quarta-feira, 25 de novembro de 2020

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE



CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
1 IDEIA CENTRAL
A ideia de controle de constitucionalidade está ligada à Supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à de rigidez constitucional e proteção dos direitos fundamentais.1
Em primeiro lugar, a existência de escalonamento normativo é pressuposto necessário para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo. Além disso, nas constituições rígidas se verifica a superioridade da norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo, no exercício da função legiferante
ordinária.2 Dessa forma, nelas o fundamento do controle é o de que nenhum ato normativo, que lógica e necessariamente dela decorre, pode modificá-la ou suprimi-la.3
A ideia de intersecção entre controle de constitucionalidade e constituições rígidas é tamanha que o Estado onde inexistir o controle, a Constituição será flexível, por mais que a mesma se denomine rígida, pois o Poder Constituinte ilimitado estará em mãos do legislador ordinário.
A supremacia constitucional adquiriu tamanha importância nos Estados Democráticos de Direito, que Cappelletti afirmou que o nascimento e expansão dos sistemas de justiça constitucional após a Segunda Guerra Mundial foi um dos fenômenos de maior relevância na evolução de inúmeros países europeus.4
Alessandro Pizzorusso aponta a primordial finalidade de controle de constitucionalidade, qual seja, a proteção dos direitos fundamentais, afirmando que, na organização da justiça constitucional italiana, apesar da inexistência de procedimentos específicos, como o recurso de amparo ou a Verfassungsbeschwerde alemã, o controle desenrola-se nos próprios processos ordinários civis, penais ou administrativos de forma incidental, pela remessa dos autos à Corte Constitucional, concebido para resolver uma questão prejudicial para a decisão do procedimento em curso, garantindo-se, igualmente, a supremacia dos direitos constitucionalmente protegidos.5
Klaus Schlaih, analisando a proteção dos direitos fundamentais pelos demais órgãos do Poder Judiciário alemão aponta que a plena possibilidade dessa hipótese
constitui-se uma das inovações mais importantes da jurisprudência tedesca, pois os tribunais têm o direito e são chamados a aplicar diretamente a Constituição quando necessário, interpretando as leis ordinárias de acordo com o Direito Constitucional.6
O controle difuso de constitucionalidade no direito alemão caracteriza-se pela previsão da denominada “questão de inconstitucionalidade” (Richterklage). Os tribunais alemães, quando considerarem inconstitucional uma lei, de cuja validade dependa a decisão, terão de suspender o processo e submeter a questão à decisão do Tribunal Constitucional Federal, quando se tratar da violação da Lei Fundamental.
O controle difuso de constitucionalidade alemão, apesar de mitigado em relação ao norte-americano, permite a análise sobre a
constitucionalidade das leis por todos os juízes e tribunais, porém, a declaração de inconstitucionalidade das leis é primazia do Tribunal Constitucional Federal, pois como adverte Otto Bachof,
“seria inexacto falar de um monopólio de controlo dos tribunais constitucionais, pois o controlo cabe em primeiro lugar ao tribunal de instância, só tendo este de submeter a questão ao tribunal constitucional depois de haver ele próprio negado constitucionalmente”.7
Em síntese, como ensina Cappelletti, ao analisar a jurisdição constitucional alemã, “todos os juízes, e não apenas os juízes superiores, são legitimados a dirigir-se à Corte Constitucional, limitadamente às leis relevantes nos casos concretos submetidos a seu julgamento; e este julgamento será suspenso, enquanto a Corte Constitucional
não tiver decidido a questão prejudicial de constitucionalidade”.8
O controle de constitucionalidade configura-se, portanto, como garantia de supremacia dos direitos e garantias fundamentais previstos na constituição que, além de configurarem limites ao poder do Estado, são também uma parte da legitimação do próprio Estado, determinando seus deveres e tornando possível o processo democrático em um Estado de Direito.9
2 CONCEITO
Controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais.
Dessa forma, no sistema constitucional brasileiro somente as normas
constitucionais positivadas podem ser utilizadas como paradigma para a análise da constitucionalidade de leis ou atos normativos estatais (bloco de constitucionalidade).10
Ressalte-se que, se possível for, a fim de garantir-se a compatibilidade das leis e atos normativos com as normas constitucionais, deverá ser utilizada a técnica da interpretação conforme, já analisada no item 5.1 do Capítulo 1.
3 PRESSUPOSTOS OU REQUISITOS DE CONSTITUCIONALIDADE DAS ESPÉCIES NORMATIVAS


A análise da constitucionalidade das espécies normativas (art. 59 da CF) consubstancia-se em compará-las com determinados requisitos formais e materiais, a fim de verificar-se sua
compatibilidade com as normas constitucionais.
3.1 Requisitos formais
O art. 5º, II, da Constituição Federal, consagra o princípio da legalidade ao determinar que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Como garantia de respeito a este princípio básico em um Estado Democrático de Direito, a própria Constituição prevê regras básicas na feitura das espécies normativas. Assim, o processo legislativo é verdadeiro corolário do princípio da legalidade, como analisado no capítulo sobre direitos fundamentais, que deve ser entendido como ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de espécie normativa devidamente elaborada de acordo com as regras de processo
legislativo constitucional (arts. 59 a 69, da Constituição Federal).
Assim sendo, a inobservância das normas constitucionais de processo legislativo tem como consequência a inconstitucionalidade formal da lei ou ato normativo produzido, possibilitando pleno controle repressivo de constitucionalidade por parte do Poder Judiciário, tanto pelo método difuso quanto pelo método concentrado.
3.1.1 Subjetivos
Referem-se à fase introdutória do processo legislativo, ou seja, à questão de iniciativa. Qualquer espécie normativa editada em desrespeito ao processo legislativo, mais especificamente, inobservando aquele que detinha o poder de iniciativa legislativa para determinado assunto, apresentará flagrante vício de inconstitucionalidade.
Assim, por exemplo, lei ordinária, decorrente de projeto de lei apresentado por deputado federal, aprovada para majoração do salário do funcionalismo público federal, será inconstitucional, por vício formal subjetivo, pois a Constituição Federal prevê expressa e privativa competência do Presidente da República para apresentação da matéria perante o Congresso Nacional (art. 61, § 1º, II, a).
3.1.2 Objetivos
Referem-se às duas outras fases do processo legislativo: constitutiva e complementar. Assim, toda e qualquer espécie normativa deverá respeitar todo o trâmite constitucional previsto nos arts. 60 a 69.
Por exemplo, um projeto de lei complementar aprovado por maioria simples na Câmara dos Deputados e no
Senado Federal, sancionado, promulgado e publicado, apresenta um vício formal objetivo de inconstitucionalidade, uma vez que foi desrespeitado o quorum mínimo de aprovação, previsto no art. 69, qual seja, a maioria absoluta.
3.2 Requisitos substanciais ou materiais
Trata-se da verificação material da compatibilidade do objeto da lei ou do ato normativo com a Constituição Federal.
