quarta-feira, 22 de agosto de 2018

FILOSOFIA DO DIREITO E PRINCÍPIOS GERAIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PERGUNTA "O QUE É A FILOSOFIA DO DIREITO?"

Celso Lafer
Meu ponto de partida para responder à pergunta "O que é a Filosofia do
Direito" é a distinção que faz Kant entre o pensar — voltado para a busca do significado
— e o conhecer— ocupado com o rigor da cognição. Valho-me dessa distinção entre o
pensar (Vernunfi) e o conhecer (Verstand), seguindo a orientação de Hannah Arendt mas
dela me utilizando à maneira de Bobbio.
Trata-se de uma dicotomia, mas não uma dicotomia do gênero excludente, tipo
aut/ant — ora eu penso, ora eu conheço. É uma dicotomia que é o produto, como diria
Miguel Reale, de uma dialética de mútua implicação e polaridade. Penso a partir daquilo
que conheço e conheço levando em conta aquilo que penso.
Conhecer, no nosso campo, é conhecer o Direito Positivo. É a dimensão
técnica sobre a qual já se falou nesse evento. Pensar é parar para pensar o Direito
Positivo. Eu creio que a tarefa da Filosofia do Direito é parar para pensar o que é o Direito
Positivo. Por que se pára para pensar e quem pára para pensar? Quem pára para pensar
são os juristas com interesses filosóficos em função dos problemas colocados pelo Direito
Positivo — problemas que não encontram solução e encaminhamento no âmbito estrito
do Direito Positivo.
A Filosofia do Direito é, assim, o campo dos juristas com interesses filosóficos,
instigados, na sua reflexão, pelos problemas para os quais não encontram solução no
âmbito do Direito Positivo. Por isso a Filosofia do Direito é, como diz Bobbio, obra de
juristas e não de filósofos stricto sensu. Os grandes nomes da Filosofia do Direito do
século XX são uma comprovação dessa afirmação. Basta mencionar Kelsen.
Penso a partir daquilo que conheço e conheço levando em conta aquilo que penso.
Vejo, desse modo, a Filosofia do Direito como uma filosofia da experiência
jurídica e quero, neste momento, realçar a importância epistemológica da experiência.
Hannah Arendt diz na introdução a Entre o passado e o futuro que, numa época de
universais fugidios, a única base para testar conceitos é a própria experiência. Realço,
assim, no contexto desse nosso evento, a importância epistemológica que Miguel Reale
atribui à experiência.
A experiência resulta da interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é
conhecido. Tem a dimensão de pôr à prova, de ensaiar, de testar. A Filosofia do Direito,
como fruto da experiência jurídica, é precisamente esse pôr à prova, esse teste dos
conceitos do Direito Positivo no jogo entre o pensar e o conhecer.
A experiência resulta da interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é
conhecido. Tema dimensão de pôr à prova, de ensaiar, de testar.
A amplitude do campo da Filosofia do Direito é maior ou menor diante da
perspectiva organizadora do jusfilósofo, como diria Ortega y Gasset, que realçou a idéia
da perspectiva como um ponto de vista sobre o mundo . Entendo que neste momento vale
a pena relembrar, na medida em que não pudemos ter a presença dele hoje aqui, o
significado, o alcance do tridimensionalismo jurídico de Miguel Reale — nosso grande
mestre de Filosofia do Direito. Em síntese, Miguel Reale diz que é impossível lidar com a
experiência jurídica sem lidar simultaneamente com os fatos sociais, com os valores e
com as normas. Todas as exposições que foram feitas até agora justamente chamam a
nossa atenção para os fatos, os valores e as normas como parte integranteda experiência
jurídica.
A interdependência existente entre fato, valor e norma permite pensar o Direito,
seja pelo ângulo interno, seja pelo ângulo externo. Em outras palavras, permite lidar com
o Direito como um sistema independente, estudando as normas e a sua inserção no
ordenamento (ângulo interno), sem descurar que é um sistema dependente dos fatos
sociais e dos valores (ângulo externo).
O tridimensionalismo, como uma Filosofia do Direito baseada na experiência
jurídica, contribui para dar um status epistemológico aos procedimentos intelectuais de
que se vale o jurista para comprovar, aplicar e conciliar normas de Direito Positivo. Daí a
sua importância para o entendimento da hermenêutica jurídica, cabendo lembrar que uma
das características da Filosofia do Direito como campo de investigação é o
aprofundamento da metodologia da interpretação. Foi, aliás, o que disseram o professor
Eros e o professor Comparato e também o que realçou o professor Goffredo em seu
texto.
Uma das características da Filosofia do Direito como campo de investigação é o
aprofundamento
da metodologia da interpretação.
O tema da interpretação é um dos grandes temas da reflexão sobre o Direito —
do parar para pensar.
Por isso, na discussão hermenêutica, por excelência, os temas da Filosofia do
Direito se colocam diante dos problemas concretos suscitados pelo Direito Positivo. E é
justamente isso que vou procurar sucintamente discutir hoje, com base na observação
que os princípios gerais permeiam os textos constitucionais. É o caso da Constituição de
1988. Princípios são genéricos em contraste com as regras, que são específicas. E é
precisamente na interpretação e exegese da aplicação dos princípios constitucionais, que
não têm a especificidade das regras, que os grandes temas da Filosofia do Direito se
colocam e que vêm sendo elaborados em função dos problemas colocados para os
juristas à luz da experiência jurídica contemporânea.

II
Como professor de Direito Internacional que também sou, lembro que a
discussão sobre o papel e a função dos princípios gerais se pôs em primeiro lugar no
âmbito do Direito Internacional Público. Isso porque o estatuto da Corte Permanente de
Justiça Internacional, ex vi do seu art. 38, considerou que são fontes do Direito
Internacional não apenas as regras específicas dos tratados e dos costumes, mas os
princípios gerais do Direito, reconhecidos pelas nações civilizadas.
Aqui estou entrando num tema que o professor Fábio também mencionou,
sobre quais são as fontes do Direito — é o poder, é a sociedade, em síntese, como é que
se lida com as fontes do Direito. É claro que a introdução no Estatuto da Corte, depois da
Primeira Guerra Mundial, de princípios gerais do Direito, representava uma contestação
ao positivismo vigente. Na origem do Estatuto da Corte, dois dos seus elaboradores, Root
e Phillimore, procuraram dar à Corte um certo poder de desenvolver e refinar os princípios
da jurisprudência internacional. Foram, assim, contrários, para lembrar o que o professor
Eros mencionou quando discutiu o Código de Napoleão, a distinção entre a obrigação do
juiz de decidir e a concomitante proibição de interpretar.
Pensaram os formuladores do Estatuto da Corte, em termos de princípios
gerais aceitos, nos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados civilizados. E aí a idéia
era a das analogias com o Direito e, sobretudo, com o Direito Privado Nacional. Vale dizer
que na relação entre ordenamento internacional e os ordenamentos nacionais, caberia a
possibilidade de uma heterointegração normativa. Nesse sentido os princípios gerais
teriam, como lembra Bobbio, uma função de expansão não apenas lógica, mas axiológica
do Direito Internacional.
Essa função de expansão axiológica merece realce, pois é um dos aspectos
importantes da interpretação dos princípios gerais, que também me permite apontar um
tema que diz respeito à lógica jurídica, qual seja, a relação entre a analogia e o princípio
geral do Direito.
Trata-se, como lembra Bobbio, do mesmo tipo de argumentação. É o
procedimento de subsunção de um caso particular a um princípio geral. No caso dos
princípios gerais de Direito, é uma subsunção direta mediante recurso aos princípios
gerais. No caso da analogia, é uma subsunção indireta por meio da semelhança relevante
com outra situação jurídica que permite a construção de um princípio geral. Daí a
distinção feita pelos antigos entre analogia júris (a dos princípios gerais) e analogia legis
(analogia stricto sensu).
Kelsen entende que a inferência por analogia está no campo do mais ou menos
provável. Não é uma inferência lógica, mas um ato de vontade, criador de Direito novo,
válido quando o juiz tem uma delegação do ordenamento para criar Direito novo num
caso concreto.
A analogia júris e a analogia legis tinham, como disse, no Estatuto da Corte,
uma função integrativa e interpretativa do ordenamento jurídico internacional, e os
princípios gerais do Direito representavam tanto a idéia de princípios aceitos pelas
legislações internas quanto os princípios próprios da ordem jurídica internacional que não
necessitavam, para a sua "afirmação, de regras específicas, derivadas dos tratados e dos
costumes. Foi assim que se consolidaram princípios como: pacta sunt servanda; o do
respeito aos direitos adquiridos; o da prescrição liberatória; o da reparação do dano; o do
respeito à coisa julgada; o do estoppel; o princípio da continuidade do Estado,
independentemente da mudança dos governos; a regra do esgotamento dos recursos
internos, antes de se recorrer a instâncias internacionais.

III
Resumindo, para prosseguir: como disse, entendo a Filosofia do Direito como
um campo elaborado por juristas com interesses filosóficos, instigados pelos problemas
colocados pela experiência jurídica. Assim, da mesma maneira que o professor Eros se
valeu da sua experiência no Direito Econômico, eu me vali da minha experiência do
Direito Internacional. Este é relevante pois o Direito Internacional antecipa a grande
discussão contemporânea sobre os princípios gerais desempenhando uma função de
expansão não apenas lógica, mas axiológica do Direito. É o caso da Constituição de 1988
que, como outras constituições modernas, tem grande densidade material que se exprime
por meio dos princípios.
Os princípios não se caracterizam por serem mutuamente excludentes no
plano abstrato, plano em que são compatíveis.
Podem, no entanto, surgir antinomias em casos concretos, não solucionáveis
pelos critérios clássicos de solução de antinomias do tipo lei superior, lei posterior, lei
especial. Como é que se resolve esse tipo de situação? Esse é um tema para a Filosofia
do Direito, como vou exemplificar baseado em minha experiência e que é fruto da relação
entre pensar e conhecer, no trato do art. 4º da Constituição de 1988. Esta estabelece os
princípios constitucionais do marco normativo que rege as relações internacionais do
Brasil.
Esses princípios são padrões de conduta. Têm como função tanto proibir e
limitar quanto promover ou estimular, deixando espaço para o permitir. Na tradição
constitucional brasileira cabe lembrar a Constituição de 1891 — que estabeleceu o
princípio da proibição da guerra de conquista e o princípio do estímulo à arbitragem, ou
seja, o da promoção da solução pacífica de controvérsias — como uma expressão da
vocação pacífica da forma republicana de governo.
Entendo a Filosofia do Direito como um campo elaborado por juristas com interesses
filosóficos, instigados pelos problemas colocados pela experiência jurídica.
Os princípios, como diz Alexy, são mandatos de otimização. Positivam valores.
Os valores, como explica Miguel Reale, têm entre as suas características a
realizabilidade, que é o suporte que tem na realidade e a inexauribilidade, que aponta
para o seu significado de dever ser. Em função dessas duas características, os princípios
são preceitos de intensidade' modulável a serem aplicados na medida do possível e com
diferentes graus de efetivação. A sua aplicação é uma atividade contextualizada, leva em
conta as circunstâncias (o ângulo externo) e requer a convivência e conciliação dos
princípios, num jogo de complementações e restrições recíprocas (o ângulo interno). Tem,
como ponto de partida para a elucidação do sentido, o texto e ao mesmo tempo é o texto
o limite da atividade hermenêutica. Eu estou me referindo aos temas que o professor Eros
mencionou, quando discutiu o Direito posto e o pressuposto.
A Constituição de 1988, em contraste com as anteriores, fez uma significativa
ampliação ratione materiae dos princípios que regem as relações internacionais.
Vocês se lembram que no preâmbulo da Constituição há o compromisso, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica de controvérsias que é relevante na
interpretação do artigo 4º que estipula que a República Federativa do Brasil rege-se, nas
suas relações internacionais, pelos seguintes princípios: independência nacional;
prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção;
igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica de conflitos; repúdio ao
terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
concessão de asilo político. E no seu parágrafo único estabelece que a República
Federativa buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Esses princípios em abstrato não são mutuamente excludentes. Em tese eles
são conciliáveis. Alguns deles fluem do Direito Internacional Público. É o caso da
codificação e do desenvolvimento progressivo, que levou, em 1970, à Declaração Relativa
aos princípios do Direito
Internacional, referente às relações de amizade e cooperação entre os
Estados, em conformidade com a Carta da ONU. São eles: não recorrer ao uso da força
de forma incompatível com os propósitos da Carta; solução pacífica de controvérsias para
não colocar em perigo nem a paz, nem a segurança internacional, nem a justiça; nãointervenção
em assuntos que são de jurisdição interna dos Estados em conformidade com
a Carta; obrigação dos Estados de cooperarem entre si em conformidade com a Carta;
igualdade de direitos e livre determinação dos povos; cumprimento de boa-fé das
obrigações contraídas, em conformidade com a Carta.
Por isso entendo que, sobretudo nesse campo dos princípios do art. 4º, há
interpenetração e complementaridade entre o Direito Internacional Público e o Direito
Constitucional.
Por outro lado, é evidente que na interpretação desses princípios cabe
relacioná-los com outros dispositivos constitucionais que é a vertente do ângulo interno,
ou seja, da inserção da norma no ordenamento. Assim, por exemplo, a defesa da paz (art.
4º, VI) complementa-se com o art. 21, XXIII, que estabelece que toda atividade nuclear
em território nacional somente será admitida para fins pacíficos, mediante aprovação do
Congresso Nacional. Quem é que interpreta esses princípios de relações internacionais?
Em tese eles estão sujeitos a um controle político e a uma fiscalização da sua aplicação
pela sociedade e pelo Congresso, pois constituem o marco normativo da política externa,
que é uma competência do Executivo. Em tese, comportam o controle jurídico pelo
Judiciário, na medida em que ações de política externa se traduzem em normas
suscetíveis de apreciação de constitucionalidade. Na prática, no dia-a-dia, quem
interpreta e aplica esses princípios é o ministro das Relações Exteriores.

