsen.
Penso a partir daquilo que conheço e conheço levando em conta aquilo que penso.
Vejo, desse modo, a Filosofia do Direito como uma filosofia da experiência
jurídica e quero, neste momento, realçar a importância epistemológica da experiência.
Hannah Arendt diz na introdução a Entre o passado e o futuro que, numa época de
universais fugidios, a única base para testar conceitos é a própria experiência. Realço,
assim, no contexto desse nosso evento, a importância epistemológica que Miguel Reale
atribui à experiência.
A experiência resulta da interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é
conhecido. Tem a dimensão de pôr à prova, de ensaiar, de testar. A Filosofia do Direito,
como fruto da experiência jurídica, é precisamente esse pôr à prova, esse teste dos
conceitos do Direito Positivo no jogo entre o pensar e o conhecer.
A experiência resulta da interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é
conhecido. Tema dimensão de pôr à prova, de ensaiar, de testar.
A amplitude do campo da Filosofia do Direito é maior ou menor diante da
perspectiva organizadora do jusfilósofo, como diria Ortega y Gasset, que realçou a idéia
da perspectiva como um ponto de vista sobre o mundo . Entendo que neste momento vale
a pena relembrar, na medida em que não pudemos ter a presença dele hoje aqui, o
significado, o alcance do tridimensionalismo jurídico de Miguel Reale — nosso grande
mestre de Filosofia do Direito. Em síntese, Miguel Reale diz que é impossível lidar com a
experiência jurídica sem lidar simultaneamente com os fatos sociais, com os valores e
com as normas. Todas as exposições que foram feitas até agora justamente chamam a
nossa atenção para os fatos, os valores e as normas como parte integranteda experiência
jurídica.
A interdependência existente entre fato, valor e norma permite pensar o Direito,
seja pelo ângulo interno, seja pelo ângulo externo. Em outras palavras, permite lidar com
o Direito como um sistema independente, estudando as normas e a sua inserção no
ordenamento (ângulo interno), sem descurar que é um sistema dependente dos fatos
sociais e dos valores (ângulo externo).
O tridimensionalismo, como uma Filosofia do Direito baseada na experiência
jurídica, contribui para dar um status epistemológico aos procedimentos intelectuais de
que se vale o jurista para comprovar, aplicar e conciliar normas de Direito Positivo. Daí a
sua importância para o entendimento da hermenêutica jurídica, cabendo lembrar que uma
das características da Filosofia do Direito como campo de investigação é o
aprofundamento da metodologia da interpretação. Foi, aliás, o que disseram o professor
Eros e o professor Comparato e também o que realçou o professor Goffredo em seu
texto.
Uma das características da Filosofia do Direito como campo de investigação é o
aprofundamento
da metodologia da interpretação.
O tema da interpretação é um dos grandes temas da reflexão sobre o Direito —
do parar para pensar.
Por isso, na discussão hermenêutica, por excelência, os temas da Filosofia do
Direito se colocam diante dos problemas concretos suscitados pelo Direito Positivo. E é
justamente isso que vou procurar sucintamente discutir hoje, com base na observação
que os princípios gerais permeiam os textos constitucionais. É o caso da Constituição de
1988. Princípios são genéricos em contraste com as regras, que são específicas. E é
precisamente na interpretação e exegese da aplicação dos princípios constitucionais, que
não têm a especificidade das regras, que os grandes temas da Filosofia do Direito se
colocam e que vêm sendo elaborados em função dos problemas colocados para os
juristas à luz da experiência jurídica contemporânea.
Direito" é a distinção que faz Kant entre o pensar — voltado para a busca do significado
— e o conhecer— ocupado com o rigor da cognição. Valho-me dessa distinção entre o
pensar (Vernunfi) e o conhecer (Verstand), seguindo a orientação de Hannah Arendt mas
dela me utilizando à maneira de Bobbio.
Trata-se de uma dicotomia, mas não uma dicotomia do gênero excludente, tipo
aut/ant — ora eu penso, ora eu conheço. É uma dicotomia que é o produto, como diria
Miguel Reale, de uma dialética de mútua implicação e polaridade. Penso a partir daquilo
que conheço e conheço levando em conta aquilo que penso.