4 O DESCUMPRIMENTO DA LEI OU DO ATO NORMATIVO INCONSTITUCIONAL PELO PODER EXECUTIVO
O Poder Executivo, assim como os demais Poderes de Estado, está obrigado a pautar sua conduta pela estrita legalidade, observando, primeiramente, como primado do Estado de Direito Democrático, as normas constitucionais.11 Dessa forma, não há como exigir-se do chefe do Poder
Executivo o cumprimento de uma lei ou ato normativo que entenda flagrantemente inconstitucional, podendo e devendo, licitamente, negar-se cumprimento,12 sem prejuízo do exame posterior pelo Judiciário.13 Porém, como recorda Elival da Silva Ramos,
“por se tratar de medida extremamente grave e com ampla repercussão nas relações entre os Poderes, cabe restringi-la apenas ao Chefe do Poder Executivo, negando-se a possibilidade de qualquer funcionário administrativo subalterno descumprir a lei sob a alegação de inconstitucionalidade. Sempre que um funcionário subordinado vislumbrar o vício de inconstitucionalidade legislativa deverá propor a submissão da matéria ao titular do Poder, até para fins de uniformidade da ação administrativa”.14
Portanto, poderá o Chefe do Poder Executivo determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos normativos que considerar inconstitucionais.15
5 ESPÉCIES DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
5.1 Em relação ao momento de realização
A presente classificação pauta-se pelo ingresso da lei ou ato normativo no ordenamento jurídico. Assim, enquanto o controle preventivo pretende impedir que alguma norma maculada pela eiva da inconstitucionalidade ingresse no ordenamento jurídico, o controle repressivo busca dele expurgar a norma editada em desrespeito à Constituição. Tradicionalmente e em regra, no direito constitucional pátrio, o Judiciário realiza o
controle repressivo de constitucionalidade, ou seja, retira do ordenamento jurídico uma lei ou ato normativo contrários à Constituição. Por sua vez, os poderes Executivo e Legislativo realizam o chamado controle preventivo, evitando que uma espécie normativa inconstitucional passe a ter vigência e eficácia no ordenamento jurídico.
5.2 Controle repressivo em relação ao órgão controlador
5.2.1 Político
Ocorre em Estados onde o órgão que garante a supremacia da constituição sobre o ordenamento jurídico é distinto dos demais Poderes do Estado.
5.2.2 Judiciário ou jurídico
É a verificação da adequação (compatibilidade) de atos normativos com a
constituição feita pelos órgãos integrantes do Poder Judiciário. É a regra adotada pelo Brasil.
5.2.3 Misto
Esta espécie de controle existe quando a constituição submete certas leis e atos normativos ao controle político e outras ao controle jurisdicional.
5.3 Modelos clássicos de controle de constitucionalidade
Apesar da diversidade de modelos,16 historicamente, é possível identificar três grandes modelos de justiça constitucional, com base nos sistemas jurídicos adotados pelos diversos ordenamentos para garantia da supremacia da Constituição: modelo norte-americano, modelo austríaco e modelo francês.17
O direito norte-americano – em 1803, no célebre caso Marbury v. Madison, relatado pelo Chief Justice da Corte Suprema John Marshall – afirmou a supremacia jurisdicional sobre todos os atos dos poderes constituídos, inclusive sobre o Congresso dos Estados Unidos da América, permitindo-se ao Poder Judiciário, mediante casos concretos postos em julgamento, interpretar a Carta Magna, adequando e compatibilizando os demais atos normativos com suas superiores normas.
Posteriormente, em 1920, a Constituição austríaca criou, de forma inédita, um tribunal – Tribunal Constitucional – com exclusividade para o exercício do controle judicial de constitucionalidade das leis e atos normativos, em oposição ao sistema adotado pelos Estados Unidos, pois não se pretendia a resolução dos casos concretos,
mas a anulação genérica da lei ou ato normativo incompatível com as normas constitucionais.18
No entanto, a consagração efetiva da necessidade de sujeição da vontade parlamentar às normas constitucionais, com a consequente criação dos Tribunais Constitucionais europeus, ocorreu após a constatação de verdadeira crise na democracia representativa e do consequente distanciamento entre a vontade popular e as emanações dos órgãos legislativos, duramente sentida durante o período nazista.
A inexistência de um controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e atos normativos e de mecanismos que impedissem a criação de uma ditadura da maioria auxiliou na criação do Estado Totalitário alemão, sem que houvesse
quebra da legalidade formal, demonstrando a necessidade da adoção do judicial review pela Lei Fundamental alemã de 1949.
Otto Bachof afirma que
“o facto de haver sido justamente um acto do legislativo – a chamada lei de autorização – que desarticulou (aus den Angeln gehoben hat) definitivamente, e sob uma aparência de preservação da legalidade, a Constituição da República de Weimar pode ter contribuído para dotar o Tribunal Constitucional Federal, como guarda da Constituição, de poderes extraordinariamente amplos precisamente face ao legislador”.19
Como salienta García de Enterría,
“o fracasso do sistema weimariano de justiça constitucional (especialmente visível no famoso juízo de 1932, sobre o chamado
golpe de Estado do Reich contra a Prússia de Von Papen, legitimado nas Ordenações presidenciais autorizadas pelo famoso artigo 48 da Constituição), levou a República Federal alemã, surgida no segundo pós-guerra, sensibilizada pela perversão do ordenamento jurídico ocorrida no nazismo, a adotar, com algumas variantes importantes, o sistema kelsiano”.20
O controle exercido pelos Tribunais Constitucionais, longe de configurar um desrespeito à vontade popular emanada por órgãos eleitos, seja no Executivo seja no Legislativo, constitui um delicado sistema de complementaridade entre a Democracia e o Estado de Direito, que para manter-se balanceado, deve possuir claras e precisas regras sobre sua composição, competências e poderes.
O modelo francês prevê um controle de constitucionalidade preventivo a ser realizado pelo Conselho Constitucional, que, no transcurso do processo legislativo, poderá, desde que provocado pelo Governo, ou pelo presidente de qualquer das Casas legislativas, analisar a constitucionalidade de uma proposição ou de uma emenda, antes de sua promulgação, devendo pronunciar-se no prazo de oito dias.21
Ressalte-se, porém, a excepcionalidade prevista no art. 37.2 da Constituição francesa, que previu uma forma de controle repressivo de constitucionalidade. Trata-se da possibilidade de o Conselho Constitucional francês analisar abstratamente a repartição constitucional de competências entre o Governo e o Parlamento. Como salienta Favoreu, “o sistema de repartição de competências
entre a lei e o regulamento provocou, por fim, o surgimento na França de um controle de constitucionalidade das leis”.22
Em 23 de julho de 2008, a Constituição francesa foi alterada, tendo o Presidente da República promulgado lei de revisão constitucional “de modernisation des institutions de la Vème République” (da modernização das instituições da Quinta República) nº 2008-724, resultado de detalhado trabalho de Comitê de Especialistas apresentado pelo Governo ao Parlamento em 23 de abril de 2008 e aprovado pela Assemblée Nationale (Assembleia Nacional) e Sénat (Senado).
A lei de revisão constitucional consagrou na França o tradicional controle abstrato de constitucionalidade, passando a permitir a denominada exceção de inconstitucionalidade (exception
d’inconstitutionnalité) e concedendo ao Conselho Constitucional o poder para o exercício do controle repressivo, nos moldes teorizados por Hans Kelsen.23
A Constituição Francesa, com as subsequentes modificações da lei de revisão constitucional, passou a determinar que qualquer dispositivo legal declarado inconstitucional repressivamente pelo Conselho Constitucional, por provocação do Conselho de Estado (Conseil d’Etat) ou da Corte de Cassação (Cour de Cassation), será expurgado do ordenamento jurídico com efeitos erga omnes, não retroativos (ex nunc), repristinatórios e vinculantes para todas as autoridades administrativas e jurisdicionais.
A ampliação da importância da Jurisdição Constitucional como instrumento de efetividade dos Direitos Fundamentais foi,
igualmente, reconhecida pelo Reino Unido, que estabeleceu com o Constitutional Reform Act 2005, pela primeira vez em sua história, uma Suprema Corte independente e separada da Câmara dos Lordes, com sistema diferenciado de nomeações, orçamento, infraestrutura e recursos humanos próprios, com sede em Londres, e cuja competência vem definida em sua seção 40.24
O Constitutional Reform Act 2005 estabelece que a Supreme Court deverá ser composta por 12 (doze) Juízes, selecionados por uma Comissão de Nomeações Judicial independente, responsável pela recomendação ao Ministro da Justiça, que os nomeará e, conforme ensina Jeffrey Jowell,25 terão o título de Justices of the Supreme Court.