IV
Assim, vou discutir um pouco como, exercendo essas funções, em 1992 e em
2001-2002, interpretei esses princípios e a eles dei seqüência. Parto do exposto no
prefácio que fiz ao livro de 1994 de Pedro Dallari sobre Constituição e relações
internacionais, que é a sua tese de mestrado da qual fui orientador, no qual, com base na
experiência, discuti esses princípios e a sua aplicação. Em 1992, em minha primeira
experiência ministerial, interpretei o tema de defesa da paz e a idéia de que toda atividade
nuclear somente seria admitida por fins pacíficos, promovendo a revisão do Tratado de
Tlatelolco para permitir a sua efetividade, como o Tratado da Desnuclearização da
América Latina. Subseqüentemente, no governo do presidente Fernando Henrique
Cardoso, participei do processo decisório que levou à adesão ao Tratado de Não-
Proliferação nuclear (TNP) e, como ministro, em 2001-2002, dei realce ao tema da
reivindicação dos países não nucleares que aderiram ao TNP, de obter o cumprimento do
compromisso de uma efetiva desnuclearização, assumido no Tratado pelos países
nucleares.
O princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II) conjugado com o §
2º do art. 5º diz: direitos e garantias expressas na Constituição não excluem outros
decorrentes de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte, levou-me a conduzir, tanto em 1992 quanto em 2001-2002, uma política do direito.
Esta foi a da adesão aos Tratados de Direitos Humanos e aos seus mecanismos de
monitoramento.
O art. 4º, VIII, que trata do repúdio ao racismo no plano internacional, deve ser
interpretado em consonância com o art. 5º, XLII, que, no plano interno, trata da prática do
racismo como um crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos
termos da lei. Foi o que me levou, em 2001-2002, depois do 11 de setembro, a não
aceitar nenhuma atitude a priori em relação à população da Tríplice Fronteira, porque me
pareceu que isso seria uma forma inaceitável de lidar, no caso, com a indispensável
conciliação na ordem interna e na ordem internacional dos princípios da Constituição de
1988.
Da mesma forma, o art. 4º, VIII, repúdio ao terrorismo no plano internacional,
deve ser interpretado em consonância com o art. 5º, XLIII, que, no plano interno, qualifica
o terrorismo como um crime inafiançável, insusceptível de graça ou anistia. Foi esta a
base jurídica da invocação, pelo Brasil, logo após o 11 de setembro, do Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (o Tiar) que acabou criando uma moldura
jurídica de cooperação, compatível com as resoluções da ONU e delimitadora dos nossos
compromissos internacionais, em consonância com a Constituição de 1988.
Nesses exemplos, os princípios foram interpretados e aplicados levando em
conta fato, valor e norma, com apoio em outros dispositivos constitucionais. Entretanto,
também podem ocorrer situações em que os princípios do art. 4º suscitam problemas
mais complexos, levam a antinomias não solucionáveis pelos critérios clássicos de sua
solução ou mediante recurso a outros dispositivos constitucionais. Aí cabe a ponderação e
a hierarquia móvel. Exemplifico com base no peso do fato na interpretação dos princípios.
O parágrafo único do art. 4º estimula o nosso país a promover a integração da
América Latina. Em 1992, interpretei esse dispositivo como sendo a base jurídica para
acelerar a construção do Mercosul. Daí o calendário de Las Lenas que conduziu a essa
aceleração, que foi favorecida pelas circunstâncias econômicas da época. Em 2001 -2002
o problema era o da manutenção do Mercosul em meio a uma crise econômica séria da
Argentina, que teve seus desdobramentos no Uruguai. Por outro lado, com a reunião de
Brasília, de 2000, dos chefes de Estado da América do Sul — importante iniciativa do
presi-dente Fernando Henrique Cardoso —, surgiu a ocasião para novas ações
diplomáticas em relação à região. Daí a idéia-força da integração física da América do
Sul. Assim, nos preparativos para a segunda reunião de cúpula realizada em Guayaquil
em 2002, trabalhou-se muito nessa idéia de fazer a melhor economia da nossa geografia,
que foi a interpretação dada ao parágrafo único do art. 4º, concebido tanto no caso do
Mercosul como no da América do Sul, como etapas, à luz das circunstâncias, do processo
de integração latino-americano.
O valor da integração foi interpretado e aplicado levando-se em conta os fatos
e as distintas possibilidades de atuação. O mesmo pode ser dito em relação ao inciso VI
do art. 4º — defesa da paz. A paz é um valor; e, como todo valor, tem, como mencionado,
componentes da realizabilidade e da inexauribilidade. A capacidade de atuar, para realizar
o valor da paz, é maior para o Brasil na América Latina do que em outras regiões do
mundo. O Brasil teve, por exemplo, na presidência de Fernando Henrique Cardoso, a
capacidade de atuar positivamente no conflito entre o Peru e o Equador. Essa capacidade
de atuar na defesa da paz na América do Sul é maior do que em outras regiões do
mundo. Esse é um dado de fato distinto do que ocorre no conflito do Oriente Médio —
Israel/ Palestinos —, ou na guerra do Iraque onde nossa capacidade de atuação é mais
modesta.
Deve-se, nesses casos, lidar com aquilo que o professor Goffredo falava, que é
a noção de compreensão, de razoabilidade, de ponderação que leva em conta o
adequado e o necessário. Podem, no entanto, surgir antinomias reais e complexas que
colocam o tema da hierarquia móvel. Exemplifico. O art. 4º, IV, fala da não-intervenção, e
o art . 4º, II, na prevalência dos direitos humanos. O atual governo, por exemplo, preferiu,
recentemente, no caso de Cuba, fazer uma ponderação dando mais relevância ao
princípio da não-intervenção do que ao princípio da prevalência dos direitos humanos.
Acho essa ponderação discutível, mas não é o caso de examiná-la
neste momento, pois cabe agora ir encaminhando as conclusões.
O Brasil teve, por exemplo, na presidência de Fernando Henrique Cardoso, a
capacidade de atuar positivamente no conflito entre o Peru e o Equador. Essa
capacidade de atuar na defesa da paz na América do Sul é maior do que em outras
regiões do mundo.

V
Os grandes temas da Filosofia do Direito aparecem na experiência jurídica e, muito
especialmente, nos dias de hoje, na reflexão sobre a interpretação. Aparecem, por
excelência, quando se discutem os princípios gerais.
Os princípios gerais caracterizam uma Constituição como a nossa. Na interpretação e na
aplicação dos princípios gerais, surgem problemas práticos, para voltar à minha discussão
de que a Filosofia do Direito é o campo dos juristas com interesses filosóficos
confrontados com esses problemas. Não se podem resolver os temas que surgem da
aplicação desses princípios com base em uma visão estrita do ordenamento jurídico. É
necessário levar em conta tanto o ângulo interno da norma e da sua inserção no
ordenamento quanto o ângulo externo, ou seja, os fatos e os valores que exigem
ponderação.
Não se podem resolver os temas que surgem da aplicação desses princípios com base
em uma visão estrita do ordenamento jurídico. E necessário levar em conta tanto o
ângulo interno da norma e da sua inserção no ordenamento quanto o ângulo externo, ou
seja, os fatos e os valores que exigem ponderação.
A ponderação é um exercício de Filosofia do Direito; é um exercício prático de
Filosofia do Direito e o que me permiti muito rapidamente fazer foi uma discussão de
como ministro das Relações Exteriores — parando para pensar — procurei me
desincumbir da responsabilidade de lidar com o art. 4º da Constituição.
Esses princípios precisam ser ponderados e discutidos à luz da situação
concreta. A sua hierarquia é móvel.
Deve-se levar em conta a sistemática constitucional para correlacionar esses
princípios com outros dispositivos da Constituição. Mas é igualmente indispensável
ponderar a aplicação da norma, levando em conta os fatos e os valores, à luz da
conjuntura internacional. Assim, por exemplo, em 1992, a conjuntura internacional, no
imediato pós-Guerra Fria, era positiva e favorável à aplicação do inc. IX do art. 4° —
cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. É esse clima político que
contribuiu para o sucesso da Conferência da ONU para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento — a Rio-92.
Em 2001-2002 esse clima político era negativo, e é isto que explica as
dificuldades da Conferência de Johanesburgo de 2002 — a Rio +10, apesar do nosso
empenho em dar cumprimento ao inc. IX do art. 4º.
É grande o desafio da analogia juris e da analogia legis, que são modalidades de
subsunção semelhantes.
Concluo com uma observação de lógica jurídica sobre as afinidades entre o
juízo diplomático e o juízo jurídico no trato dos princípios gerais. Refiro-me ao
procedimento de subsunção do caso concreto, seja no que diz respeito ao princípio geral,
seja no que diz respeito à analogia, esta última, no caso do juízo diplomático, muito ligada
aos antecedentes diplomáticos. É grande o desafio da analogia júris e da analogia legis,
que são modalidades de subsunção semelhantes, como apontei, lembrando o
ensinamento de Bobbio no início de minha exposição.
Um grande estudioso das relações internacionais, que foi o ex-chanceler
israelense Abba Eban, observa que há riscos na aplicação das analogias e dá alguns
exemplos. Assim, Anthony Eden, na intervenção que conduziu como primeiro-ministro da
Inglaterra no Egito por ocasião da nacionalização do Canal de Suez, em 1956, operou por
analogia com aquilo que foi a posição, errada no entender dele, de Chamberlain em
relação a Hitler em Munique, no final da década de 1930. Mas era uma analogia que não
tinha uma conexão apropriada com a realidade, pois o nacionalismo árabe e a
nacionalização do Canal de Suez empreendida por Nasser não tinham nada a ver com o
expansionismo da Alemanha nazista tal como conduzido por Hitler. Também os
americanos, na guerra do Vietnã, equivocadamente operaram em relação ao Vietnã como
se fosse algo parecido com a guerra da Coréia.
Da mesma maneira, Getúlio procedeu no seu segundo governo, no início da
década de 1950, como se estivesse no seu primeiro governo no início da década de 1940
e procurou, por analogia, operar a relação com os Estados Unidos da mesma forma. Mas
a conjuntura era diferente, pois o dado da relevância estratégica do Brasil para os
Estados Unidos no encaminhamento da Segunda Guerra Mundial não mais existia.
O desafio da subsunção do caso concreto com base na analogia extraída dos
antecedentes diplomáticos e o da verificação da semelhança relevante. Bobbio dá um
exemplo, como sempre esclarecedor na sua precisão. Diz ele: o meu carro, como o do
meu vizinho, é vermelho, mas o carro do meu vizinho tem um desempenho que o meu
não tem. Não tem porque o motor do carro do meu vizinho é mais potente do que o do
meu. A semelhança relevante está, portanto, nos motores e não nas cores.
Não confundir, portanto, as cores com os motores foi o que me norteou no
trato, como ministro em 1992 e em 2001-2002, do marco normativo estabelecido pelo art.
4º da Constituição de 1988. Isso exige, na ponderação dos princípios, a dialética de
mútua implicação e polaridade entre o pensar e o conhecer e representa um bom
exemplo das tarefas da Filosofia do Direito, cujo lastro é dado pela experiência jurídica.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Uma evolução histórica do Direito.