Conhecer, no nosso campo, é conhecer o Direito Positivo. É a dimensão
técnica sobre a qual já se falou nesse evento. Pensar é parar para pensar o Direito
Positivo. Eu creio que a tarefa da Filosofia do Direito é parar para pensar o que é o Direito
Positivo. Por que se pára para pensar e quem pára para pensar? Quem pára para pensar
são os juristas com interesses filosóficos em função dos problemas colocados pelo Direito
Positivo — problemas que não encontram solução e encaminhamento no âmbito estrito
do Direito Positivo.
A Filosofia do Direito é, assim, o campo dos juristas com interesses filosóficos,
instigados, na sua reflexão, pelos problemas para os quais não encontram solução no
âmbito do Direito Positivo. Por isso a Filosofia do Direito é, como diz Bobbio, obra de
juristas e não de filósofos stricto sensu. Os grandes nomes da Filosofia do Direito do
século XX são uma comprovação dessa afirmação. Basta mencionar Kelsen.
Penso a partir daquilo que conheço e conheço levando em conta aquilo que penso.
Vejo, desse modo, a Filosofia do Direito como uma filosofia da experiência
jurídica e quero, neste momento, realçar a importância epistemológica da experiência.
Hannah Arendt diz na introdução a Entre o passado e o futuro que, numa época de
universais fugidios, a única base para testar conceitos é a própria experiência. Realço,
assim, no contexto desse nosso evento, a importância epistemológica que Miguel Reale
atribui à experiência.
A experiência resulta da interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é
conhecido. Tem a dimensão de pôr à prova, de ensaiar, de testar. A Filosofia do Direito,
como fruto da experiência jurídica, é precisamente esse pôr à prova, esse teste dos
conceitos do Direito Positivo no jogo entre o pensar e o conhecer.
A experiência resulta da interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é
conhecido. Tema dimensão de pôr à prova, de ensaiar, de testar.
A amplitude do campo da Filosofia do Direito é maior ou menor diante da
perspectiva organizadora do jusfilósofo, como diria Ortega y Gasset, que realçou a idéia
da perspectiva como um ponto de vista sobre o mundo . Entendo que neste momento vale
a pena relembrar, na medida em que não pudemos ter a presença dele hoje aqui, o
significado, o alcance do tridimensionalismo jurídico de Miguel Reale — nosso grande
mestre de Filosofia do Direito. Em síntese, Miguel Reale diz que é impossível lidar com a
experiência jurídica sem lidar simultaneamente com os fatos sociais, com os valores e
com as normas. Todas as exposições que foram feitas até agora justamente chamam a
nossa atenção para os fatos, os valores e as normas como parte integranteda experiência
jurídica.
A interdependência existente entre fato, valor e norma permite pensar o Direito,
seja pelo ângulo interno, seja pelo ângulo externo. Em outras palavras, permite lidar com
o Direito como um sistema independente, estudando as normas e a sua inserção no
ordenamento (ângulo interno), sem descurar que é um sistema dependente dos fatos
sociais e dos valores (ângulo externo).
O tridimensionalismo, como uma Filosofia do Direito baseada na experiência
jurídica, contribui para dar um status epistemológico aos procedimentos intelectuais de
que se vale o jurista para comprovar, aplicar e conciliar normas de Direito Positivo. Daí a
sua importância para o entendimento da hermenêutica jurídica, cabendo lembrar que uma
das características da Filosofia do Direito como campo de investigação é o
aprofundamento da metodologia da interpretação. Foi, aliás, o que disseram o professor
Eros e o professor Comparato e também o que realçou o professor Goffredo em seu
texto.
Uma das características da Filosofia do Direito como campo de investigação é o
aprofundamento
da metodologia da interpretação.
O tema da interpretação é um dos grandes temas da reflexão sobre o Direito —
do parar para pensar.