Em face das tradições britânicas, a Supreme Court não possui propriamente a competência de exercer difusa ou concentradamente o controle de constitucionalidade da Constituição não escrita inglesa, mas sim de exercitar “declarações de incompatibilidade”, sem efeitos vinculantes ou revogatórios, das novas leis ou atos normativos aprovados pelo Parlamento ou pelo Gabinete, possibilitando seu retorno ao órgão legislativo ou administrativo para manutenção, alteração ou revogação.
5.4 Controle de constitucionalidade no Brasil
6 CONTROLE PREVENTIVO
Como afirmado anteriormente, o princípio da legalidade e o processo legislativo constitucional são corolários; dessa forma, para que qualquer espécie normativa ingresse no ordenamento jurídico, deverá submeter-se a todo o procedimento previsto constitucionalmente.
Dentro deste procedimento, podemos vislumbrar duas hipóteses de controle preventivo de constitucionalidade, que buscam evitar o ingresso no ordenamento jurídico de leis inconstitucionais: as
comissões de constituição e justiça e o veto jurídico.
6.1 Comissões de constituição e justiça
A primeira hipótese de controle de constitucionalidade preventivo refere-se às comissões permanentes de constituição e justiça cuja função precípua é analisar a compatibilidade do projeto de lei ou proposta de emenda constitucional apresentados com o texto da Constituição Federal.
O art. 58 da Constituição Federal prevê a criação de comissões constituídas na forma do respectivo regimento ou do ato de que resultar sua criação e com as atribuições neles previstas.
Esta hipótese de controle poderá ser realizada, também, pelo plenário da casa legislativa, quando houver rejeição do projeto de lei por inconstitucionalidade.
O art. 32, III, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados criou a comissão de constituição e justiça e de redação, estabelecendo seu campo temático e sua área de atividade em aspectos constitucionais, legais, jurídicos, regimentais e de técnicas legislativa de projetos, emendas ou substitutivos sujeitos à apreciação da Câmara ou de suas comissões, para efeito de admissibilidade e tramitação.
Por sua vez, o Regimento Interno do Senado Federal prevê, no art. 101, a existência da comissão de constituição, justiça e cidadania, com competência para opinar sobre a constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade das matérias que lhe forem submetidas por deliberação do plenário, por despacho do Presidente, por consulta de qualquer comissão, ou quando em virtude desses
aspectos houver recurso de decisão terminativa de comissão para o plenário.
6.2 Veto jurídico
A segunda hipótese encontra-se na participação do chefe do Poder Executivo no processo legislativo. O Presidente da República poderá vetar o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional por entendê-lo inconstitucional (CF, art. 66, § 1º). É o chamado veto jurídico.
Assim, no Brasil o controle preventivo de constitucionalidade é realizado sempre dentro do processo legislativo, em uma das hipóteses pelo Poder Legislativo (comissões de constituição e justiça) e em outra pelo Poder Executivo (veto jurídico).
7 CONTROLE REPRESSIVO DE CONSTITUCIONALIDADE
No direito constitucional brasileiro, em regra, foi adotado o controle de constitucionalidade repressivo jurídico ou judiciário, em que é o próprio Poder Judiciário quem realiza o controle da lei ou do ato normativo, já editados, perante a Constituição Federal, para retirá-los do ordenamento jurídico, desde que contrários à Carta Magna.
Há dois sistemas ou métodos de controle Judiciário de Constitucionalidade repressiva. O primeiro denomina-se reservado ou concentrado (via de ação), e o segundo, difuso ou aberto (via de exceção ou defesa).
Excepcionalmente, porém, a Constituição Federal previu duas hipóteses em que o controle de constitucionalidade repressivo será realizado pelo próprio Poder Legislativo. Em ambas as hipóteses, o
Poder Legislativo poderá retirar normas editadas, com plena vigência e eficácia, do ordenamento jurídico, que deixarão de produzir seus efeitos, por apresentarem um vício de inconstitucionalidade.
Vejamos primeiramente as exceções.
8 CONTROLE REPRESSIVO REALIZADO PELO PODER LEGISLATIVO
8.1 Art. 49, V, da Constituição Federal
A primeira hipótese refere-se ao art. 49, V, da Constituição Federal, que prevê competir ao Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa.
Em ambas as ocasiões, o Congresso Nacional editará um decreto legislativo sustando ou o decreto presidencial (CF, art. 84, IV) ou a lei delegada (CF, art. 68), por
desrespeito à forma constitucional prevista para suas edições.
8.2 Art. 62 da Constituição Federal
Uma vez editada a medida provisória pelo Presidente da República, nos termos do art. 62 da Constituição Federal, ela terá vigência e eficácia imediata, e força de lei, pelo prazo de 60 (sessenta) dias, devendo ser submetida de imediato ao Congresso Nacional, que poderá aprová-la, convertendo-a em lei, ou rejeitá-la.
Na hipótese de o Congresso Nacional rejeitar a medida provisória, com base em inconstitucionalidade apontada no parecer da comissão mista, estará exercendo controle de constitucionalidade repressivo, pois retirará do ordenamento jurídico a medida provisória flagrantemente inconstitucional.
Note-se que, enquanto espécie normativa, a medida provisória, uma vez editada, está perfeita e acabada, já tendo ingressado no ordenamento jurídico com força de lei independentemente de sua natureza temporária. Assim, o fato de o Congresso Nacional rejeitá-la, impedindo que se converta em lei, ou mesmo que fosse reeditada por ausência de deliberação, em face da flagrante inconstitucionalidade, consubstancia-se em controle repressivo.
Consagrando a ideia de existência de controle de constitucionalidade repressivo exercido em relação às medidas provisórias, por tratar-se de atos normativos perfeitos e acabados, apesar do caráter temporário, o Supremo Tribunal Federal admite serem as mesmas objeto de ação direta de inconstitucionalidade, ressaltando que a edição de medida provisória, pelo Presidente da República,
reveste-se de dois momentos significativos e inconfundíveis: o primeiro diz respeito a um ato normativo, com eficácia imediata de lei; o segundo é a sujeição desse ato ao Congresso Nacional, para que este não apenas ratifique seus efeitos imediatos produzidos, mas a converta em lei, com eficácia, definitiva. Dessa maneira, esse ato normativo poderá ser objeto de controle repressivo de constitucionalidade,26 seja por via de ação direta de inconstitucionalidade, seja por parte do Poder Legislativo.
9 CONTROLE REPRESSIVO REALIZADO PELO PODER JUDICIÁRIO
No Brasil, o controle de constitucionalidade repressivo judiciário é misto, ou seja, é exercido tanto da forma concentrada, quanto da forma difusa.
O art. 102, I, a, da CF afirma competir ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.
Por sua vez, o art. 97 estende a possibilidade do controle difuso também aos Tribunais, estabelecendo, porém, uma regra, ao afirmar que somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.
9.1 Difuso ou aberto
Também conhecido como controle por via de exceção ou defesa, caracteriza-se pela permissão a todo e qualquer juiz ou
tribunal realizar no caso concreto a análise sobre a compatibilidade do ordenamento jurídico com a Constituição Federal.27
A ideia de controle de constitucionalidade realizado por todos os órgãos do Poder Judiciário nasceu do caso Madison versus Marbury (1803), em que o Juiz Marshall da Suprema Corte Americana afirmou que é próprio da atividade jurisdicional interpretar e aplicar a lei. E ao fazê-lo, em caso de contradição entre a legislação e a Constituição, o tribunal deve aplicar esta última por ser superior a qualquer lei ordinária do Poder Legislativo.28
Na via de exceção, a pronúncia do Judiciário, sobre a inconstitucionalidade, não é feita enquanto manifestação sobre o objeto principal da lide, mas sim sobre questão prévia, indispensável ao julgamento do mérito. Nesta via, o que é
outorgado ao interessado é obter a declaração de inconstitucionalidade somente para o efeito de isentá-lo, no caso concreto, do cumprimento da lei ou ato, produzidos em desacordo com a Lei maior. Entretanto, este ato ou lei permanecem válidos no que se refere à sua força obrigatória com relação a terceiros.