O direito se revela na história. Por meio dela é que se entende que variados fenômenos foram chamados por direito, nos tempos mais diversos, podendo a partir daí estabelecer as semelhanças e diferenças entre eles. Ao mesmo tempo, a história é a manifestação das relações de poder, dominação, exploração, ordem, ideologias, valores e lutas que dão sentido ao direito. O direito é também um dos constituintes da história, mas é a história que permite entender o direito.
Se analisarmos o direito historicamente, veremos, no passado, estruturas que são chamadas por jurídicas e que são bastante diferentes das nossas atuais. Basta pensarmos num grande exemplo. O Direito Romano, o mais destacado do passado, é, em grande medida, um direito muito peculiar, numa organização política que não é igual aos Estados modernos, e onde a força impera acima das leis, e não só por meio delas. Do mesmo modo, o feudalismo tem estruturas políticas, sociais e jurídicas bastante diversas das nossas. O modelo de direito atual só vai se formar a partir da Idade Moderna, com o surgimento dos Estados modernos, com a estruturação de uma sociedade capitalista, que se assenta em formas sociais específicas. Por isso, as sociedades que são pré-capitalistas têm outras formas de direito, que organizam relações diversas das nossas atuais, podendo-se até dizer que, em geral, essas sociedades sequer conheceram o direito, no sentido moderno da palavra.
As origens históricas do direito

O mundo moderno inaugura uma nova forma de organização econômica social e institucional que persiste até a atualidade, o capitalismo. O direito em sociedades pré-modernas tem características bem distintas das nossas. Ainda que alguns povos tenham se estruturado comercialmente, não chegaram a uma estrutura plenamente capitalista.
A estrutura social da antiguidade faz com que o seu direito seja, na verdade, uma forma de dominação direta. A escravidão é um vínculo de domínio direto do senhor em relação ao escravo. Se pensarmos no poder do paterfamilias, ele tem a característica de um poder absoluto. Vale dizer, o paterfamilias não tem regras estatais que limitem seu poder sobre seus subordinados. Nas mais antigas sociedades, os vínculos de parentesco ou de comunidade excluem o diverso, o estranho, o estrangeiro, o mais fraco, subjugando-os, escravizando-os. Essa relação é de domínio físico, envolve a brutalidade e não regras jurídicas, sendo determinada muitas vezes pela posse da terra ou pela capacidade de guerrear.
As ordens sociais primitivas não têm, portanto, semelhança com as formas de dominação modernas. A dominação antiga tem um caráter direto, exercendo-se pela força ou pela posse direta da terra. Poderíamos ilustrar essas relações com a seguinte regra de dominação: senhor escravo; ou, então: senhor servo. Um domina diretamente o outro. Quando perde o domínio, acaba a relação de exploração. No passado, ninguém conserva o direito de ser senhor quando sua força termina.
Mas, no escravagismo, o mando direto do senhor sobre o servo podia-se construir também junto com uma justificativa edulcorada, que não revelava a verdade de suas causas sociais. Em alguns povos, dizia-se que o senhor manda no escravo porque Deus o quis. As explicações míticas ou religiosas serviram, muitas vezes, como legitimação da ordem de dominação. Por isso, pode-se ver na Bíblia, por exemplo, Javé fazendo uma aliança com o povo hebreu, dando-lhe favoritismo, e o povo hebreu dizendo que era seu direito fazer a guerra contra o estrangeiro para garantir seu território sagrado, ou então que tinha o direito de esperar os favores de Javé.
Mas conforme a organização social do mundo antigo vai se tornando complexa, o direito começa a aparecer como um fenômeno próprio no meio de tantos outros fenômenos sociais, O direito deixa de ser um produto resultante da moral, da religião ou dos mitos, e passa a ser uma estrutura própria de explicações e legitimações do domínio. Nas sociedades antigas que foram mais estruturadas, como a grega e a romana, buscou-se em geral compreender o direito como uma esfera própria, com suas regras e princípios, a partir dos quais fosse possível uma organização social.

Os gregos antigos já especulavam, racionalmente, a respeito do que seria o justo, produzindo então uma filosofia sobre o tema. Os romanos, que nem tanto especulavam sobre O que seria o justo, buscaram diretrizes jurídicas para a decisão dos problemas práticos que se lhes apresentavam. Daí um caráter mais concreto e menos especulativo do direito romano, que buscava se adaptar às necessidades dos conflitos na prática.
No entanto, mesmo o direito romano, que tinha uma estrutura voltada à resol ução prática dos conflitos concretos entre os seus cidadãos, não apresenta um direito como nós o conhecemos modernamente. As regras do direito romano não operam a partir das figuras jurídicas modernas, como sujeito de direito e direito subjetivo, e não são estatais, isto é, perpassadas por um poder político apartado do domínio econômico e físico direto das partes. Pelo contrário, elas se vinculam a uma série de rituais míticos, sagrados, e mesmo aquilo que pareceria representar uma intervenção estatal, como a atividade dos pretores, é uma maneira artesanal de resolver conflitos. Não se trata de uma aplicação automática e impessoalizada de regras estatais, mas sim de uma resolução arbitrária de cada caso tendo em vista suas peculiaridades e seus reclames. O poder do julgador é variável conforme a própria afirmação dos senhores. Na verdade, não há um Estado romano como há um Estado moderno. O pretor pode ser alguém da confiança das partes, em geral uma pessoa mais velha, mais sábia. Alguém poderia dizer que o pretor se parece com um juiz moderno, mas outros poderiam dizer também que ele se parece com um pai resolvendo uma briga de dois filhos, ou com um líder religioso que resolvesse uma questão entre seus fiéis. Tal dificuldade de identificação da figura do julgador do passado se dá porque o Estado, como algo isolado da família e da religião, não existiu na antiguidade.

Por não haver uma instancia jurídica separada do resto da sociedade antiga, dizia o jurista Celso, definindo o direito no Digesto, quejus est ars boni et aequi (o direito é a arte do bem e da equidade). Os romanos entenderiam a sua atividade muito mais como arte do que como técnica, ao contrário da estrutura moderna do direito. E importa ressaltar ainda, no caso do Direito Romano, que não havia uma teoria geral sobre as técnicas jurídicas. Por sobre qualquer técnica reiterada, há o acaso do poder que se sustenta pela força.
O Direito Romano tomou o vulto que teve no mundo antigo devido às peculiar idades da sociedade romana, um império com alto grau de exploração de outros povos e sociedades, sustentado numa rica economia escravagista. O comércio, que possibilitava a troca de produtos dos cidadãos romanos, passou a ensejar uma série de relações jurídicas que outros povos não conheceram. Por isso, comparada a outras sociedades antigas, Roma conheceu mais figuras incipientes de transações jurídicas que as demais. Mas, mesmo essas figuras tipicamente romanas, como os seus contratos, não são estruturadas do mesmo modo que as relações jurídicas do direito moderno. Nelas ainda reside um caráter parcial, faltando-lhe formas estruturais como a subjetividade portadora de direitos ou uma universalidade da reprodução de procedimentos, que surgirá apenas como correlata da própria universalidade da reprodução do capital.
No mundo medieval também não houve uma organização jurídica autônoma e relativamente independente do próprio mando do senhor feudal. A sociedade feudal muito pouco dependeu de tipos jurídicos para sua organização. A dominação dos senhores feudais dava-se, muito mais, com base na pura vontade senhorial que se impunha em face da vassalagem, na tradição, no domínio exclusivo e hereditário da terra. O vínculo de exploração feudal se valia, ainda, de argumentos religiosos, como o da vontade de Deus de que o senhor e o servo assim se mantivessem, e, num plano geral, o que se queira chamar por direito medieval acabava por ser, então, uma forma de raciocínio religioso a benefício dessa dominação.
O mundo antigo e o mundo medieval não conheceram estruturas jurídicas como as modernas. Não havia elementos como o Estado, a circulação mercantil, a exploração do trabalho de maneira assalariada, que distinguem e formam o direito moderno. Pelo contrário, em sociedades de economia escravagista ou feudal o que mais se verifica é o domínio direto, de senhor para escravo, de senhor para servo, do chefe da tribo ou do grupo em relação aos seus. A força física, a violência bruta, a guerra, a tradição, a religião, os mitos, a posse direta da terra, são eles que fazem o papel daquilo que modernamente chamamos por direito.