Por isso, na discussão hermenêutica, por excelência, os temas da Filosofia do
Direito se colocam diante dos problemas concretos suscitados pelo Direito Positivo. E é
justamente isso que vou procurar sucintamente discutir hoje, com base na observação
que os princípios gerais permeiam os textos constitucionais. É o caso da Constituição de
1988. Princípios são genéricos em contraste com as regras, que são específicas. E é
precisamente na interpretação e exegese da aplicação dos princípios constitucionais, que
não têm a especificidade das regras, que os grandes temas da Filosofia do Direito se
colocam e que vêm sendo elaborados em função dos problemas colocados para os
juristas à luz da experiência jurídica contemporânea.
II
Como professor de Direito Internacional que também sou, lembro que adiscussão sobre o papel e a função dos princípios gerais se pôs em primeiro lugar no
âmbito do Direito Internacional Público. Isso porque o estatuto da Corte Permanente de
Justiça Internacional, ex vi do seu art. 38, considerou que são fontes do Direito
Internacional não apenas as regras específicas dos tratados e dos costumes, mas os
princípios gerais do Direito, reconhecidos pelas nações civilizadas.
Aqui estou entrando num tema que o professor Fábio também mencionou,
sobre quais são as fontes do Direito — é o poder, é a sociedade, em síntese, como é que
se lida com as fontes do Direito. É claro que a introdução no Estatuto da Corte, depois da
Primeira Guerra Mundial, de princípios gerais do Direito, representava uma contestação
ao positivismo vigente. Na origem do Estatuto da Corte, dois dos seus elaboradores, Root
e Phillimore, procuraram dar à Corte um certo poder de desenvolver e refinar os princípios
da jurisprudência internacional. Foram, assim, contrários, para lembrar o que o professor
Eros mencionou quando discutiu o Código de Napoleão, a distinção entre a obrigação do
juiz de decidir e a concomitante proibição de interpretar.
Pensaram os formuladores do Estatuto da Corte, em termos de princípios
gerais aceitos, nos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados civilizados. E aí a idéia
era a das analogias com o Direito e, sobretudo, com o Direito Privado Nacional. Vale dizer
que na relação entre ordenamento internacional e os ordenamentos nacionais, caberia a
possibilidade de uma heterointegração normativa. Nesse sentido os princípios gerais
teriam, como lembra Bobbio, uma função de expansão não apenas lógica, mas axiológica
do Direito Internacional.
Essa função de expansão axiológica merece realce, pois é um dos aspectos
importantes da interpretação dos princípios gerais, que também me permite apontar um
tema que diz respeito à lógica jurídica, qual seja, a relação entre a analogia e o princípio
geral do Direito.
Trata-se, como lembra Bobbio, do mesmo tipo de argumentação. É o
procedimento de subsunção de um caso particular a um princípio geral. No caso dos
princípios gerais de Direito, é uma subsunção direta mediante recurso aos princípios
gerais. No caso da analogia, é uma subsunção indireta por meio da semelhança relevante
com outra situação jurídica que permite a construção de um princípio geral. Daí a
distinção feita pelos antigos entre analogia júris (a dos princípios gerais) e analogia legis
(analogia stricto sensu).
Kelsen entende que a inferência por analogia está no campo do mais ou menos
provável. Não é uma inferência lógica, mas um ato de vontade, criador de Direito novo,
válido quando o juiz tem uma delegação do ordenamento para criar Direito novo num
caso concreto.
A analogia júris e a analogia legis tinham, como disse, no Estatuto da Corte,
uma função integrativa e interpretativa do ordenamento jurídico internacional, e os
princípios gerais do Direito representavam tanto a idéia de princípios aceitos pelas
legislações internas quanto os princípios próprios da ordem jurídica internacional que não
necessitavam, para a sua "afirmação, de regras específicas, derivadas dos tratados e dos
costumes. Foi assim que se consolidaram princípios como: pacta sunt servanda; o do
respeito aos direitos adquiridos; o da prescrição liberatória; o da reparação do dano; o do
respeito à coisa julgada; o do estoppel; o princípio da continuidade do Estado,
independentemente da mudança dos governos; a regra do esgotamento dos recursos
internos, antes de se recorrer a instâncias internacionais.