Cappelletti resume o sistema comum de controle de constitucionalidade dos países da common law, denominando-os de descentralizado ou difuso, confiado a todos os tribunais do país. Estes tribunais, em qualquer processo, têm a faculdade e a obrigação de não aplicar a um caso concreto as leis e atos normativos que considerem inconstitucionais. Este controle não acarreta a anulação da lei ou do ato normativo com efeitos erga omnes, aplicando-se somente ao caso concreto em que a norma foi julgada inconstitucional.29
O Chief Justice Marshall indagou-se:
“Para que um juiz juraria desincumbir-se de seus deveres conforme a Constituição dos Estados Unidos, se aquela Constituição não formar regra para seu Governo? Se estiver muito acima dele, e não puder ser por ele inspecionada”?
Tendo respondido que
“se tal for o real estado das coisas, este será o pior dos vexames solenes. Prescrever ou realizar esta profanação torna-se igualmente um crime. Não é, também, inteiramente indigno de observação, que ao declarar qual será a lei suprema do País, a própria Constituição seja primeiramente mencionada: e não as leis dos Estados Unidos, geralmente, mas aquelas apenas que foram feitas em obediência à Constituição, gozarão daquele respeito. Portanto, a fraseologia particular
da Constituição dos Estados Unidos confirma e fortifica o princípio, considerado essencial a todas as Constituições escritas, de que uma lei em choque com a Constituição é revogada e que os tribunais, assim como outros departamentos, são ligados por aquele instrumento. A norma deve ser anulada”.30
Após o caso Marbury versus Madison, a Corte somente voltou a declarar a inconstitucionalidade de uma lei federal em 1857, no caso Dred Scott, quando entendeu incompatível com a Constituição a seção 8ª do Missouri Compromise Act, de 1850, que proibira a escravidão nos territórios.
Entendeu o então Chief Justice Taney, relator do caso, que esse dispositivo era contrário à 5ª Emenda (“ninguém poderá ser privado da vida, liberdade ou bens, sem processo legal; nem a propriedade
privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização”), pois, se fosse aplicado, estaria permitindo que um cidadão (proprietário do escravo) pudesse ser privado de seus bens e de sua propriedade (escravo), sem o devido processo legal. Essa decisão entendeu que os escravos deveriam ser considerados como propriedade e não como cidadãos.31 Como lembra Lêda Boechat, “foi tão grande a perda de prestígio da Corte, que ela custaria a recuperar a confiança popular depois dessa decisão”.32
Durante esse intervalo de tempo, constituído pelas decisões Marbury v. Madison e Scott v. Sandford, porém, a Suprema Corte firmou-se, sob a Presidência de Marshall, no exercício do controle de legalidade dos atos governamentais, decidindo sobre a ilegalidade dos atos presidenciais por violação expressa de
legislação específica do Congresso (caso Little versus Barreme – 1804), e ainda firmando sua competência para analisar a constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais, concedida pelo Congresso, na Seção 25 da Lei Judiciária de 1789, nos casos Warre versus Hylton (1797), Fletcher versus Pech (1810), Martin versus Hunter’s Lessee (1816) e Cohens versus Virginia (1821).33
Essa consolidação da Corte de Marshall garantiu, efetivamente, ao Judiciário norte-americano seu lugar entre os Poderes de Estado, pois como salienta Henry Abraham,
“a principal arma à disposição da Corte Suprema na disputa ou no jogo da separação de poderes com controles e avaliações tem sido seu poder dominante de revisão judicial, poder somente existente no Judiciário de pouco países”.34
No Brasil, a possibilidade de controle difuso de constitucionalidade existe desde a primeira Constituição republicana de 1891, que em seu artigo 59,35 como ressaltou Rui Barbosa,
“obriga esse tribunal a negar validade às leis federaes, quando contrarias à Constituição, e as leis federaes são contrarias à Constituição, quando o Poder Legislativo, adoptando taes leis, não se teve nos limites, em que a Constituição o autoriza a legislar, isto é, transpassou a competência, em que a Constituição o circunscreve”.36
Ressalte-se, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, sob inspiração norte-americana, nasceu com o papel de intérprete máximo da Constituição republicana, e o controle difuso de constitucionalidade instalou-se de forma efetiva no Brasil, com a Lei Federal
nº 221, de 1894, que concedeu competência aos juízes e tribunais para apreciarem a validade das leis e regulamentos e deixarem de aplicá-los aos casos concretos, se fossem manifestamente inconstitucionais.37
Importante ressaltar que a via de defesa poderá ser utilizada, também, através das ações constitucionais do habeas corpus, e do mandado de segurança ou ações ordinárias.38 Não sendo possível, porém, utilizar o HC como via adequada para obter a declaração concentrada de inconstitucionalidade de lei em tese.
O controle difuso caracteriza-se, principalmente, pelo fato de ser exercitável somente perante um caso concreto a ser decidido pelo Poder Judiciário. Assim, posto um litígio em juízo, o Poder Judiciário deverá solucioná-lo e para tanto,
incidentalmente, deverá analisar a constitucionalidade ou não da lei ou do ato normativo. A declaração de inconstitucionalidade é necessária para o deslinde do caso concreto, não sendo pois objeto principal da ação.39
9.1.1 Questão do art. 97 – cláusula de reserva de plenário
A inconstitucionalidade de qualquer ato normativo estatal só pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta da totalidade dos membros do tribunal ou, onde houver, dos integrantes do respectivo órgão especial, sob pena de absoluta nulidade da decisão emanada do órgão fraccionário (turma, câmara ou seção), em respeito à previsão do art. 97 da Constituição Federal.
Esta verdadeira cláusula de reserva de plenário atua como verdadeira condição de
eficácia jurídica da própria declaração jurisdicional de inconstitucionalidade dos atos do Poder Público, aplicando-se para todos os tribunais, via difusa, e para o Supremo Tribunal Federal, também no controle concentrado.40
Ressalte-se, inclusive, que na hipótese de não se obter maioria absoluta para a declaração de inconstitucionalidade no controle concentrado, apesar da existência de maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal não pronunciará juízo de constitucionalidade ou inconstitucionalidade com efeitos vinculantes, mantendo-se, porém, a vigência e eficácia da lei.41 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente proclamado que a desconsideração do princípio em causa gera, como inevitável efeito consequencial, a nulidade absoluta da decisão judicial
colegiada que, emanando de órgão meramente fracionário, haja declarado a inconstitucionalidade de determinado ato estatal.42
O Supremo Tribunal Federal, porém, entende, excepcionalmente, dispensável a aplicação do art. 97 da Constituição Federal, desde que presentes dois requisitos:
a. existência anterior de pronunciamento da inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal;
b. existência, no âmbito do tribunal a quo, e em relação àquele mesmo ato do Poder Público, de uma decisão plenária que haja apreciado a controvérsia constitucional, ainda que desse pronunciamento não tenha resultado o formal reconhecimento da
inconstitucionalidade da regra estatal questionada.43
Dessa forma, conforme entendimento da Corte Suprema, “versando a controvérsia sobre ato normativo já declarado inconstitucional pelo guardião maior da Carta Política da República – o Supremo Tribunal Federal – descabe o deslocamento previsto no art. 97 do referido Diploma maior. O julgamento de plano pelo órgão fracionado homenageia não só a racionalidade, como também implica interpretação teleológica do art. 97 em comento, evitando a burocratização dos atos judiciais no que nefasta ao princípio da economia e da celeridade. A razão de ser do preceito está na necessidade de evitar-se que órgãos fracionados apreciem, pela primeira vez, a pecha de inconstitucionalidade arguida em relação a um certo ato normativo”.44
O STF, no sentido de reforçar a exigência constitucional, editou a Súmula Vinculante 10, com o seguinte teor: “Viola a cláusula de reserva de Plenário (CF, artigo 97) a decisão do órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.”45
A cláusula de reserva de plenário não veda a possibilidade de o juiz monocrático declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público,46 mas, sim, determina uma regra especial aos tribunais para garantia de maior segurança jurídica. Além disso, não se aplica para a declaração de constitucionalidade dos órgãos fracionários dos tribunais.47
9.1.2 Controle difuso e Senado Federal (art. 52, X, CF)
O Supremo Tribunal Federal, decidindo o caso concreto poderá, incidentalmente, declarar, por maioria absoluta de seus membros, a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo do Poder Público (CF, art. 97; RISTF, arts. 176 e 177).48
A partir disso, poderá oficiar o Senado Federal, para que este, nos termos do art. 52, X, da Constituição, através da espécie normativa resolução, suspenda a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.49
Esse verdadeiro mecanismo de ampliação dos efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade, surgido na Constituição de 1934 e somente aplicável ao controle difuso (uma vez que no controle
concentrado os efeitos da decisão são erga omnes e vinculantes),50 tem por finalidade transformar em erga omnes os efeitos intrapartes da declaração realizada perante o julgamento de um caso concreto pelo STF, bem como em suspender os efeitos da lei viciada, para que não mais continue prejudicando a segurança jurídica.51
O Regimento Interno do Senado Federal prevê, em seu art. 386, que o Senado conhecerá da declaração, proferida em decisão definitiva pelo Supremo Tribunal Federal, de inconstitucionalidade, total ou parcial de lei mediante: comunicação do Presidente do Tribunal; representação do Procurador-Geral da República; projeto de resolução de iniciativa da comissão de constituição, justiça e cidadania.