O direito moderno

Na Idade Moderna surge, pela primeira vez, uma organização jurídica do tipo que conhecemos até a atualidade. Na verdade, com o fim do feudalismo, vai acabando o mando direto do senhor sobre o servo e entram em seu lugar as atividades tipicamente burguesas, como a compra e venda. Dá-se início, então, a uma estrutura econômica de tipo capitalista.
Constituem-se, nesta época, vários fenômenos sociais que estão intimamente relacionados. Para que se realize a atividade mercantil e se desenvolva a nascente classe burguesa, é preciso que haja territórios livres e unificados que facilitem o comércio, além da necessidade de existir um ente que garanta as relações comerciais dos burgueses. Surge então a figura do Estado moderno, que unifica os territórios feudais e começa a criar legislações, chamando a si o poder de decidir sobre os conflitos sociais.
A atividade mercantil começa a criar mecanismos novos para seu desenvolvimento. As suas ferramentas institucionais serão à base do moderno direito. Basta lembrar, como exemplo, que o comércio dos burgueses italianos fez surgir os títulos de crédito, como as letras de câmbio. Ao mesmo tempo, desenvolveram-se as modalidades dos Contratos, possibilitando o surgimento de um direito privado.
Vai se notar, desde o princípio, uma diferença fundamental entre a atividade capitalista e a atividade feudal ou escravagista. Enquanto essas últimas são explorações diretas, que dependem da força, da violência, da religião ou da tradição, a atividade capitalista, pelo contrário, é sempre uma exploração indireta. Para que os negócios sejam feitos é preciso a existência de um terceiro, que não seja nem o comprador e nem o vendedor, e que garanta que o produto seja entregue de um para outro e Seja pago o valor devido. Ora, este terceiro, que não é nenhuma das partes, mas que garantirá o capital e o lucro que venha do contrato é o Estado institucionalizado juridicamente, entrelaçado à forma jurídica que faz de cada qual um sujeito de direito. Ele estaria acima de qualquer particular, teria poder sobre os indivíduos, obrigaria a todos e executaria os contratos que não foram cumpridos.
Claro está que o Estado moderno surge porque as relações mercantis capitalistas demandam uma série de aparatos técnicos, institucionais e formais que estão diretamente relacionados a um ente político e jurídico distinto dos próprios burgueses. O Estado, no capitalismo, não é um terceiro qualquer entre duas partes:
é o Estado, institucionalizado juridicamente, que faz de cada qual um sujeito de direito, que lhe dá, formalmente, direitos e deveres. Assim sendo, ainda que tenha havido instâncias políticas no passado que pudessem ser parecidas com o Estado moderno, elas não se assentavam, no entanto, na esfera da circulação mercantil capitalista, e, por isso, eram terceiros que funcionavam como intermediários entre partes sem lhes emprestar uma lógica autônoma. No passado, o que se queria chamar de Estado mandava diretamente, por conta própria, nos particulares, ou então nem mandava soberanamente, dado que sua força adviria de uma concessão dos senhores. No capitalismo, o Estado moderno se estrutura a partir da própria lógica mercantil, que faz de toda pessoa um sujeito de direito, a vender-se no mercado sob as garantias da chancela estatal. A forma política estatal se apresenta entrelaçada à forma jurídica, e ambas as formas são específicas do capitalismo.
Por isso, desde o início, onde há capitalismo há também a necessidade do Estado, como elemento intermediador das suas atividades econômicas, garantindo suas transações. Não bastasse o comércio, o Estado é fundamental também para a exploração do trabalho. No capitalismo, o trabalhador não é levado ao trabalho como no feudalismo ou no escravagismo, pela impossibilidade de outros meios ou pela força. Não é a coação física que o obriga, mas o contrato de trabalho. Devido às suas necessidades e a sua condição proletária, o trabalhador vende sua força de trabalho ao capital, mas o faz assumindo uma obrigação, um contrato de trabalho, que, ao contrário da escravidão, não se impôs pela coerção física, mas sim por meio de sua deliberação pessoal. Será o contrato de trabalho que assegurara este vínculo, O direito, portanto, é essencial tanto ao comércio quanto à exploração do trabalho, os dois alicerces fundamentais do capitalismo.
Ao contrário das dominações pré-capitalistas, a dominação capitalista é feita sempre por um intermediário, o direito. É por meio de suas formas que as relações sociais do capital se estabelecem. Vejamos as suas modalidades principais, a mercantil e a produtiva. Na exploração mercantil: vendedor —‘ contrato mercantil assegurado pelo direito estatal —. comprador. Na exploração produtiva: capitalista
contrato de trabalho
assegurado pelo direito estatal -. trabalhador. Nessas duas típicas modalidades da exploração capitalista, só é possível a dominação porque o direito assegura suas relações e a propriedade privada, além de ter estabelecido a forma de sujeito de direito às partes.
Quanto mais forte o Estado, mais ele tem condições de se sobrepor a cada um dos burgueses e fazer cumprir, pois, os contratos entre os próprios burgueses. Se o Estado tem um grande território, isto possibilita a um burguês fazer negócio em qualquer parte desse espaço porque em qualquer local o Estado o garantirá. Por isso, o Estado, sustentando o direito, ainda que faça algumas normas contra determinados interesses burgueses, é sempre uma organização que satisfaz aos interesses da lógica geral da burguesia.
No início da Idade Moderna, com o Absolutismo, o Estado era dominado pela nobreza e pelo monarca de modo incontrastável. Nesse primeiro momento do capitalismo, embora o Estado já funcionasse como garantidor dos contratos, porque já se impunha como poder soberano, não buscava ainda respeitar e executar todas as regras contratuais burguesas, mas, fundamentalmente, garantir privilégios para a nobreza, que então se opunha aos burgueses. Por isso as revoluções burguesas, como a Revolução Francesa, lutaram pelo fim do Absolutismo, para, em seu lugar, declarar os direitos universais do homem e do cidadão. Quando o Estado passasse a respeitar direitos iguais a todos, ele não mais privilegiaria os nobres e, a partir daí, tratando igualmente a todos, estaria na prática privilegiando a burguesia, porque todos estariam igualmente obrigados a respeitar os contratos e um horizonte econômico, cultural e político de uma classe agora dominante.
Esse Estado que não age de acordo com os mandamentos do rei, e que imponha regras que teoricamente valeriam para todos, “universais”, é chamado costumeiramente de Estado de Direito, porque ele legisla e julga, ou seja, faz o direito, mas ele, Estado, também se submete ao seu próprio direito. Neste caso, diz-se que os governantes do Estado não são absolutistas, mas se encontram sob as leis. Essa ideia de um Estado de Direito no qual as leis governam os homens e não o contrário começa a se expressar na filosofia do direito a partir do século XVIII, no Iluminismo, em autores como Montesquieu. Essa teoria é de fundamental importância para o tipo de organização social desejada pela burguesia.
O pano de fundo para que o direito se sobreponha à vontade dos reis e senhores feudais é a própria chegada do mundo moderno ao circuito universal das trocas, quando a própria exploração do trabalho passa a ser contratual. Nesse momento, os trabalhadores passam a estruturar suas relações sociais sob forma contratual, tornando-se, então, sujeitos de direito. A chegada ao vínculo contratual nas relações de produção estabelece a plenitude do circuito das relações sociais capitalistas, dando-lhe sua forma e figuras fundamentais.
A partir do momento em que a burguesia toma o poder nos Estados europeus, como na França do final do século XVIII em diante, o Estado será então, definitivamente, o elemento garantidor dos interesses capitalistas. Se todos respeitarem as leis, os contratos serão cumpridos e o Estado executará os que não os cumprirem. Para que os particulares se obriguem plenamente uns aos outros nos contratos, o Estado burguês passa a legislar a respeito dos vínculos contratuais, determinando suas formas, seus procedimentos. É no início do século XIX que surgem as primeiras grandes legislações a respeito dos contratos e do direito privado, sob a forma de códigos, principalmente o Código Civil, que trata de assuntos de interesse burguês. O Código Civil francês, promulgado por Napoleão, é de 1804, e, desde lá, outros Estados também promulgaram suas leis, garantindo e regulamentando os contratos.
As legislações do século XIX refletem o estabelecimento de sociedades que se fundam nas relações de produção contratuais e na mercadoria como seu esteio. A forma jurídica contratual e da individualidade portadora de direitos é correlata à forma mercantil. No entanto, como no século XIX tais formas jurídicas passam a ser anunciadas tecnicamente, o jurista passa a tratar do direito na sua face imediata, olvidando-se de que o surgimento da técnica corresponde a determinadas estruturas das relações sociais.
A partir do século XIX, o Estado, dominado pela burguesia, começa a regulamentar exaustivamente, por meio das suas leis, o interesse burguês e as formas de exploração capitalistas. Por isso que desde o século XIX começa a haver, no pensamento jurídico uma insistente proposta de se entender o direito apenas como um conjunto de normas postas pelo Estado, chamando-se este movimento de compreensão do direito de positivismo jurídico ou juspositivismo.
A ideologia do positivismo jurídico é sempre muito interessante às classes dominantes, porque apregoa o cumprimento da ordem imposta pelo Estado sem contestações estruturais. As classes burguesas controlam o Estado e estipulam por meio das normas estatais os seus interesses. Por isso a ideologia das classes dominantes começa a apregoar que todas as regras a serem seguidas pela sociedade deverão ser apenas as regras postas pelo Estado. Essa ideologia, chamada de positivismo (a palavra positivismo vem de “posto”, ou seja, a lei imposta pelo Estado), não dá margem à contestação da ordem, sendo eminentemente Conservadora e, portanto, favorável aos interesses burgueses.
Com o surgimento dos grandes códigos que tratam dos interesses burgue5 como os códigos civis, a partir do século XIX, o mundo ocidental começa a trabalhar com o direito de maneira peculiar. O direito não será mais entendido Como uma especulação sobre o que é mais justo, nem como uma arte de resolver conflitos concretos, mas, sim, como um conjunto de instituições e normas (que então já são até códigos, dadas sua complexidade) posto pelo Estado e garantido por ele. Assim, para o jurista trabalhar com o direito, não seria mais necessário um questionamento sobre o que seria o justo ou qual a arte mais correta para a aplicação das leis. Bastaria, a partir daí, a técnica de manejar as leis estatais, sabendo entendê-las umas relacionadas com as outras. O direito moderno acaba reduzido, então, a uma técnica.
O mundo contemporâneo irá acentuar esse tipo de organização do direito. Sendo tomado apenas no seu aspecto positivo (posto pelo Estado), o direito fica reduzido a um mero entendimento técnico a respeito de como operacionalizar essas normas estatais. Quando Hans Kelsen, no século XX, escreve uma marcante e famosa obra, a Teoria pura do Direito, estará propondo estudar o direito sem nenhuma interferência de dados sociais, históricos, valorativos, ideológicos, restando, apenas, uma análise das normas estatais. Essa sua teoria leva ao máximo todo um movimento histórico que fez do direito uma mera técnica, em beneficio da ordem e da dominação.
A reconfiguração histórica do fenômeno jurídico

O estudo da história contribui para observar que, a depender das estruturas sociais, coisas distintas foram chamadas por direito. A técnica jurídica moderna é o nosso direito. Mas o mundo do passado considerava o direito algo próximo de uma sabedoria religiosa, O futuro, para além do capitalismo, pode considerar por jurídicos outros fenômenos que não os nossos técnicos. Não há o fenômeno jurídico em si, fora da história; há manifestações que foram consideradas jurídicas de modo distinto, ao variar da história.
As sociedades pré-capitalistas não conseguem separar uma forma jurídica da dominação direta dos senhores. As eventuais diretrizes ou os julgamentos que se façam sem a vontade direta do senhorio, no passado, são ocasionais, dependentes de valores religiosos ou morais. As relações sociais de produção do passado não passam por vínculos de direito, mas sim por vínculos de força ou vassalagem.
Daí que a reflexão sobre o direito antigo o torna geograficamente vo1atil. Para a proposição dos filósofos, o direito ocuparia um local próximo a uma reflexão ideal sobre a distribuição dos bens. Para os religiosos, o direito seria a emanação da vontade dos deuses.
Num dos maiores clássicos do pensamento jurídico de toda a história, a Ética a Nicômaco, Aristóteles, chamado a situar o campo do direito e da justiça, identificou esse campo com a regra de dar a cada qual o que é seu. Não na norma nem em Deus, mas na distribuição dos bens sociais, buscava Aristóteles situar o problema do direito e da justiça. Para essa tradição clássica que perpassou o Direito Romano e que na Idade Media foi ate vista de algum modo, por exemplo, no pensamento de São Tomás de Aquino o direito e a justiça tratavam diretamente das coisas, de dar, ou seja, a geografia do direito dizia respeito à distribuição dos bens.
A noção do direito como a justeza nas coisas foi a proposição de Aristóteles numa sociedade pré-capitalista. Hoje, podemos dizer que Aristóteles, por falar de uma sociedade em modo de produção escravista, como era o caso da sociedade grega, não tenha alcançado uma boa medida naquilo que imaginava fosse uma justa distribuição dos bens entre os atenienses. Os escravos ficavam de fora dessa distribuição. Mas, ainda que discordemos do conteúdo do que sena dado como justo, resta o fato de que a questão do direito antigo girava em tomo desse ato de dar, de distribuir, falando diretamente das coisas e das pessoas, e não das normas jurídicas ou dos direitos subjetivos, como será o caso das sociedades atuais.
No capitalismo, a partir da modernidade, o problema se inverteu. A regra de ouro de Aristóteles, em vez de ser lida como um problema de distribuição dos bens, falando diretamente das coisas, das pessoas e das situações, passou a ser lida como se fosse uma mera norma, referenciada em direitos subjetivos. Assim sendo, não importando o conteúdo nem o procedimento, até mesmo a regra de ouro aristotélica perdeu sentido e passou a ser entendida apenas como uma norma que, tecnicamente, determina por ela mesma o sentido para a justiça. Ou seja, mais do que o mérito do ato de dar ou distribuir, o direito passou a ser identificado apenas como a norma que estipula tais atos e os direitos subjetivos correspondentes.
A questão do direito, para Aristóteles e para os filósofos clássicos, mas também para os juristas do Direito Romano e do direito medieval, não se encontrava meramente nas normas, mas sim nas coisas. Daí que, para eles, a justiça era uma atitude de encontrar a natureza das coisas, e, descobrindo essa natureza, o jurista deveria agir no sentido de conformar as pessoas, OS bens, os fatos e as situações a tal natureza, do que resultaria então o justo.
Tomemos para isso um exemplo a partir da visão antiga do pensamento Jurídico. A enxada pode servir, nas mãos de um trabalhador, para lavrar a terra. E da natureza da enxada tal uso. Mas se alguém se vale da enxada para golpear a cabeça de outrem, ferindo-o de morte, diríamos que o justo uso da enxada foi perdido. Tal ato é injusto, e deve ser corrigido. Ora, o problema do direito estaria tanto na atitude de quem desferiu o golpe quanto na situação que se deu, na injustiça de se golpear alguém. O direito e a justiça estariam sendo observados na atitude da pessoa e na situação ocorrida, não necessariamente numa norma.
Dizia-se no passado, por isso, que seria preciso que o bom jurista fosse artista do direito, para bem entender cada situação concreta, sua justeza a natureza das coisas ali envolvidas. A norma era importante para alcançar essa justeza, mas não apenas ela. A equidade que é a arte de entender cada caso Concreto, superior, para Aristóteles, à própria lei.
Ora, na antiguidade, nos modos de produção pré-capitalistas, nos quais a única ainda não estava totalmente assentada, o direito estava visível muito mais nas coisas e nas situações do que propriamente nas normas. O fenômeno jurfdjc0 de fato, era considerado muito maior que a sua mera normatividade.
Já no capitalismo, o direito é identificado de modo distinto. A exploração dos trabalhadores pelo capital se faz de modo mercantil. O vínculo entre ambos se apresenta como uma troca de direitos subjetivos entre sujeitos livres e iguais. À forma de mercadoria corresponde a forma de sujeito de direito. Além disso, constitui-se uma instância política na sociedade formalmente apartada das classes e dos indivíduos, o Estado. As formas do direito, as normas estatais e todos seus correlatos técnicos ordenamento jurídico, sujeito de direito, validade, vigência, obrigação, dever e direito subjetivo passam a ser o campo no qual se identifica o assunto jurídico. Isso se deve, de modo claro, às necessidades prementes da exploração capitalista, sejam mercantis, sejam produtivas. E porque se explora o trabalho assalariado por meio de uma vontade do trabalhador em se dispor mediante paga que se criam os institutos do sujeito de direito e da autonomia da vontade, garantidos não pelo explorador burguês, mas sim por essa instância que se vende como “imparcial”, o Estado.
Ora, se o fenômeno jurídico antigo se media em determinadas coisas, o fenômeno jurídico moderno se mede em outras. A sabedoria em deslindar os fatos era uma espécie de virtude jurídica do passado. O conhecimento técnico normativo é a virtude do jurista moderno. Um velho sábio que soubesse captar a verdade por detrás das falsas discussões de uma briga seria um homem justo no passado. Mas um jovem sem virtudes que decorou leis é o grande jurista da modernidade capitalista. O tradicional fenômeno jurídico, de dar, de distribuir, de corrigir e educar, que em muito se confundia com a religião, a moral, a ética e os costumes, esse artesanato da justiça do passado pré-capitalista ficou totalmente deslocado em relação ao direito moderno. Para nós, direito é técnica, não arte. As relações sociais do capitalismo impõem formas necessárias ao próprio direito.
Do direito pré-capitalista para o direito capitalista, mudam as formas de relação social. Se o fenômeno jurídico na antiguidade tratava de tudo diretamente, porque, no mando imediato ou artesanalmente a tudo se pode ponderar a sua natureza justa, o direito moderno tratará de tudo por meio das formas sociais e jurídicas do capitalismo: subjetividade jurídica, direito, dever, autonomia da vontade, vínculo, obrigação etc. Nessas formas, o direito tratará daquilo que as normas jurídicas e os institutos jurídicos estatais tratarem.
A totalidade de que trata o direito no capitalismo quer dizer: tudo somente será jurídico mediante as formas da própria sociabilidade jurídica capitalista e, também, se as normas assim o quiserem OU não o quiserem. No passado, no direito pré-capitalistas é o contrário: tudo pode ser justo ou injusto por si mesmo ou pela livre e artesanal apreciação do jurista ou dos brutos poderes. Na verdade, a universalidade do fenômeno jurídico moderno não está na cobertura de todos os temas, mas sim nas formas e nas técnicas que se reputam universais.