III
Resumindo, para prosseguir: como disse, entendo a Filosofia do Direito comoum campo elaborado por juristas com interesses filosóficos, instigados pelos problemas
colocados pela experiência jurídica. Assim, da mesma maneira que o professor Eros se
valeu da sua experiência no Direito Econômico, eu me vali da minha experiência do
Direito Internacional. Este é relevante pois o Direito Internacional antecipa a grande
discussão contemporânea sobre os princípios gerais desempenhando uma função de
expansão não apenas lógica, mas axiológica do Direito. É o caso da Constituição de 1988
que, como outras constituições modernas, tem grande densidade material que se exprime
por meio dos princípios.
Os princípios não se caracterizam por serem mutuamente excludentes no
plano abstrato, plano em que são compatíveis.
Podem, no entanto, surgir antinomias em casos concretos, não solucionáveis
pelos critérios clássicos de solução de antinomias do tipo lei superior, lei posterior, lei
especial. Como é que se resolve esse tipo de situação? Esse é um tema para a Filosofia
do Direito, como vou exemplificar baseado em minha experiência e que é fruto da relação
entre pensar e conhecer, no trato do art. 4º da Constituição de 1988. Esta estabelece os
princípios constitucionais do marco normativo que rege as relações internacionais do
Brasil.
Esses princípios são padrões de conduta. Têm como função tanto proibir e
limitar quanto promover ou estimular, deixando espaço para o permitir. Na tradição
constitucional brasileira cabe lembrar a Constituição de 1891 — que estabeleceu o
princípio da proibição da guerra de conquista e o princípio do estímulo à arbitragem, ou
seja, o da promoção da solução pacífica de controvérsias — como uma expressão da
vocação pacífica da forma republicana de governo.
Entendo a Filosofia do Direito como um campo elaborado por juristas com interesses
filosóficos, instigados pelos problemas colocados pela experiência jurídica.
Os princípios, como diz Alexy, são mandatos de otimização. Positivam valores.
Os valores, como explica Miguel Reale, têm entre as suas características a
realizabilidade, que é o suporte que tem na realidade e a inexauribilidade, que aponta
para o seu significado de dever ser. Em função dessas duas características, os princípios
são preceitos de intensidade' modulável a serem aplicados na medida do possível e com
diferentes graus de efetivação. A sua aplicação é uma atividade contextualizada, leva em
conta as circunstâncias (o ângulo externo) e requer a convivência e conciliação dos
princípios, num jogo de complementações e restrições recíprocas (o ângulo interno). Tem,
como ponto de partida para a elucidação do sentido, o texto e ao mesmo tempo é o texto
o limite da atividade hermenêutica. Eu estou me referindo aos temas que o professor Eros
mencionou, quando discutiu o Direito posto e o pressuposto.
A Constituição de 1988, em contraste com as anteriores, fez uma significativa
ampliação ratione materiae dos princípios que regem as relações internacionais.
Vocês se lembram que no preâmbulo da Constituição há o compromisso, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica de controvérsias que é relevante na
interpretação do artigo 4º que estipula que a República Federativa do Brasil rege-se, nas
suas relações internacionais, pelos seguintes princípios: independência nacional;
prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção;
igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica de conflitos; repúdio ao
terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
concessão de asilo político. E no seu parágrafo único estabelece que a República
Federativa buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Esses princípios em abstrato não são mutuamente excludentes. Em tese eles
são conciliáveis. Alguns deles fluem do Direito Internacional Público. É o caso da
codificação e do desenvolvimento progressivo, que levou, em 1970, à Declaração Relativa
aos princípios do Direito
Internacional, referente às relações de amizade e cooperação entre os
Estados, em conformidade com a Carta da ONU. São eles: não recorrer ao uso da força
de forma incompatível com os propósitos da Carta; solução pacífica de controvérsias para
não colocar em perigo nem a paz, nem a segurança internacional, nem a justiça; nãointervenção
em assuntos que são de jurisdição interna dos Estados em conformidade com
a Carta; obrigação dos Estados de cooperarem entre si em conformidade com a Carta;
igualdade de direitos e livre determinação dos povos; cumprimento de boa-fé das
obrigações contraídas, em conformidade com a Carta.
Por isso entendo que, sobretudo nesse campo dos princípios do art. 4º, há
interpenetração e complementaridade entre o Direito Internacional Público e o Direito
Constitucional.