A comunicação, a representação e o projeto acima referidos deverão ser instruídos com o texto da lei cuja execução se deva suspender, do acórdão do Supremo Tribunal Federal, do parecer do Procurador-Geral da República e da versão do registro taquigráfico do julgamento. Uma vez lida em plenário, a comunicação ou representação será encaminhada à comissão de constituição, justiça e cidadania, que formulará projeto de resolução suspendendo a execução da lei, no todo ou em parte.
Há, doutrinariamente, discussões sobre a natureza dessa atribuição do Senado Federal ser discricionária52 ou vinculada,53 ou seja, sobre a possibilidade de o Senado Federal não suspender a executoriedade da lei declarada inconstitucional, incidentalmente, pelo Supremo Tribunal Federal, pela via de defesa.
Ocorre que tanto o Supremo Tribunal Federal,54 quanto o Senado Federal,55 entendem que esse não está obrigado a proceder à edição da resolução suspensiva do ato estatal cuja inconstitucionalidade, em caráter irrecorrível, foi declarada in concreto pelo Supremo Tribunal; sendo, pois, ato discricionário do Poder Legislativo, classificado como deliberação essencialmente política, de alcance normativo,56 no sentido referido por Paulo Brossard, de que
“tudo está a indicar que o Senado é o juiz exclusivo do momento em que convém exercer a competência, a ele e só a ele atribuída, de suspender lei ou decreto declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. No exercício dessa competência cabe-lhe proceder com equilíbrio e isenção, sobretudo com prudência, como convém à
tarefa delicada e relevante, assim para os indivíduos, como para a ordem jurídica”.57
Assim, ao Senado Federal não só cumpre examinar o aspecto formal da decisão declaratória da inconstitucionalidade, verificando se ela foi tomada por quorum suficiente e é definitiva, mas também indagar da conveniência dessa suspensão.
A declaração de inconstitucionalidade é do Supremo, mas a suspensão é função do Senado. Sem a declaração, o Senado não se movimenta, pois não lhe é dado suspender a execução de lei ou decreto não declarado inconstitucional,58 porém a tarefa constitucional de ampliação desses efeitos é sua, no exercício de sua atividade legiferante.59
Porém, se o Senado Federal, repita-se, discricionariamente, editar a resolução suspendendo no todo ou em parte lei
declarada incidentalmente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, terá exaurido sua competência constitucional, não havendo possibilidade, a posteriori, de alterar seu entendimento para tornar sem efeito ou mesmo modificar o sentido da resolução.60
Ressalte-se, por fim, que essa competência do Senado Federal aplica-se à suspensão no todo ou em parte, tanto de lei federal, quanto de leis estaduais, distritais ou municipais, declaradas, incidentalmente, inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.61
Observe-se, porém, que, a partir da EC nº 45/04, nas questões constitucionais de repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal, analisando incidentalmente a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo, poderá, imediatamente e
respeitados os requisitos do art. 103-A da Constituição Federal, editar Súmula vinculante, que deverá guardar estrita especificidade com o assunto tratado, permitindo que se evite a demora na prestação jurisdicional em inúmeras e infrutíferas ações idênticas sobre o mesmo assunto.
Não mais será necessária a aplicação do art. 52, X, da Constituição Federal – cuja efetividade, até hoje, sempre foi reduzidíssima –, pois, declarando incidentalmente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, o próprio Supremo Tribunal Federal poderá editar Súmula sobre a validade, a interpretação e a eficácia dessas normas, evitando que a questão controvertida continue a acarretar insegurança jurídica e multiplicidade de processos sobre questão idêntica.
9.1.3 Efeitos da declaração de inconstitucionalidade – controle difuso
A. Entre as partes do processo (ex tunc)
Declarada incidenter tantum a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal, desfaz-se, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as consequências dele derivadas,62 uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados. Porém, tais efeitos ex tunc (retroativos) somente tem aplicação para as partes e no processo em que houve a citada declaração.
A natureza jurídica da lei ou ato normativo inconstitucional é de ato nulo, ou, como
bem salientou o Ministro Celso de Mello, “a lei inconstitucional nasce morta”.63
Em relação à limitação temporal de efeitos no controle difuso, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, em regra, “não se aplica o efeito ex tunc à declaração de inconstitucionalidade em processo de controle difuso”.64 Porém, como salienta o Ministro Gilmar Mendes, é possível a aplicação da limitação temporal de efeitos no sistema difuso,65 apontando, inclusive, a “impossibilidade de declaração de efeitos retroativos para o caso de declaração de nulidade de contratos trabalhistas”.66
Entendemos que, excepcionalmente, com base nos princípios da segurança jurídica e na boa-fé, será possível, no caso concreto, a declaração de inconstitucionalidade incidental com efeitos ex nunc, desde que razões de ordem pública ou social exijam.67
O Supremo Tribunal Federal decidiu, nesse sentido, “em face do princípio da segurança jurídica”; tendo o Ministro Gilmar Mendes destacado, ainda, que “a despeito de a ordem jurídica brasileira não possuir preceitos semelhantes aos da alemã, no sentido da intangibilidade dos atos não mais suscetíveis de impugnação, não se deveria supor que a declaração de nulidade afetasse todos os atos praticados com fundamento em lei inconstitucional. Nesse sentido, haver-se-ia de conceder proteção ao ato singular, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo e no plano das fórmulas de preclusão”.68 Igualmente, afirmou o Ministro Carlos Britto que o STF “pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia
prospectiva às suas decisões, com a delimitação dos respectivos efeitos”.69
Em relação à manipulação de efeitos no controle concentrado (art. 27 da Lei nº 9.868/99), denominada de modulação ou limitação temporal pelo Supremo Tribunal Federal, conferir item 10.9, neste capítulo.
B. Para os demais (ex nunc)
A Constituição Federal, porém, previu um mecanismo de ampliação dos efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (CF, art. 52, X). Assim, ocorrendo essa declaração, conforme já visto, o Senado Federal poderá editar uma resolução suspendendo a execução, no todo ou em parte, da lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, que terá efeitos erga omnes, porém, ex
nunc, ou seja, a partir da publicação da citada resolução senatorial.