sábado, 18 de agosto de 2018

Percepção Científica do Direito

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 235
Percepção Científica do Direito
Reis FRIEDE•
Resumo: O presente artigo analisa, inicialmente, a posição
majoritária da doutrina segundo a qual o Direito se constitui em
autêntica e genuína ciência autônoma, abordando o conceito de
ciência, a classificação binária das ciências, bem como outras
classificações relativas às ciências, passando, a seguir, à
classificação da Ciência do Direito, objetivando extrair os
importantes ensinamentos derivados de tal percepção.
Posteriormente, passa-se à análise da axiologia jurídica e
projeção comportamental do Direito, da tridimensionalidade do
Direito, da caracterização particular da Ciência do Direito e, por
fim, das especificidades da Ciência Jurídica.
Palavras-chave: Direito; Ciência Autônoma; Classificação;
Axiologia.
Não obstante a tese segundo a qual o Direito se constitui
em efetivo ramo científico ter sido negligenciada no passado por
expressiva parcela de estudiosos, na atualidade contemporânea
é, no mínimo, majoritária a posição doutrinária que entende o
Direito como autêntica e genuína Ciência Autônoma.
• Catedrático, ex-Membro do Ministério Público, Mestre e Doutor em
Direito, Professor-Coordenador da Escola de Pós-Graduação em Direito
da UniverCidade e Professor-Coordenador dos Cursos de Graduação
em Direito da UniverCidade – Campus Centro e autor de inúmeras
obras jurídicas, dentre as quais “Ciência do Direito, Norma,
Interpretação e Hermenêutica Jurídica”, 4ª edição, Forense
Universitária, 2001, RJ (189 ps.) e “Vícios de Capacidade Subjetiva do
Julgador: Do Impedimento e da Suspeição do Magistrado nos
Processos Civil, Penal e Trabalhista”, 3ª edição, Forense, 2001, RJ (469
ps.). E-mail: reisfriede@hotmail.com
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 236 São Paulo, 28 (2): 2009
Ainda que se possa discutir se o Direito constitui-se na
própria ciência, em sua descrição conceitual, ou, ao contrário,
restringe-se apenas ao objeto de uma ciência (a chamada Ciência
do Direito), a verdade é que, no presente momento evolutivo,
poucos são os autores que ousam desafiar a visão dominante do
Direito como ciência e suas principais conseqüências,
especialmente após o advento – e, sobretudo, a leitura técnica –
da notável obra de Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, em que o
autor logrou demonstrar, na qualidade de mentor do
racionalismo dogmático (normativismo jurídico), a pureza
jurídica do Direito em seu aspecto tipicamente científico.
Mesmo assim, entre nós ainda existem aqueles que
simplesmente defendem o ponto de vista do Direito como uma
forma não-científica, desafiando não só o caminho lógicoevolutivo
do estudo do Direito, mas, particularmente, a acepção
mais precisa (e correta) do vocábulo ciência.
"(...) não é rigorosamente científico denominar o Direito de
ciência. (...). As pretensas ciências sociais, com ranço comtiano,
onde se costuma incluir o Direito (...) não oferecem princípios de
validez universal que lhes justifiquem a terminologia (...)".
(PAULINO JACQUES in Curso de Introdução ao Estudo do
Direito, ps. 10/11)
"O Direito não é ciência, mas arte; como também ramo da moral"
(GENY in Science et Téchnique en Droit Privé Positif, 2a. édiction,
Tome I, Paris, 1927, ps.69/71 e 89)
"As regras do Direito são preceitos artísticos, normas para fins
práticos, determinações ordens, que se impõem à vontade. Não
se confundem com as afirmações científicas, que se dirigem à
inteligência." (PEDRO LESSA in Estudos de Philosophia do
Direito, Rio, 1912, p.46)
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 237
Conceito de Ciência
A questão central, nesse contexto de atuação, ao que tudo
indica, parece ser, sob o prisma de sua própria especificidade, os
múltiplos e variáveis conceitos de ciência, bem como as
possíveis e diferentes traduções do vocábulo em epígrafe.
Nesse sentido, resta oportuna a lição de Tércio Sampaio
Ferraz Jr. (in Direito, Retórica e Comunicação, Saraiva, SP, 1973,
ps. 159/160) para quem "a expressão ciência não é unívoca; não
obstante de com ela se pretender designar um tipo específico de
conhecimento, não há um critério único e uniforme que
determine sua extensão, natureza e caracteres, devido ao fato de
que os vários critérios têm fundamentos filosóficos que
extravasam a prática científica."
De qualquer sorte, o que caracteriza a ciência, na acepção
atual, não pode ser, em nenhuma hipótese, como deseja Paulino
Jacques, uma pretensa e utópica validez universal de seus
princípios, independentemente de meridianos e paralelos, uma
vez que, de forma absolutamente diversa, a noção
contemporânea de ciência reside no escopo próprio de sua
atuação, ou seja, na busca, constante e permanente, pela verdade
(ou, ainda, em outras palavras, na perene explicação evolutiva
dos diversos fenômenos naturais e sociais).1
Em essência, - é oportuno ressaltar -, inexiste, de forma
insofismável, a efetiva possibilidade de se ter fato gerando
normas de validade sinérgica, acima de qualquer possibilidade
de contestação no espectro temporal-evolutivo.
Muito pelo contrário, o que a ciência realiza, no âmbito de
sua atuação, é exatamente conceber, caracterizando e criando
através de interpretações próprias (porém, com necessário
escopo de generalização), a melhor explicação de um dado
fenômeno particular (natural ou social), em um considerado
momento histórico em que aspectos culturais, geográficos,
organizacionais, etc, necessariamente possuem sua esfera -
maior ou menor - de influência.2
A concepção básica de Ciência (incluindo seu conceito
específico), por efeito consequente, não pode considerar a
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 238 São Paulo, 28 (2): 2009
existência de incontestes e permanentes princípios de validez
universal, tendo em vista que a validade intrínseca dos
princípios e pressupostos científicos são sempre mutáveis no
tempo e no espaço, em decorrência da própria e necessária
evolução dos conceitos científicos.3
Por efeito consequente, a ciência não pode, sob pena de
sublime subversão lógico-conceitual, ser encarada como algo
que se traduz por uma verdade absoluta, mas, ao contrário,
necessariamente deve ser entendida como algo que busca, de
forma constante e permanente, a verdade (em sua acepção
plena), aproximando-se cada vez mais da mesma, porém sem
nunca poder atingi-la, ou mesmo tangenciá-la com plena
segurança.4
Classificação Binária das Ciências
Se é plenamente correto afirmar que as ciências, de modo
geral, não se traduzem em verdades absolutas (ou, sob outra
ótica, em princípios imutáveis e intangíveis de validez
permanente e universal), mas apenas e limitadamente na busca
incansável por estas mesmas verdades (no sentido da explicação
correta e absoluta para cada fenômeno natural ou social
(cultural)), não menos acertada constitui a afirmação segundo a
qual o raciocínio binário humano se constitui no principal fator
limitante do próprio desenvolvimento científico.5
Como a contingência de superação da limitação binária
tem se mostrado, nos inúmeros séculos de desenvolvimento da
humanidade, tarefa impossível de ser concretizada, restou, de
forma inexorável, ao gênero humano conceber e adaptar todos os
modelos de desenvolvimento científico a esta forma única e
exclusiva de pensar.
Por efeito consequente, todas as classificações de cunho
científico forçosamente tiveram de se adaptar, e efetivamente se
adaptaram, à imposição do binarismo, inclusive, sob esta ótica,
a própria classificação das ciências em seu sentido amplo.
Nesse contexto, as ciências, quanto ao seu objeto,
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 239
passaram, de maneira amplamente majoritária, a ser
classificadas em dois principais grupos: as denominadas
ciências da natureza (cujo foco de observação são fenômenos
naturais) e as chamadas ciências da sociedade (cujo foco de
observação cinge-se a fenômenos sociais e culturais). As ciências
naturais, por sua vez, passaram a admitir uma subdivisão
peculiar em ciências do macrocosmos (cujo foco de observação
são fenômenos naturais externos aos seres vivos) e em ciências
do microcosmos (cujo foco de observação são fenômenos
naturais internos aos seres vivos), ao passo que as ciências
sociais, por seu turno, passaram a acolher a subdivisão em
ciências não-hermenêuticas (ou não-comportamentais) e em
ciências hermenêuticas (ou comportamentais).
No primeiro grupo (ciências naturais do macrocosmos),
encontramos a Física, a Química, a Astronomia etc.; no segundo
grupo (ciências naturais do microcosmos), nos deparamos com a
Medicina, a Biologia, etc.; no terceiro grupo (ciências sociais nãohermenêuticas)
achamos a Sociologia, a Antropologia, etc.; e,
finalmente, no quarto grupo (ciências sociais hermenêuticas),
encontramos o Direito.6
Muito embora os menos avisados possam questionar onde
estaria, neste espectro classificatório, posicionada a
Matemática, a verdade é que esta pseudociência, por não
possuir o escopo próprio de atuação das ciências (ou seja, a
valoração intrínseca (e interpretativa) de um fato (natural ou
social), concebendo uma norma explicativa (inerente ao mundo
real) ou de projeção (inerente ao mundo cultural)), melhor se
encontra classificada como genuína linguagem científica ou,
como preferem alguns, efetiva ciência instrumental.
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 240 São Paulo, 28 (2): 2009
Diagrama 1:
Classificação das Ciências (Quanto ao Objeto de Observação)
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 241
Outras Classificações Relativas às Ciências
Não obstante a consagrada classificação binária das ciências,
resta oportuno consignar que, no espectro histórico-evolutivo, como
bem leciona Maria Helena Diniz em seu Compêndio de Introdução à
Ciência do Direito (12ª ed., Saraiva, SP, 2000, ps. 22-26), muitos
autores ensaiaram algumas classificações, hoje, de modo geral,
reputadas primitivas (e, portanto, ultrapassadas), que partem de
outros pressupostos lógicos.
Augusto Comte, (Cour de Philosophie Positive, Paris, 1949),
por exemplo, optou por classificar as ciências em abstratas (teóricas
ou gerais) e concretas (particulares ou especiais).
No primeiro grupo comtiano, como bem salienta Maria Helena
Diniz (ob. cit., p. 23), estariam as ciências que estudam as leis
gerais que norteiam os fenômenos da natureza, sendo-lhes
aplicável os critérios da dependência dogmática (que consiste em
agrupar as ciências, de modo que cada uma delas se baseie na
antecedente, preparando a consequente), da sucessão histórica (que
indica a ordem cronológica de formação das ciências, partindo das
mais antigas às mais recentes) e de generalidade decrescente e
complexidade crescente (que procede partindo da mais geral para a
menos geral e da menos complexa para a mais complexa),
compreendendo, neste particular, a matemática (ciência dos
números e da grandeza, a mais simples e universal, posto que só se
refere às relações de quantidade, embora seja a mais geral porque
se estende a todos os fenômenos), a astronomia (física celeste ou
mecânica universal, ciência que estuda as massas materiais que
existem no universo), a física (ciência que se ocupa dos fenômenos
físicos, ou seja das forças da natureza), a química (físico-química,
ciência que tem por objeto a constituição dos corpos particulares), a
biologia (física-biológica, ciência que estuda os corpos complexos
que se apresentam com vida) e a sociologia (físico social, ciência das
relações sociais que se dedica a acompanhar a vida social do homem).
No segundo grupo desta classificação, por seu turno,
encontrariam-se as ciências derivadas em que a tônica seria a
descrição concreta dos fenômenos abstratos estudados nas ciências
teóricas ou gerais. Desta feita, a botânica e a zoologia seriam ciências
concretas derivadas da biologia, ao passo que o Direito seria uma
ciência concreta derivada da sociologia.
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 242 São Paulo, 28 (2): 2009
Diagrama 2: Classificação das Ciências Segundo Augusto Comte
Wilhem Dilthey (Introduction a L’etude des Sciences
Humaines, Paris, 1942), inspirado, como bem lembra Maria Helena
Diniz (ob. cit., p. 24), na classificação de ciência de AMPÉRE, optou,
por sua vez, em distinguir ciências da natureza (que se ocupam dos
fenômenos físico-naturais, empregando o método da explicação
fática) e ciências do espírito (ciências noológicas ou culturais na
nomenclatura de Rickert), estas subdivididas em ciências do
espírito subjetivo (psicológicos, que têm por objeto o mundo
pensamento) e em ciências do espírito objetivo (culturais, que
descrevem e analisam a realidade histórica e social como produto
das ações humanas).
Nesse contexto classificatório, encontraríamos na primeira
divisão a física, a química, a biologia, etc., ao passo que, na
segunda divisão, a psicologia (espírito subjetivo) e a sociologia e o
direito (espírito objetivo), entre outras.
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 243
Diagrama 3:
Classificação das Ciências Segundo Wilhem Dilthey (e Ampère)