Por outro lado, é evidente que na interpretação desses princípios cabe
relacioná-los com outros dispositivos constitucionais que é a vertente do ângulo interno,
ou seja, da inserção da norma no ordenamento. Assim, por exemplo, a defesa da paz (art.
4º, VI) complementa-se com o art. 21, XXIII, que estabelece que toda atividade nuclear
em território nacional somente será admitida para fins pacíficos, mediante aprovação do
Congresso Nacional. Quem é que interpreta esses princípios de relações internacionais?
Em tese eles estão sujeitos a um controle político e a uma fiscalização da sua aplicação
pela sociedade e pelo Congresso, pois constituem o marco normativo da política externa,
que é uma competência do Executivo. Em tese, comportam o controle jurídico pelo
Judiciário, na medida em que ações de política externa se traduzem em normas
suscetíveis de apreciação de constitucionalidade. Na prática, no dia-a-dia, quem
interpreta e aplica esses princípios é o ministro das Relações Exteriores.
IV
Assim, vou discutir um pouco como, exercendo essas funções, em 1992 e em2001-2002, interpretei esses princípios e a eles dei seqüência. Parto do exposto no
prefácio que fiz ao livro de 1994 de Pedro Dallari sobre Constituição e relações
internacionais, que é a sua tese de mestrado da qual fui orientador, no qual, com base na
experiência, discuti esses princípios e a sua aplicação. Em 1992, em minha primeira
experiência ministerial, interpretei o tema de defesa da paz e a idéia de que toda atividade
nuclear somente seria admitida por fins pacíficos, promovendo a revisão do Tratado de
Tlatelolco para permitir a sua efetividade, como o Tratado da Desnuclearização da
América Latina. Subseqüentemente, no governo do presidente Fernando Henrique
Cardoso, participei do processo decisório que levou à adesão ao Tratado de Não-
Proliferação nuclear (TNP) e, como ministro, em 2001-2002, dei realce ao tema da
reivindicação dos países não nucleares que aderiram ao TNP, de obter o cumprimento do
compromisso de uma efetiva desnuclearização, assumido no Tratado pelos países
nucleares.
O princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II) conjugado com o §
2º do art. 5º diz: direitos e garantias expressas na Constituição não excluem outros
decorrentes de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte, levou-me a conduzir, tanto em 1992 quanto em 2001-2002, uma política do direito.
Esta foi a da adesão aos Tratados de Direitos Humanos e aos seus mecanismos de
monitoramento.
O art. 4º, VIII, que trata do repúdio ao racismo no plano internacional, deve ser
interpretado em consonância com o art. 5º, XLII, que, no plano interno, trata da prática do
racismo como um crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos
termos da lei. Foi o que me levou, em 2001-2002, depois do 11 de setembro, a não
aceitar nenhuma atitude a priori em relação à população da Tríplice Fronteira, porque me
pareceu que isso seria uma forma inaceitável de lidar, no caso, com a indispensável
conciliação na ordem interna e na ordem internacional dos princípios da Constituição de
1988.
Da mesma forma, o art. 4º, VIII, repúdio ao terrorismo no plano internacional,
deve ser interpretado em consonância com o art. 5º, XLIII, que, no plano interno, qualifica
o terrorismo como um crime inafiançável, insusceptível de graça ou anistia. Foi esta a
base jurídica da invocação, pelo Brasil, logo após o 11 de setembro, do Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (o Tiar) que acabou criando uma moldura
jurídica de cooperação, compatível com as resoluções da ONU e delimitadora dos nossos
compromissos internacionais, em consonância com a Constituição de 1988.
Nesses exemplos, os princípios foram interpretados e aplicados levando em
conta fato, valor e norma, com apoio em outros dispositivos constitucionais. Entretanto,
também podem ocorrer situações em que os princípios do art. 4º suscitam problemas
mais complexos, levam a antinomias não solucionáveis pelos critérios clássicos de sua
solução ou mediante recurso a outros dispositivos constitucionais. Aí cabe a ponderação e
a hierarquia móvel. Exemplifico com base no peso do fato na interpretação dos princípios.