9.1.4 Controle difuso de constitucionalidade em sede de ação civil pública
O controle de constitucionalidade difuso, conforme já estudado, caracteriza-se, principalmente, pelo fato de ser exercitável somente perante um caso concreto a ser decidido pelo Poder Judiciário. Assim, posto um litígio em juízo, o Poder Judiciário deverá solucioná-lo e para tanto, incidentalmente, poderá analisar a constitucionalidade ou não de lei ou do ato normativo – seja ele municipal, estadual, distrital ou federal. Dessa forma, em tese, nada impedirá o exercício do controle difuso de constitucionalidade em sede de ação civil pública, seja em relação às leis federais, seja em relação às leis estaduais,
distritais ou municipais em face da Constituição Federal (por ex.: O Ministério Público ajuíza uma ação civil pública, em defesa do patrimônio público, para anulação de uma licitação baseada em lei municipal incompatível com o art. 37 da Constituição Federal. O juiz ou Tribunal – CF, art. 97 – poderão declarar, no caso concreto, a inconstitucionalidade da citada lei municipal, e anular a licitação objeto da ação civil pública, sempre com efeitos somente para as partes e naquele caso concreto).70
Ocorre, porém, que, se a decisão do Juiz ou Tribunal, em sede de ação civil pública, declarando a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo – seja municipal, estadual, distrital ou federal –, em face da Constituição Federal gerar efeitos erga omnes, haverá usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, por ser o
único Tribunal em cuja competência encontra-se a interpretação concentrada da Constituição Federal.71
Nesses casos, não se permitirá a utilização de ação civil pública como sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade, a fim de exercer controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo.72
Observe-se que, mesmo em relação às leis municipais incompatíveis com a Constituição Federal, a inexistência de controle concentrado por parte do STF,73 salvo excepcionalmente pela via da ADPF, não afasta a total impossibilidade de o controle concentrado da Constituição Federal ser exercido por outro órgão do Poder Judiciário, a quem caberá nessas hipóteses tão somente o exercício do controle difuso de constitucionalidade.
O Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, afirmou ser “legítima a utilização da ação civil pública como instrumento de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, desde que a controvérsia constitucional não se identifique como objeto único da demanda, mas simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal”.74
Assim, o que se veda é a obtenção de efeitos erga omnes nas declarações de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em sede de ação civil pública, não importa se tal declaração consta como pedido principal ou como pedido incidenter tantum, pois mesmo nesse a declaração de inconstitucionalidade poderá não se restringir somente às partes daquele processo, em virtude da previsão dos
efeitos nas decisões em sede de ação civil pública dada pela Lei nº 7.347 de 1985.
Analisando esse complexo tema, especificamente em relação às declarações de inconstitucionalidade incidenter tantum em sede de ação civil pública que acabam gerando efeitos erga omnes, Arruda Alvim expõe que
“o que se percebe, claramente, é que, não incomumente, propõem-se ações civis públicas, de forma desconectada de um verdadeiro litígio, com insurgência, exclusivamente, contra um ou mais de um texto legal, e, o que se pretende na ordem prática ou pragmática é que, declarada a inconstitucionalidade de determinadas normas, não possam mais elas virem a ser aplicadas, no âmbito da jurisdição do magistrado ou do Tribunal a esses sobrepostos. Ou, se, linguisticamente, não
se diz isso, é o que, na ordem prática resulta de uma tal decisão. Ora, se se pretende que determinados textos não possam vir a ser aplicados, dentro de uma dada área de jurisdição, disto se segue tratar-se efetivamente de declaração in abstracto, da inconstitucionalidade, ainda que possa ter sido nominado de pedido de declaração incidenter tantum”.
e conclui o referido autor que
“por tudo que foi dito, afigura-se-nos que inconstitucionalidade levantada em ação civil pública, como pretenso fundamento da pretensão, mas em que, real e efetivamente o que se persiga seja a própria inconstitucionalidade, é arguição incompatível com essa ação e, na verdade, com qualquer ação por implicar usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal”.75
Ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal não admite ação civil pública em defesa de direitos coletivos ou difusos como sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade, vedando-a quando seus efeitos forem erga omnes76 e, portanto, idênticos aos da declaração concentrada de inconstitucionalidade. Diversa, porém, é a hipótese vislumbrada pelo Pretório Excelso quando se tratar de direitos individuais homogêneos, previstos no art. 81, inc. III, da Lei nº 8.078/90, pois nesses casos a decisão só alcançará este grupo de pessoas, e não estará usurpando a finalidade constitucional das ações diretas de inconstitucionalidade, sendo permitida.77 Como ressaltado pelo próprio STF, “situação diversa ocorreria se a ação civil pública estivesse preordenada a defender direitos difusos ou coletivos (incisos I e II do citado art. 81), quando,
então, a decisão teria efeito erga omnes, na acepção usual da expressão e, aí sim, teria os mesmos efeitos de uma ação direta, pois alçaria todos, partes ou não, na relação processual estabelecida na ação civil”.78
Em conclusão, o que se pretende vedar é a utilização da ação civil pública como sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade, de forma a retirar do Supremo Tribunal Federal o controle concentrado da constitucionalidade das leis e atos normativos federais e estaduais em face da Constituição Federal.79 Essa vedação aplica-se quando os efeitos da decisão da ação civil pública forem erga omnes, independentemente de tratar-se de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Por outro lado, não haverá qualquer vedação à declaração incidental de inconstitucionalidade (controle difuso)
em sede de ação civil pública, quando, conforme salientado pelo próprio Pretório Excelso, “tratar-se de ação ajuizada, entre partes contratantes, na persecução de bem jurídico concreto, individual e perfeitamente definido, de ordem patrimonial, objetivo que jamais poderia ser alcançado pelo reclamado em sede de controle in abstracto de ato normativo”,80 ou seja, nessas hipóteses, será plenamente admissível “a utilização de ação civil pública como instrumento de fiscalização incidental de constitucionalidade”.81
9.1.5 Controle difuso de constitucionalidade durante o processo legislativo
As normas de processo legislativo constitucional, previstas nos arts. 59 a 69 da Constituição Federal, possuem eficácia plena e imediata, vinculando a atividade
do legislador na elaboração das diversas espécies normativas em respeito ao devido processo legislativo. Conforme já analisado no capítulo anterior (Processo legislativo), o respeito ao devido processo legislativo na elaboração das diversas espécies normativas é um dogma corolário à observância do princípio da legalidade, pelo que sua observância deve, se necessário for, ser garantida jurisdicionalmente.82
Dessa forma, indiscutível a realização de controle de constitucionalidade difuso ou concentrado em relação a normas elaboradas em desrespeito ao devido processo legislativo, por flagrante inconstitucionalidade formal.83
Recorde-se da advertência feita por Nelson Sampaio, ao acentuar a necessidade de pleno controle de constitucionalidade no
processo de formação das leis, pois “as dificuldades de revisão constitucional são quase fictícias quando não há controle de constitucionalidade, pois então o poder legislativo é a última instância sobre o que é constitucional ou não.”84
Importante, porém, analisar-se a possibilidade de o controle jurisdicional incidir sobre o processo legislativo em trâmite,85 uma vez que ainda não existiria lei ou ato normativo passível de controle concentrado de constitucionalidade.