Aristóteles, baseando-se no critério ficcional, por seu turno,
preferiu dividir as ciências em teórica ou especulativa (limitadas à
reprodução cognitiva da realidade), e práticas (que tem por objeto o
conhecimento para a orientação de ações e comportamentos).
Dentre as ciências teóricas, distinguiu-se, conforme o grau de
abstração inerente a cada uma delas, as ciências físicas ou naturais
(incluindo a percepção da natureza originária (realidade natural) e
da natureza transformada pelo homem (realidade cultural)), as
ciências matemáticas ou formais (atinentes ao mundo quantitativo
numérico (aritmética) e extensivo (geometria)) e as ciências
metafísicas (ontológicas, relativas ao ser enquanto ser, ocupando-se
com noções de causa e efeito).
Já no grupo das ciências práticas, existiriam as ciências
morais ou ativas que objetivam dar normas ao agir, procurando
dirigir a atividade interna e pessoal do homem, buscando atingir o
bem comum) – onde estaria inserido o Direito –, e as ciências
factivas e produtivas (que visam dar normas ao fazer, procurando
dirigir a atividade externa e pessoal do homem, buscando atingir o
belo (ciências artísticas) ou o útil (ciências técnicas)).
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 244 São Paulo, 28 (2): 2009
Diagrama 4:
Classificação das Ciências Segundo Aristóteles
De qualquer sorte, - e independentemente de outras
considerações -, vale frisar que, sob uma certa ótica, todas essas
diferentes classificações também atendem, a exemplo da
doutrina mais contemporânea a propósito do tema, a uma
concepção binária, ainda que, de modo inevitável, restrita, por
sua vez, a uma percepção menos desenvolvida (avançada) do
fenômeno epistemológico em seu sentido amplo.
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 245
Normas da Natureza (Juízo de Realidade) e Normas da
Cultura (Juízo de Valor)
A moderna concepção classificatória binária, todavia, não
pode ser plena e satisfatoriamente entendida, em sua inteireza,
sem a necessária compreensão da origem última da própria
dicotomia intrínseca que existe na distinção básica e
fundamental entre as ciências naturais e sociais (culturais), na
qualidade de incontestes circunstâncias originárias que se
operam como verdadeiras explicações lógico-distintivas.
Essas inerentes características circunstanciais aludem,
sobretudo, às diferentes percepções normativas que se deduzem
a partir da observação dos mais diversos fenômenos naturais e
sociais (culturais), o que torna, por via de conseqüência, o seu
estudo indiscutivelmente fundamental para a perfeita
compreensão do Direito como ciência social (cultural).
Desta feita, o primeiro passo, sob esta ótica analítica, é
procurar estabelecer claramente a indubitável diferença entre as
regras derivadas da simples observação da natureza, - que
retratam a realidade perceptível do mundo como ele se
apresenta (mundo do ser) -, produzindo os chamados
“juízos de realidade”, das regras derivadas da percepção
intelectual e criativa do homem, - que, ao contrário, traduzem a
percepção axiológica do ser social e criativo -, produzindo os
denominados “juízos de valor”.7
As normas da natureza, inerentes ao juízo de realidade
(valoração factual perceptiva de caráter objetivo), como se pode
facilmente deduzir, são estudados pelas chamadas ciências
naturais, por intermédio de suas duas vertentes: macrocosmos
(relativa aos aspectos factuais da realidade observável externa
aos seres vivos) e microcosmos (relativa aos aspectos factuais da
realidade observável interna aos seres vivos).
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 246 São Paulo, 28 (2): 2009
Já as normas da cultura, inerentes ao juízo de valor
(valoração perceptível de caráter subjetivo), ao contrário,
correspondem às denominadas ciências sociais (culturais) que se
subdividem, por seu turno, em ciências não-hermenêuticas (em
que os juízos de valor são procedidos sobre fatos sociais
observados, reunindo, pois, normas derivadas de simples
percepção axiológica e reflexiva dos fenômenos ocorridos no
mundo cultural, tais como as normas sociológicas, históricas,
econômicas, etc.) e em ciências hermenêuticas (em que os juízos
de valor se adicionam a uma projeção de obrigatoriedade de
comportamento na busca da preservação de valores e que, por
esta razão, são necessariamente reinterpretadas
hermeneuticamente).
Vale registrar, por oportuno, que outros autores também
têm ensaiado outras classificações a respeito do tema, ainda
que, de um modo geral, aludam, como não poderia deixar de ser,
as inexoráveis diferenças entre as normas da natureza
(derivadas do juízo de realidade e inerentes ao mundo do ser) e
as normas de cultura (derivadas do juízo de valor e inerentes ao
mundo do dever-ser). Nesse particular, resta, como ilustração,
expressamente aludir à classificação de Hermes De Lima
(Introdução à Ciência do Direito, 27ª ed., Freitas Bastos, RJ,
1983), que procurou estabelecer uma classificação, segundo a
conduta humana, em normas técnicas (derivadas do juízo de
realidade e inerentes ao mundo do ser) e em normas éticas
(derivadas do juízo de valor e inerentes ao mundo do dever-ser).
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 247
Diagrama 5: Concepção Estrutural Normativa: Normas da Natureza
(Juízo de Realidade) e Normas da Cultura (Juízo de Valor)
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 248 São Paulo, 28 (2): 2009
Classificação da Ciência do Direito
Como o objeto precípuo de nosso trabalho restringe-se ao
estudo do Direito, mister que, a partir de um amplo quadro
ilustrativo (já perfeitamente delineado), nos limitemos à
classificação do Direito, objetivando, desta feita, extrair os
importantes ensinamentos derivados desta percepção.
Neste diapasão, resta fundamental assinalar que, num
espectro analítico mais adequado, a Ciência do Direito tem sido
corretamente classificada como efetiva ciência social, de nítida
feição hermenêutica, considerando, especialmente, não só
possuir foco de observação em fenômenos sociais e culturais,
mas, sobretudo, por desenvolver um sistema peculiar de
interpretação de fatos sociais e culturais que não se limita, de
nenhuma maneira, à simples valoração intrínseca dos mesmos,
concebendo norma (fase legislativa), mas, ao contrário, permite
ultrapassar a concepção fundamental interpretativa,
reprocessando a conclusão (ou, em outras palavras, a própria
norma) e concebendo, desta feita, uma segunda norma (de
aplicação) no contexto de um sinérgico processo hermenêutico
(fase judicial).8
Todavia, não obstante a inerente complexidade do assim
concebido processo hermenêutico, o Direito, sob o prisma
classificatório, não pode se restringir (e de fato não se restringe)
à simples designação de ciência social hermenêutica, posto que
a denominada ciência jurídica também se caracteriza, de forma
diversa das demais ciências, por ser uma ciência particular de
projeção comportamental (ou, como preferem alguns autores,
ciência de projeção de um mundo ideal (meta do dever-ser)) e
por ser uma ciência inexoravelmente axiológica (valorativa).9
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 249
Axiologia Jurídica e Projeção Comportamental do Direito
Inegavelmente, as características axiológicas e de projeção
comportamental (meta do dever-ser) do Direito, muito mais do
que a própria vertente hermenêutica, foram responsáveis, por
muitos anos (e mesmo séculos), pela grande dúvida no tocante
ao específico posicionamento enciclopédico do Direito. Havia no
passado remoto razoáveis dúvidas (e algumas com sobrevida
mesmo no passado recente) a respeito dessas características
particulares da Ciência Jurídica, notadamente no que alude à
sua específica operacionalidade prática, forjando, em
conseqüência, uma forte incompreensão quanto à efetiva
possibilidade de se ter, no espectro classificatório, uma
autêntica ciência social de projeção de um mundo ideal, a partir
de premissas valorativas (de cunho nitidamente axiológico),
inerentes a um quadro de idéias (com forte feição ideológica),
presentes e decompostas no mundo real.
Entretanto, o que aparenta ter sido dúvida primaz no
passado parece ter se transformado em inconteste certeza no
presente, permitindo que o Direito – a par de toda a sorte de
inegáveis especificidades – se posicione, com invejável
segurança, na atualidade contemporânea, em um tipo particular
de ciência, com características especiais (hermenêutica,
comportamental (projeção de um mundo ideal (meta do deverser))
e axiológica), mas nem por isso distante do factum
característico fundamental de todas as ciências, ou seja, a busca
permanente e contínua pela verdade, através da interpretação
de fatos (naturais ou sociais), por intermédio da necessária e
insuperável valoração intrínseca de um dado fenômeno,
originando uma norma ou tese (explicativa e/ou
comportamental).
(Informações complementares e detalhes a respeito do
tema podem ser pesquisados em nossa obra Ciência do Direito,
Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica, 3ª ed., Rio de
Janeiro, Forense Universitária, 2000, ps. 1-38).
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 250 São Paulo, 28 (2): 2009
Diagrama 6: Caracterização da Ciência Hermenêutica do Direito
Tridimensionalidade do Direito
Não obstante toda a sorte de considerações que permitem
uma verdadeira multiplicidade de pontos de vista a respeito do
Direito como ciência, - particularmente o próprio conceito de
ciência, que de sua matriz original e restritiva (“ciência é um
complexo de enunciados verdadeiros, rigorosamente fundados e
demonstrados, com um sentido limitado, dirigido a um
determinado objeto”) evoluiu para uma concepção
contemporânea mais ampla e consentânea (“ciência é a busca
da verdade (explicativa de uma realidade inerente ao mundo do
ser ou projetativa de uma percepção cultural inerente ao mundo
do dever-ser) -, é fato que, em seu caráter estrutural, a
denominada Ciência Jurídica apresenta-se através de uma nítida
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 251
feição tridimensional, transcendente, em todos os casos, às
diversas concepções epistemológico-jurídicas relativas à
cientificidade do conhecimento jurídico.
Desta feita, - independente da particular concepção
doutrinária de Miguel Reale -, o Direito, como qualquer ciência,
constitui-se, em último grau, em uma resultante final da
percepção interpretativa (de índole subjetiva, inerente ao seu
correspondente juízo de valor, relativo ao denominado mundo do
dever-ser, dotado de significação cultural) de um dado fato
social, traduzindo necessariamente uma concepção normativa
(cultural) de projeção comportamental e de natureza
hermenêutica.
Por efeito consequente, a caracterização do Direito, como
inconteste realidade científica, em sua vertente tridimensional,
apenas reflete, em linhas gerais, o caráter comum da equação
que sempre se constrói por intermédio da percepção
interpretativa de um fato (valoração factual) concebendo uma
norma resultante; sendo certo, sob este prisma, que as
diferentes ciências e suas respectivas classificações se operam a
partir, sobretudo, das duas diferentes possibilidades de
percepções interpretativas de um dado fato produzindo normas
finalísticas: de caráter objetivo (juízo de realidade inerente ao
mundo do ser sobre fatos naturais, traduzindo normas (reais)
explicativas) ou de caráter subjetivo (juízo de valor inerente ao
mundo do dever-ser sobre fatos sociais, traduzindo normas
(culturais) de projeção comportamental (hermenêutica) ou nãocomportamental).
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 252 São Paulo, 28 (2): 2009
Diagrama 7: Estrutura Tridimensional das Ciências
Estrutura Tridimensional do Direito
O tridimensionalismo, essencialmente, constitui-se,
portanto, em uma característica estrutural inerente a todas as
ciências, - e não, como podem supor os menos avisados, a uma
particularidade da Ciência do Direito -, ainda que sejamos
obrigados a reconhecer que a denominada visão tridimensional
de Miguel Reale, neste aspecto, transcenda à concepção básica
da tríade Fato-Valor-Norma, comum a toda construção científica,
para também abranger aspectos associados, próprios e
específicos, da Ciência Jurídica, tais como aqueles integrantes
da interação do fato com a validade social (sociologismo
jurídico), do valor com a validade ética (moralismo jurídico) e da
norma com a validade técnico-jurídica (normativismo abstrato),
além de elementos de domínio que traduzem uma
tridimensionalidade concreta ou específica: fato/eficácia (aspecto
do ser), valor/fundamento (aspecto do poder-ser) e
norma/vigência (aspecto do dever-ser).
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 253
Caracterização Particular da Ciência do Direito
De todo e exposto, resta concluir, - não obstante algumas
acepções conceituais simplificadas (que entendem, por exemplo,
a ciência “como um conjunto organizado de conhecimentos
relativos a um determinado objeto, especialmente os obtidos
mediante a observação e a experiência dos fatos e um método
próprio”) -, que toda a ciência resume-se, em última análise, a
um processo de percepção valorativa objetiva (inerente ao