O parágrafo único do art. 4º estimula o nosso país a promover a integração da
América Latina. Em 1992, interpretei esse dispositivo como sendo a base jurídica para
acelerar a construção do Mercosul. Daí o calendário de Las Lenas que conduziu a essa
aceleração, que foi favorecida pelas circunstâncias econômicas da época. Em 2001 -2002
o problema era o da manutenção do Mercosul em meio a uma crise econômica séria da
Argentina, que teve seus desdobramentos no Uruguai. Por outro lado, com a reunião de
Brasília, de 2000, dos chefes de Estado da América do Sul — importante iniciativa do
presi-dente Fernando Henrique Cardoso —, surgiu a ocasião para novas ações
diplomáticas em relação à região. Daí a idéia-força da integração física da América do
Sul. Assim, nos preparativos para a segunda reunião de cúpula realizada em Guayaquil
em 2002, trabalhou-se muito nessa idéia de fazer a melhor economia da nossa geografia,
que foi a interpretação dada ao parágrafo único do art. 4º, concebido tanto no caso do
Mercosul como no da América do Sul, como etapas, à luz das circunstâncias, do processo
de integração latino-americano.
O valor da integração foi interpretado e aplicado levando-se em conta os fatos
e as distintas possibilidades de atuação. O mesmo pode ser dito em relação ao inciso VI
do art. 4º — defesa da paz. A paz é um valor; e, como todo valor, tem, como mencionado,
componentes da realizabilidade e da inexauribilidade. A capacidade de atuar, para realizar
o valor da paz, é maior para o Brasil na América Latina do que em outras regiões do
mundo. O Brasil teve, por exemplo, na presidência de Fernando Henrique Cardoso, a
capacidade de atuar positivamente no conflito entre o Peru e o Equador. Essa capacidade
de atuar na defesa da paz na América do Sul é maior do que em outras regiões do
mundo. Esse é um dado de fato distinto do que ocorre no conflito do Oriente Médio —
Israel/ Palestinos —, ou na guerra do Iraque onde nossa capacidade de atuação é mais
modesta.
Deve-se, nesses casos, lidar com aquilo que o professor Goffredo falava, que é
a noção de compreensão, de razoabilidade, de ponderação que leva em conta o
adequado e o necessário. Podem, no entanto, surgir antinomias reais e complexas que
colocam o tema da hierarquia móvel. Exemplifico. O art. 4º, IV, fala da não-intervenção, e
o art . 4º, II, na prevalência dos direitos humanos. O atual governo, por exemplo, preferiu,
recentemente, no caso de Cuba, fazer uma ponderação dando mais relevância ao
princípio da não-intervenção do que ao princípio da prevalência dos direitos humanos.
Acho essa ponderação discutível, mas não é o caso de examiná-la
neste momento, pois cabe agora ir encaminhando as conclusões.
O Brasil teve, por exemplo, na presidência de Fernando Henrique Cardoso, a
capacidade de atuar positivamente no conflito entre o Peru e o Equador. Essa
capacidade de atuar na defesa da paz na América do Sul é maior do que em outras
regiões do mundo.
V
Os grandes temas da Filosofia do Direito aparecem na experiência jurídica e, muitoespecialmente, nos dias de hoje, na reflexão sobre a interpretação. Aparecem, por
excelência, quando se discutem os princípios gerais.
Os princípios gerais caracterizam uma Constituição como a nossa. Na interpretação e na
aplicação dos princípios gerais, surgem problemas práticos, para voltar à minha discussão
de que a Filosofia do Direito é o campo dos juristas com interesses filosóficos
confrontados com esses problemas. Não se podem resolver os temas que surgem da
aplicação desses princípios com base em uma visão estrita do ordenamento jurídico. É
necessário levar em conta tanto o ângulo interno da norma e da sua inserção no
ordenamento quanto o ângulo externo, ou seja, os fatos e os valores que exigem
ponderação.
Não se podem resolver os temas que surgem da aplicação desses princípios com base
em uma visão estrita do ordenamento jurídico. E necessário levar em conta tanto o
ângulo interno da norma e da sua inserção no ordenamento quanto o ângulo externo, ou
seja, os fatos e os valores que exigem ponderação.