Assim, o controle jurisdicional sobre a elaboração legiferante, inclusive sobre propostas de emendas constitucionais,86 sempre se dará de forma difusa, por meio do ajuizamento de mandado de segurança por parte de parlamentares que se sentirem prejudicados durante o processo legislativo. Reitere-se que os únicos
legitimados à propositura de mandado de segurança para defesa do direito líquido e certo de somente participarem de um processo legislativo conforme as normas constitucionais e legais são os próprios parlamentares, cujo prosseguimento do processo, até decisão final do Supremo Tribunal Federal dependerá da manutenção do autor de sua condição de membro do Congresso Nacional (“relação de contemporaneidade”).87
Os parlamentares, portanto, poderão propiciar ao Poder Judiciário a análise difusa de eventuais inconstitucionalidades ou ilegalidades que estiverem ocorrendo durante o trâmite de projetos ou proposições por meio de ajuizamento de mandados de segurança contra atos concretos da autoridade coatora (Presidente ou Mesa da Casa Legislativa, por exemplo), de maneira a impedir o
flagrante desrespeito às normas regimentais ao ordenamento jurídico e coação aos próprios parlamentares, consistente na obrigatoriedade de participação e votação em um procedimento inconstitucional ou ilegal.88
Não raro o Poder Judiciário deverá analisar a constitucionalidade, ou não, de determinada sequência de atos durante certo processo legislativo tendente à elaboração de uma das espécies normativas primárias, uma vez que é a própria Constituição Federal que, com riqueza de detalhes, prevê as normas básicas e obrigatórias do devido processo legislativo (CF, arts. 59 a 69). Quando assim atuar, o Judiciário estará realizando controle difuso de constitucionalidade, para poder – no mérito – garantir aos parlamentares o exercício de seu direito líquido e certo a somente participarem da
atividade legiferante realizada em acordo com as normas constitucionais.
Igualmente, o flagrante desrespeito às normas regimentais,89 durante o processo legislativo, caracteriza clara ilegalidade, uma vez que os regimentos internos das Casas legislativas – Regimento interno do Congresso Nacional, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados – são resoluções, ou seja, espécies normativas primárias previstas diretamente na Constituição Federal (CF, art. 59, inc. VII). Entendemos que essa ilegalidade também será passível de controle jurisdicional, com base no art. 5º, inc. XXXV, da Carta Magna, pois a apreciação de lesão ou ameaça a direito jamais poderá ser afastada do Poder Judiciário. Dessa forma, os parlamentares são possuidores de legítimo interesse para o ajuizamento de mandado de segurança em defesa do
direito líquido e certo de somente participarem de um processo legislativo constitucional e legal, em conformidade com as normas da Constituição Federal e das resoluções, instrumentos formais que trazem os regimentos internos, não sendo, portanto, obrigados à participação e votação de um processo legislativo viciado, quer pela inconstitucionalidade, quer pela flagrante ilegalidade.
Diferentemente, porém, ocorre com a possibilidade de controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas.90 Nessas hipóteses, entendemos não ser possível ao Poder Judiciário, substituindo-se ao próprio legislativo, dizer qual o verdadeiro significado da previsão regimental, por tratar-se de assunto interna corporis, sob pena de ostensivo desrespeito à separação de Poderes (CF,
art. 2º), por intromissão política do Judiciário no Legislativo.91
Esse posicionamento, porém, não é unânime na doutrina. Manoel Gonçalves Ferreira Filho adota posição mais restrita em relação à possibilidade de controle jurisdicional em relação às normas regimentais, afirmando que “se a observância dos preceitos constitucionais é rigorosa, absoluta, a dos regimentais não o é. A violação regimental, por isso, é suscetível de convalidação, expressa ou implícita. Destarte, no caso das normas regimentais, o Judiciário só pode verificar se a violação desta impediu a manifestação da vontade da Câmara. Nesse caso, então, deverá reconhecer a invalidade das regras assim editadas”.92
9.1.6 Supremo Tribunal Federal e controle difuso de constitucionalidade durante o processo legislativo
O Supremo Tribunal Federal admite a possibilidade de controle de constitucionalidade durante o procedimento de feitura das espécies normativas, especialmente em relação à necessidade de fiel observância das normas constitucionais do referido processo legislativo93 (CF, arts. 59 a 69).
Em julgamento envolvendo proposta de emenda constitucional,94 o plenário do STF analisou detalhadamente qual a amplitude da atuação do Poder Judiciário, em sede de controle de constitucionalidade, durante o processo de elaboração legislativa, balizando-se básica e, simultaneamente, pela necessidade de defesa a lesão a
direito individual (CF, art. 5º, inc. XXXV) e da separação dos Poderes (CF, art. 2º).95
A matéria suscitou a formação de duas posições no Tribunal. Pela posição majoritária, confirmando tradicional entendimento do Pretório Excelso,96 compete ao Poder Judiciário analisar, em sede de mandado de segurança ajuizado por parlamentar, a regularidade na observância por parte do Congresso Nacional de normas constitucionais referentes ao processo legislativo, uma vez que os congressistas têm direito líquido e certo a não participarem de processo legislativo vedado pela Constituição Federal. Contrariamente, porém, entendeu-se que interpretações de normas regimentais, por tratarem de assunto interna corporis, são insuscetíveis de apreciação judiciária.
Trata-se de posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal.97
A segunda corrente formada sobre a matéria também consagrou a existência de direito líquido e certo dos parlamentares a participarem do devido processo legislativo, porém entendeu competir ao Poder Judiciário uma análise mais ampla desse devido processo legislativo, tanto em relação às normas constitucionais referentes ao processo legislativo (CF, arts. 59 a 69), quanto em relação às normas do regimento interno da Casa Legislativa, inclusive no tocante a suas interpretações, que deverá pautar-se pela constitucionalidade e legalidade.
Conforme expusemos no item anterior, concordamos com esse posicionamento.98
9.2 Controle concentrado ou via de ação direta
A Constituição austríaca de 1º-10-1920 consagrou, no dizer de Eisenmann, como forma de garantia suprema da Constituição,99 pela primeira vez, a existência de um tribunal – Tribunal Constitucional – com exclusividade para o exercício do controle judicial de constitucionalidade, em oposição ao consagrado judicial review norte-americano, distribuído por todos os juízes e tribunais.100
Hans Kelsen, criador do controle concentrado de constitucionalidade, justificou a escolha de um único órgão para exercer o controle de constitucionalidade salientando que
“se a Constituição conferisse a toda e qualquer pessoa competência para decidir esta questão, dificilmente poderia surgir uma lei que vinculasse os súditos do Direito
e os órgãos jurídicos. Devendo evitar-se uma tal situação, a Constituição apenas pode conferir competência para tal a um determinado órgão jurídico”,
para, posteriormente, concluir que
“se o controle da constitucionalidade das leis é reservado a um único tribunal, este pode deter competência para anular a validade da lei reconhecida como inconstitucional não só em relação a um caso concreto mas em relação a todos os casos a que a lei se refira – quer dizer, para anular a lei como tal. Até esse momento, porém, a lei é válida e deve ser aplicada por todos os órgãos aplicadores do Direito”.101
Nessa mesma época, na Alemanha, apesar de a Constituição de Weimar não prever regras sobre controle de constitucionalidade das leis imperiais,
desde abril de 1921, o Tribunal do Estado passou a consagrar a revisão jurisdicional das leis federais, iniciando-se o que a doutrina alemã considera como o embrião do controle jurisdicional de constitucionalidade.102
O controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade surgiu no Brasil por meio da Emenda Constitucional nº 16, de 6-12-1965, que atribuiu ao Supremo Tribunal Federal competência para processar e julgar originariamente a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, apresentada pelo Procurador-geral da República,103 apesar da existência da representação interventiva desde a Constituição de 1934.
Esse controle é exercido nos moldes preconizados por Hans Kelsen para o
Tribunal Constitucional austríaco e adotados, posteriormente, pelo Tribunal Constitucional alemão, espanhol, italiano e português, competindo ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual.104
Por meio desse controle, procura-se obter a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em tese, independentemente da existência de um caso concreto, visando-se à obtenção da invalidação da lei, a fim de garantir-se a segurança das relações jurídicas, que não podem ser baseadas em normas inconstitucionais.