mundo real) ou subjetiva (inerente ao mundo cultural) de um
dado fato natural ou social, produzindo, em conseqüência, uma
norma explicativa (descritiva da realidade física) ou de projeção
não-comportamental (descritivas e analíticas da realidade
histórica, cultural e social) e comportamental (descritivas e
analíticas de condutas humanas).
Nesse aspecto, é cediço concluir que toda a ciência é, em
síntese, interpretativa em uma tradução abrangente, tendo em
vista que o escopo de atuação científica se processa exatamente
através da interpretação de fenômenos naturais ou sociais
(culturais). Desta feita, a chamada valoração intrínseca de um
dado fato (natural ou social), criando uma tese ou norma, nada
mais é do que o resultado último de uma interpretação em
sentido amplo. Por efeito, quando se afirma que uma
determinada ciência é classificada como não-hermenêutica isto
não significa dizer que inexiste, in casu, interpretação, mas
apenas que não se processa, na hipótese, um mecanismo de
“sobreinterpretação” (ou dupla interpretação), caracterizador do
denominado processo hermenêutico.
Nesse diapasão analítico, é lícito afirmar que a
denominada ciência hermenêutica – de que o Direito é o melhor
exemplo – se caracteriza, sobremodo, pela efetiva existência de
um autêntico processo complexo de interpretação. Por efeito,
vale dizer que inicialmente há, como em todas as demais
ciências, a valoração intrínseca de um fato criando uma dada
norma ou tese (fase legislativa); todavia, de forma diversa das
demais espécies científicas, a norma produzida pelo sistema
interpretativo básico não pode ser, de imediato, aplicada, sendo
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 254 São Paulo, 28 (2): 2009
necessária uma espécie de “sobreinterpretação” (ou seja, a
norma concebida originariamente é reinterpretada através de
um novo e diferente processo) para se chegar, finalmente, à
interpretação final e definitiva, no contexto específico de uma
“verdade relativa”, por intermédio de uma fase judiciária.
A este fenômeno particular e próprio do Direito é que
convencionalmente a doutrina costuma denominar de
interpretação normativa ou hermenêutica jurídica e que, em face
de sua inerente complexidade, será estudado em capítulo
estanque.
Diagrama 8: Processo Interpretativo Concernente à Ciência do Direito
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 255
Ciência Axiológica
Da mesma forma que o Direito se caracteriza, sob o prisma
hermenêutico, como uma ciência de “duplo processo
interpretativo” (ou “sobreinterpretação”), igualmente se
processa como uma ciência de valoração factual ampliada, ou
mesmo de “sobrevaloração”.
Isto significa, em linguagem objetiva, que, no âmbito da
Ciência do Direito, o processo de valoração intrínseca de um fato,
concebendo uma dada norma, não se restringe a um espectro
valorativo (de cunho científico) nitidamente objetivo (ou
exclusivamente interpretativo), mas, ao contrário, necessita da
imposição de valores sociais (derivados da ética, da moral etc. e
que, necessariamente, são mutáveis no tempo e no espaço) e de
valores intrínsecos (tais como segurança, justiça, ordem etc.)
Como os valores axiológicos do Direito podem, inclusive
(em dadas circunstâncias), ser antagônicos (segurança versus
justiça, por exemplo), incumbe ao processo valorativo (de feição
axiológica) particular do Direito a busca permanente de uma
solução conciliadora, representada, em última análise, pela
caracterização dicotômica dos diferentes ramos científicos do
Direito (direito penal, civil, tributário etc.) que ponderam, de
maneira propositadamente desigual, os diferentes valores
intrínsecos a cada dada situação efetiva.10
Especificidades da Ciência Jurídica
A percepção do Direito como inexorável ramo científico,
todavia, não é, por si só, suficiente para a plena compreensão do
fenômeno jurídico à luz das necessidades de superação das
múltiplas questões que se apresentam. Muito pelo contrário,
resta fundamental que o estudioso da matéria seja capaz de
entender, de forma amplamente satisfatória, as três
características basilares do Direito como ciência: projeção
comportamental, axiologia e hermenêutica.
A primeira – projeção comportamental – alude ao fato de
que a preocupação vital do Direito resume-se, acima de tudo, em
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 256 São Paulo, 28 (2): 2009
moldar comportamentos individuais e grupais, a partir de um
quadro de idéias e valores (mutáveis no tempo e no espaço),
idealizado pelo conjunto da sociedade, representada pelos seus
legisladores.11
Assim é que o Direito está, de modo constante e permanente,
a orientar as condutas humanas em sociedade, a partir de suas
normas jurídicas que são produzidas pelo conjunto da sociedade
(ainda que através de seus representantes eleitos para tanto) e
aplicadas (interpretadas) por um corpo técnico de julgadores,
quando da eventualidade da existência do conflito (derivado da
não-compreensão dos exatos termos da norma e/ou do efetivo e
intencional descumprimento da mesma).
A segunda – a axiologia – corresponde à inconteste existência
de uma infinidade de valores intrínsecos ao Direito, donde se
destacam, preponderantemente, os valores da justiça e da
segurança.
Como ambos os valores são igualmente importantes, tratou o
Direito (originalmente, uma inconteste realidade unitária) de se
ramificar, permitindo o estabelecimento a priori de eventuais
possibilidades de prevalência de um valor sobre o outro, quando
preexiste a hipótese de conflito valorativo.
Desta maneira, prevalece, em última instância, a verdade real
(em nome do valor da justiça) nas questões instrumentalizadas pelo
Direito Processual Penal, ao passo que prepondera, em última
análise, a verdade ficta, formal ou presumida (em nome do valor da
segurança) nas questões (sobretudo patrimoniais)
instrumentalizadas pelo Direito Processual Civil.12
A terceira – hermenêutica – indica, sobremaneira, a existente
interação funcional entre a apriorística parcela legislativa do Direito
e a subseqüente parcela judiciária, responsável última pela
interpretação (e aplicação, nos eventuais conflitos) das normas
jurídicas produzidas pelos representantes do povo (na qualidade de
titular do Poder Político).13
Muito embora o conhecimento dessas três características
basilares do Direito como ciência seja absolutamente fundamental
para o entendimento e a compreensão última do fenômeno jurídico,
é exatamente esta última característica (a hermenêutica jurídica) –
e sua indispensável e plena compreensão – o fator primordial para o
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 257
completo êxito deste objetivo, posto que tal característica atinge o
âmago da concepção estrutural do Direito.
Aliás, neste particular, cumpre assinalar, de modo veemente,
que o objeto específico (em seu sentido mais restritivo) do conteúdo
dos cursos jurídicos cinge-se, preponderantemente (se não
exclusivamente) à interpretação (e aplicação) da norma jurídica,
produzida pelo legislador, e não propriamente à caracterização
originária da lei (em seu sentido amplo) ou do próprio Direito,
devendo, neste aspecto, serem afastadas, com sinérgica repulsa,
quaisquer teses (ou posições) excêntricas (e altamente
controvertidas), como a do propalado Direito Alternativo ou Direito
Insurgente.
Diagrama 9: Características Basilares do Direito como Ciência
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 258 São Paulo, 28 (2): 2009
Diagrama 10: Direito como Ciência de Projeção Comportamental
Diagrama 11: Direito como Ciência Axiológica
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 259
Diagrama 12: Direito como Ciência Hermenêutica
Referências Bibliográficas
COMTE, Augusto. Cour de Philosophie Positive. Paris, 1949.
DILTHEY, Wilhelm. Introduction a L’etude des Sciences Humaines.
Paris, 1942.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.
12ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação. Saraiva:
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Rio de Janeiro, 1978.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista
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LIMA, Hermes de. Introdução à Ciência do Direito. 27ª ed., Rio de
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REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24ª ed., Saraiva: São
Paulo, 1999.
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 260 São Paulo, 28 (2): 2009
FRIEDE, Reis. Scientific Perception of Law. História, v.28, n.2,
p.235-266, 2009.
Abstract: This article examines, first, the majority position of the
doctrine that the law is to be authentic and genuine autonomous
science, addressing the concept of science, the binary
classification of sciences, as well as other classifications related
to science, through the following, the classification of the Science
of Law, to extract the important lessons derived from this
perception. Later, going to the legal analysis of the axiological
and the projected behavioral law, the tridimensionality the law,
the particular characterization of the Science of Law and, finally,
the specific nature of legal science.
Keywords: Law; Autonomous Science; Classification;
Axiological.
NOTAS
1 Nesse contexto, por força do raciocínio binário, é lícito, inclusive,
consignar o conceito antagônico à ciência que se traduz
modernamente pela crença. Enquanto a ciência, reconhecendo que
não possui a verdade, objetiva, de forma constante e permanente,
encontrá-la (através da busca incessante da explicação verdadeira dos
fenômenos fáticos (de valoração objetiva e subjetiva) e de suas
consequentes ocorrências no mundo real e cultural), a crença, por sua
vez, ciente de que já possui a verdade (ou seja, a correta explicação
para os fenômenos fáticos do mundo real), simplesmente impõe a sua
explicação (interpretação), como única e insuperável tradução da
realidade, permitindo, neste sentido, a concepção básica da
denominada fé (que é sempre imposta), como fator último a impedir o
próprio desenvolvimento da crença. Não é por outra razão, inclusive,
que a essência da fé (na qualidade de fator basilar da crença) se traduz
pelo “acreditar em algo que não pode ser provado”, tornando, por
efeito, toda crença (como, por exemplo, a religião) igualmente válida
(não permitindo, consequentemente, padrões de comparação
qualitativa) e determinante sob a ótica de sua própria abrangência.
2 Assim é que nos primórdios da Física, a melhor explicação científica
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 261
para o fenômeno da queda de um objeto em direção ao chão não
passava pela atual e complexa teoria da gravitação universal,
preferindo os "cientistas" da época, por ausência de melhor
interpretação, entenderem o fato (na qualidade de efetivo
acontecimento no mundo real) através da singela concepção da
existência de uma pretensa “mão invisível” que simplesmente
empurrava todo e qualquer objeto em direção ao solo. Mas mesmo com
todo o desenvolvimento da Ciência da Física, o homem ainda não foi
capaz de explicar, de forma inequívoca, dentro de seu contexto de
juízo de realidade, dotado de valoração objetiva, o simples fato da
queda de um objeto em direção chão, considerando, sobretudo, que a
vigente lei da gravidade (corolário da teoria da gravitação universal)
parte de um princípio básico de suposta validez universal, mas
amplamente contestável, que poderia ser resumido, não obstante
algumas complexidades que deixaremos ao largo, da seguinte maneira:
um corpo de massa menor é sempre atraído em direção ao corpo de
massa maior, determinando, em conseqüência, que qualquer objeto (de
massa relativa desprezível) simplesmente "caia" em direção ao centro
do planeta (que possui massa infinitas vezes maior), sendo contido
apenas pelo obstáculo natural que é exatamente a sua superfície (ou
seja, o chão). Como o pressuposto básico da atração gravitacional como
concebida na atualidade contemporânea, pressupõe a existência de
corpos com massa, a Física de hoje simplesmente não é capaz de
explicar a descomunal atração gravitacional que exerce os chamados
“buracos negros”, na qualidade de corpos celestes desprovidos de
matéria, e, por conseqüência, de massa, na concepção clássica de
“massa branca”.
3 É evidente que os denominados Princípios Gerais do Direito não são
universais ou mesmo permanentes (até porque, os fenômenos sociais
que os instruem são nitidamente mais complexos que os fenômenos
naturais, objetos de outras ciências) muito embora, no mundo atual de
notável capacidade de comunicação e intercâmbio, essa realidade
tenda naturalmente a um ponto de aproximação semelhante a pretensa
universalização de concepções tipicamente estudados pela Física,
Química, Astronomia etc. O próprio conceito axiológico de justiça,
como valor intrínseco do Direito, é conveniente ressaltar, vem sendo,
de modo perceptível, permanentemente universalizado, não obstante
as diversas culturas e os diferentes estágios evolutivos das várias
sociedades em convivência temporal comum. Por outro lado, é também
REIS FRIEDE
HISTÓRIA, 262 São Paulo, 28 (2): 2009
importante consignar que as ciências dotadas de juízo de valor