A ponderação é um exercício de Filosofia do Direito; é um exercício prático de
Filosofia do Direito e o que me permiti muito rapidamente fazer foi uma discussão de
como ministro das Relações Exteriores — parando para pensar — procurei me
desincumbir da responsabilidade de lidar com o art. 4º da Constituição.
Esses princípios precisam ser ponderados e discutidos à luz da situação
concreta. A sua hierarquia é móvel.
Deve-se levar em conta a sistemática constitucional para correlacionar esses
princípios com outros dispositivos da Constituição. Mas é igualmente indispensável
ponderar a aplicação da norma, levando em conta os fatos e os valores, à luz da
conjuntura internacional. Assim, por exemplo, em 1992, a conjuntura internacional, no
imediato pós-Guerra Fria, era positiva e favorável à aplicação do inc. IX do art. 4° —
cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. É esse clima político que
contribuiu para o sucesso da Conferência da ONU para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento — a Rio-92.
Em 2001-2002 esse clima político era negativo, e é isto que explica as
dificuldades da Conferência de Johanesburgo de 2002 — a Rio +10, apesar do nosso
empenho em dar cumprimento ao inc. IX do art. 4º.
É grande o desafio da analogia juris e da analogia legis, que são modalidades de
subsunção semelhantes.
Concluo com uma observação de lógica jurídica sobre as afinidades entre o
juízo diplomático e o juízo jurídico no trato dos princípios gerais. Refiro-me ao
procedimento de subsunção do caso concreto, seja no que diz respeito ao princípio geral,
seja no que diz respeito à analogia, esta última, no caso do juízo diplomático, muito ligada
aos antecedentes diplomáticos. É grande o desafio da analogia júris e da analogia legis,
que são modalidades de subsunção semelhantes, como apontei, lembrando o
ensinamento de Bobbio no início de minha exposição.
Um grande estudioso das relações internacionais, que foi o ex-chanceler
israelense Abba Eban, observa que há riscos na aplicação das analogias e dá alguns
exemplos. Assim, Anthony Eden, na intervenção que conduziu como primeiro-ministro da
Inglaterra no Egito por ocasião da nacionalização do Canal de Suez, em 1956, operou por
analogia com aquilo que foi a posição, errada no entender dele, de Chamberlain em
relação a Hitler em Munique, no final da década de 1930. Mas era uma analogia que não
tinha uma conexão apropriada com a realidade, pois o nacionalismo árabe e a
nacionalização do Canal de Suez empreendida por Nasser não tinham nada a ver com o
expansionismo da Alemanha nazista tal como conduzido por Hitler. Também os
americanos, na guerra do Vietnã, equivocadamente operaram em relação ao Vietnã como
se fosse algo parecido com a guerra da Coréia.
Da mesma maneira, Getúlio procedeu no seu segundo governo, no início da
década de 1950, como se estivesse no seu primeiro governo no início da década de 1940
e procurou, por analogia, operar a relação com os Estados Unidos da mesma forma. Mas
a conjuntura era diferente, pois o dado da relevância estratégica do Brasil para os
Estados Unidos no encaminhamento da Segunda Guerra Mundial não mais existia.
O desafio da subsunção do caso concreto com base na analogia extraída dos
antecedentes diplomáticos e o da verificação da semelhança relevante. Bobbio dá um
exemplo, como sempre esclarecedor na sua precisão. Diz ele: o meu carro, como o do
meu vizinho, é vermelho, mas o carro do meu vizinho tem um desempenho que o meu
não tem. Não tem porque o motor do carro do meu vizinho é mais potente do que o do
meu. A semelhança relevante está, portanto, nos motores e não nas cores.
Não confundir, portanto, as cores com os motores foi o que me norteou no
trato, como ministro em 1992 e em 2001-2002, do marco normativo estabelecido pelo art.
4º da Constituição de 1988. Isso exige, na ponderação dos princípios, a dialética de
mútua implicação e polaridade entre o pensar e o conhecer e representa um bom
exemplo das tarefas da Filosofia do Direito, cujo lastro é dado pela experiência jurídica.
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