(valoração subjetiva), como o Direito, são inerentes ao denominado
mundo cultural, em que as preocupações valorativas possuem
inconteste natureza subjetiva.
4 É exatamente neste sentido que alguns autores observam a
existência, em matéria científica, das denominadas “verdades
relativas”, ou, em outras palavras, “verdades” com validez limitada ou
restrita, no tempo e no espaço, a uma dada e/ou considerada situação
fática. Por outro prisma, como o objeto das ciências sociais (culturais) é
mais complexo do que o das ciências naturais, considerando, neste
contexto analítico, não só a célebre afirmação de Wilhelm Dilthey
(Introduction a L’etude des Sciences Humaines, Paris, 1942) de que “a
natureza se explica, enquanto que a cultura se compreende” mas,
sobretudo, a constatação inequívoca de que o fato social abrange
relações múltiplas (mecânicas, físicas, químicas, biológicas, etc.),
deduz-se, sem muito esforço, que a sua mobilidade é muito maior que a
relativa às ciências naturais, gerando uma falsa impressão de que suas
conclusões interpretativas são menos válidas ou mesmo desprovidas
de qualquer grau de cientificidade. A verdade, entretanto, é que ambas
as ciências (naturais e sociais (culturais)) são, por definição, inexatas
(pois buscam, de forma constante e permanente, as suas respectivas
verdades interpretativas), diferenciando-se apenas no foco de
associação dos fenômenos e, em conseqüência, no lapso temporal
associado que, no caso das ciências naturais (por se tratar de
fenômenos de menor complexidade relacional), são mais longos,
originando uma primeira (e equivocada) impressão de que não são
variáveis e, portanto, traduzem uma realidade fixa e exata.
5 Sob uma ótica puramente matemática, neste sentido, seria até mesmo
lícito afirmar que o raciocínio binário corresponde, como uma sinérgica
limitação humana, a uma progressão geométrica de razão igual a dois.
Em essência, o número a índice n, último numeral da progressão,
corresponderia ao infinito, demonstrando, claramente, a efetiva
possibilidade humana de desenvolvimento. Porém, a velocidade deste
mesmo desenvolvimento, correspondente à razão q da progressão,
seria o menor possível, ou seja dois, equivalente numeral ao raciocínio
binário.
6 É importante esclarecer que a nomenclatura usual designativa dos
diversos tipos de ciência não guarda o necessário rigor terminológico
que deve, em última análise, traduzir as características intrínsecas de
PERCEPÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO
HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 263
cada modalidade científica. Assim, seria absurdo supor a existência de
uma pretensa ciência exata, considerando o próprio conceito
contemporâneo de ciência que se coaduna, de modo geral, com a
“busca da verdade”. De igual forma, sem qualquer precisão
designativa, apresenta-se a expressão ciência humana, posto que toda
ciência é um produto humano de valoração intrínseca a um fato,
concebendo uma regra explicativa (norma), associada, por seu turno, a
um juízo de realidade ou a um juízo de valor. Ainda assim, é forçoso
reconhecer que não há como afastar, de modo definitivo, estas
nomenclaturas tradicionais (porém, atécnicas), devendo pois, os
estudiosos do tema (e demais interessados) procurar conviver com tais
expressões, através de uma “virtual tradução” de seus verdadeiros (e
respectivos) sentidos designativos.
7 Conforme já mencionamos, a partir da observação de fatos da
natureza, o homem descreve interpretativamente determinadas
normas que retratam, através de uma percepção objetiva, a explicação
lógica relativa aos fenômenos naturais, concebendo os chamados
“juízos de realidade”. Neste particular, é cediço deduzir que os corpos
providos de massa “caem” (na verdade se dirigem ao centro do
planeta), em função de uma construção normativa, cuja síntese
conclusiva aponta para a explicação teórica da lei da gravitação
universal (cujo corolário mais conhecido denomina-se lei da gravidade),
da mesma maneira que os gases, quando submetidos ao calor, se
dilatam, através de leis concebidas pelo homem por intermédio de uma
valoração objetiva da realidade fática inerente ao denominado mundo
do ser, em que a participação humana, embora tenha inegável caráter
de percepção valorativa, é sempre dirigida objetivamente a explicação
dos fenômenos inerentes ao mundo como ele de fato se apresenta, sem
qualquer consideração subjetiva (juízo de valor propriamente
considerado), posto que seu único objetivo é extrair juízos perceptivos
de realidade, criando normas físicas com o intuito de sedimentar (e
desenvolver) os conhecimentos adquiridos. A partir da observação dos
fatos sociais, em virtual oposição, todavia, o homem descreve
interpretativamente, determinadas normas que refletem, através de
uma percepção subjetiva, não a explicação lógica inerente ao mundo
natural, mas, ao contrário, a valoração efetiva derivada da realidade
cultural em que se encontra inserido, produzindo normas de cultura (e
não normas da natureza) derivadas de um juízo de valor (valoração
subjetiva). Neste especial, o homem, de forma diversa do juízo de
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HISTÓRIA, 264 São Paulo, 28 (2): 2009
realidade (onde também existe uma valoração perceptível, ainda que
de caráter objetivo), não mais deseja construir normatizações inerentes
ao mundo como ele é (mundo do ser), mas, ao contrário, procura
traduzir valores próprios (subjetivos) que projetem alterações
circunstanciais capazes de interferir com a realidade, concebendo um
autêntico mundo derivado que corresponde aos vários objetivos pelos
quais o homem analisa a realidade fática buscando, através dos vários
juízos de valor, analisá-la e modificá-la.
8 A verdade é que o Direito, como ciência, possui, numa aproximação
para fins didáticos, dois diferentes momentos interpretativos. O
primeiro – comum a todas as ciências e que se processa através da
tríade fato/valor/norma – caracteriza um processo tipicamente
legislativo de criação da própria norma abstrata. O segundo – peculiar
à chamada ciência jurídica – desenvolve um processo genuinamente
judicial de aplicação efetiva da norma abstrata por meio da
caracterização (através de um complexo hermenêutico de mecanismos
de interpretação da norma jurídica) da norma concreta (ou efetiva).
9 Sob a ótica axiológica, em particular, cumpre esclarecer que o Direito
se exterioriza, no âmbito científico, através de um específico e
complexo processo de valoração factual que inclui parcelas intrínsecas
(notadamente a segurança das relações sócio-político-jurídicas e a
busca da justiça (ou da decisão justa)), cuja ponderação se concretiza,
de maneira diferenciada, por intermédio dos diversos ramos científicos
do Direito. Assim, o Direito Processual, que, incontestavelmente, se
constitui em uma inexorável unidade (como sempre defenderam os
unitaristas (ou monistas), como Hans Kelsen), passou a ser dividido em
Direito Processual Penal – no qual, no eventual confronto entre os
valores axiológicos da justiça e da segurança, prepondera o valor da
justiça (razão pela qual inexiste, por exemplo, prazo decadencial para o
ajuizamento da competente ação autônoma de impugnação (revisão
criminal) contra sentença condenatória transitada em julgado) – e em
Direito Processual Não-Penal (Direito Processual Patrimonial ou Civil
lato sensu) – no qual, no mesmo confronto, prepondera o valor da
segurança (razão pela qual há, no âmbito do processo civil, em
situação análoga, prazo decadencial de dois anos para o ajuizamento
da competente ação autônoma de impugnação (ação rescisória) contra
sentença transitada em julgado na esfera cível).
10 Não é por outra razão que, após duas horas acaloradas de debates, o
Superior Tribunal de Justiça tomou uma decisão inédita no Brasil.
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HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009 265
Negou o cancelamento do registro de paternidade, mesmo após um
exame de DNA comprovar que um pediatra de Goiás não era o pai
biológico de uma criança. A razão: a sentença já havia transitado em
julgado. O STJ optou por manter a sentença para preservar a
“segurança jurídica” no campo do Direito Civil. A ação foi julgada em
primeira instância em 1993 e a decisão, à base de provas testemunhais,
foi pelo reconhecimento da paternidade. Em segunda instância,
manteve-se a decisão. E, em grau de recurso, chegou o caso ao STJ,
que não julgou a ação por se tratar de matéria de prova (é conveniente
lembrar que o STJ só tem competência para julgar matéria de direito).
Só depois de vencidos os prazos legais em que podia recorrer, o
pediatra entrou com uma ação de negação de paternidade, exigindo o
exame de DNA e pedindo o cancelamento do registro civil. O exame
provou que não era ele o pai. Mas aos olhos da lei era tarde demais.
Prevaleceram no STJ os argumentos de que a matéria julgada deveria
ser preservada, sob pena de abrir um precedente que determinaria a
possibilidade de reavaliação constante de ações já julgadas, fazendo,
desta feita, pois, prevalecer o princípio de segurança jurídica sobre o
valor da justiça, como valor axiológico básico inerente ao Direito,
considerando, sobretudo, a natureza não-penal do Direito Processual
vertente à hipótese.
11 Não é por outra razão que as normas incriminadoras (típicas da parte
especial do Código Penal), por exemplo, não podem ser aplicadas
retroativamente, posto que a preocupação fundamental do Direito não
é punir e sim evitar que a conduta reprovável (e em algum momento já
realizada) se repita, projetando, desta feita, o comportamento
idealizado pelo conjunto da sociedade (contrário à prática da conduta
considerada). Em sentido oposto, as chamadas normas permissivas
têm emprego retroativo exatamente pelo fato de que a projeção de
comportamentos, intrínseca ao Direito, encontra fundamento na
valoração factual (valoração político-ideológica do conjunto da
sociedade (através de seus representantes) sobre o fato social,
concebendo a norma comportamental (norma jurídica)) que, por
natureza, é sempre mutável no tempo (e no espaço) e, por esta razão,
deve acompanhar os desígnios sociais mais atualizados.
12 Ainda assim, deve ser esclarecido que os valores vertentes do Direito
(fundamentalmente, a justiça e a segurança) não são necessariamente
divergentes. Muito pelo contrário, trata-se de valores harmônicos e
convergentes que, apenas em dadas situações concretas, tornam-se
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divergentes, obrigando o Direito, como realidade axiológica, a resolver o
eventual conflito valorativo. Assim é que, em essência, o Direito
Processual Civil, em relação ao Direito Processual Penal, busca igualmente
a verdade real; apenas, não a encontrando, sua disciplina autoriza o
julgador a sentenciar com base na verdade presumida. Aliás, a maior
prova da convergência axiológica dos valores intrínsecos ao direito pode
ser deduzida partindo-se de uma premissa segundo a qual cada grau
jurisdicional subsequente (posterior) aperfeiçoa o anterior, forjando a
concepção hipotética de que, para se ter um decisão absolutamente justa,
seriam necessário n graus, quando n tende ao infinito (¥). Ora, como a
existência humana é inexoravelmente finita, tal concepção – abstrata e
hipoteticamente justa – seria, na prática, absolutamente injusta, posto que
todos os jurisdicionados (e demais interessados) deixariam de existir antes
da prolação final da sentença. A restrição do número de graus de
jurisdição – uma inconteste imposição do fator segurança –, por efeito,
coaduna, neste contexto, perfeitamente com os ditames mais sublimes do
valor da justiça, demonstrando claramente o relativo equilíbrio axiológico
do Direito.
13 A idéia central in casu corresponde, em termos aproximados, à noção da
separação funcional do exercício do Poder Político e, em parte, ao festejado
mecanismo de freios e contrapesos, considerando que, na hipótese, a
parcela responsável pela criação e edição das leis (Poder Legislativo) não
pode interpretar e aplicar as mesmas, ao passo que a parcela responsável
pela interpretação e aplicação das leis (Poder Judiciário, em última
análise) não pode fazê-lo, exceto com base na norma legitimamente
produzida pelo legislador. Não é por outro motivo que, não obstante seja
pacífico o entendimento de que o julgador deve sempre buscar a decisão
justa, o mesmo jamais pode obter o resultado almejado senão com base na
lei (ou nas leis), legítima e constitucionalmente produzidas pelo legislador.
Também, a propósito do tema, vale consignar que não é só o julgador que
aplica e interpreta a norma jurídica. Muito pelo contrário, todos os
operadores do Direito (advogados, membros do Ministério Público, juízes
etc.) e até mesmo os cidadãos são potenciais aplicadores e intérpretes (o
primeiro grupo, de forma técnica, e o segundo, de modo leigo), sendo certo
que, no eventual conflito, no entanto, a última palavra (no que tange à
interpretação e à aplicação das normas jurídicas) será sempre do Judiciário
(e, consequentemente, de seus membros).
Artigo recebido em 08/2009. Aprovado em 11/2009.