A declaração da inconstitucionalidade, portanto, é o objeto principal da ação, da mesma forma que ocorre nas Cortes
Constitucionais europeias, diferentemente do ocorrido no controle difuso, característica básica do judicial review do sistema norte-americano.105
São várias as espécies de controle concentrado contempladas pela Constituição Federal:106
a. ação direta de inconstitucionalidade genérica (art. 102, I, a);
b. ação direta de inconstitucionalidade interventiva (art. 36, III);
c. ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º);
d. ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, a, in fine; EC nº 03/93);
e. arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º).107
10 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE GENÉRICA
10.1 Competência
Compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual.
O autor da ação pede ao STF que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual em tese (não existe caso concreto a ser solucionado). Visa-se, pois, obter a invalidação da lei, a fim de garantir-se a segurança das relações jurídicas, que não podem ser baseadas em normas inconstitucionais.
A declaração da inconstitucionalidade, portanto, é o objeto principal da ação, diferentemente do ocorrido no controle difuso.
10.2 Objeto
Haverá cabimento da ação direta de inconstitucionalidade para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou distrital, no exercício de competência equivalente à dos Estados-membros (cf. item 10.2.5), editados posteriormente à promulgação da Constituição Federal (cf. item 10.2.6) e que ainda estejam em vigor.
O Supremo Tribunal Federal não admite ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo já revogado108 ou cuja eficácia já tenha se exaurido109 (por exemplo: medida provisória não convertida em lei)110 entendendo, ainda, a
prejudicialidade da ação, por perda do objeto,111 na hipótese de a lei ou ato normativo impugnados virem a ser revogados antes do julgamento final da mesma,112 pois, conforme entende o Pretório Excelso, a declaração em tese de ato normativo que não mais existe transformaria a ação direta em instrumento processual de proteção de situações jurídicas pessoais e concreta.113
A ação direta de inconstitucionalidade, a partir da edição da Lei nº 9.868/99, tem natureza dúplice, pois sua decisão de mérito acarreta os mesmos efeitos, seja pela procedência (inconstitucionalidade), seja pela improcedência (constitucionalidade), desde que proclamada pela maioria absoluta dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Dessa forma, é possível afirmar que as ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade são “ações de sinais trocados”, pois ambas têm natureza dúplice e a procedência de uma equivale – integralmente – à improcedência da outra e vice-versa.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal afirmou que, “para efeito de controle abstrato de constitucionalidade de lei ou ato normativo, há similitude substancial de objetos nas ações declaratória de constitucionalidade e direta de inconstitucionalidade. Enquanto a primeira destina-se à aferição positiva de constitucionalidade a segunda traz pretensão negativa. Espécies de fiscalização objetiva que, em ambas, traduzem manifestação definitiva do Tribunal quanto à conformação da norma com a Constituição Federal. A eficácia
vinculante da ação declaratória de constitucionalidade, fixada pelo § 2º do artigo 102 da Carta da República, não se distingue, em essência, dos efeitos das decisões de mérito proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade”.114
10.2.1 Conceito de leis e atos normativos
O objeto das ações diretas de inconstitucionalidade genérica, além das espécies normativas previstas no art. 59 da Constituição Federal, engloba a possibilidade de controle de todos os atos revestidos de indiscutível conteúdo normativo.115 Assim, quando a circunstância evidenciar que o ato encerra um dever-ser e veicula, em seu conteúdo, enquanto manifestação subordinante de vontade, uma prescrição destinada a ser cumprida pelos órgãos destinatários,116 deverá ser considerado, para efeito de
controle de constitucionalidade, como ato normativo.117 Isso não impede, porém, o controle abstrato de constitucionalidade dos decretos autônomos (por exemplo: CF, art. 84, incisos VI e XII) ou, ainda, dos decretos que tenham extravasado o poder regulamentar do chefe do Executivo, invadindo matéria reservada à lei.118
Desta forma, absolutamente possível ao Supremo Tribunal Federal analisar a constitucionalidade ou não de uma emenda constitucional, de forma a verificar se o legislador-reformador respeitou os parâmetros fixados no art. 60 da Constituição Federal para alteração constitucional.119
Consideram-se atos normativos, por exemplo, a resolução administrativa dos Tribunais de Justiça,120 bem como deliberações administrativas de outros
órgãos do Poder Judiciário,121 inclusive dos Tribunais Regionais do Trabalho,122 salvo as convenções coletivas de trabalho.123
Ainda no conceito de atos normativos, encontram-se os atos estatais de conteúdo meramente derrogatório, como as resoluções administrativas, desde que incidam sobre atos de caráter normativo, revelando-se, pois, objeto idôneo para a instauração do controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.124 O Supremo Tribunal Federal reconheceu o caráter normativo em resolução do Conselho Internacional de Preços.125
Ressalte-se, porém, que atos estatais de efeitos concretos não se submetem, em sede de controle concentrado, à jurisdição constitucional abstrata, por ausência de
densidade normativa no conteúdo de seu preceito.126
Dessa forma, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal,
“a ação direta de inconstitucionalidade não constitui sucedâneo da ação popular constitucional, destinada, esta sim, a preservar, em função de seu amplo espectro de atuação jurídico-processual, a intangibilidade do patrimônio público e a integridade da moralidade administrativa (CF, art. 5º, LXXIII). A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem ressaltado que atos estatais de efeitos concretos não se expõem, em sede de ação direta, à jurisdição constitucional abstrata da Corte”.127
Ressalte-se, ainda, que a lei que veicular matéria estranha ao enunciado constante de sua ementa, por só esse motivo, não
ofende qualquer postulado constitucional, não vulnerando tampouco as regras de processo legislativo constitucional, pelo que excluída da possibilidade de declaração de inconstitucionalidade.128
A Súmula, porque não apresenta as características de ato normativo, também está excluída da jurisdição constitucional concentrada.129
Igualmente, não existe possibilidade de controle concentrado de constitucionalidade de respostas do Tribunal Superior Eleitoral às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político, nos termos do art. 23, XII, do Código Eleitoral, pois “trata-se de ato sem qualquer eficácia vinculativa aos demais órgãos do Poder Judiciário”,130 o que não impede, excepcionalmente, o controle concentrado
de resoluções do TSE que possuam caráter normativo e geral, como, por exemplo, a Resolução nº 21.702/04, cuja finalidade foi aplicar a todos os Municípios brasileiros a fórmula matemática criada pelo Supremo Tribunal Federal (Rextr. nº 197917/SP), com base no requisito constitucional da proporcionalidade, para definição do número de vereadores por Município.131
Nesse mesmo sentido, o STF “tem admitido o controle concentrado de constitucionalidade de preceitos oriundos da atividade administrativa dos tribunais, desde que presente, de forma inequívoca, o caráter normativo e autônomo do ato impugnado”.132
Em relação às medidas provisórias, não há dúvidas da absoluta possibilidade da incidência do controle abstrato de
constitucionalidade,133 como já anteriormente analisado.134
10.2.2 Impossibilidade do controle de constitucionalidade das normas originárias
As cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias inferiores em face de normas ou princípios constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado reformador, não englobando a própria produção originária.135
O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar a incondicional superioridade normativa da Constituição Federal, portanto, não adota a teoria alemã das normas constitucionais inconstitucionais (verfassungswidrige Verfassungsnormem),
que possibilita a declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais positivadas por incompatíveis com os princípios constitucionais não escritos e os postulados da justiça (Grundentscheidungen).136
Assim, não haverá possibilidade de declaração de normas constitucionais originárias como inconstitucionais.137
10.2.3 Controle concentrado de lei ou ato normativo municipal ou estadual em face das Constituições Estaduais
Em relação às leis ou atos normativos municipais ou estaduais contrários às Constituições Estaduais, compete ao Tribunal de Justiça local processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade.138
Ressalte-se que esta previsão é da própria Constituição Federal, ao dispor no art. 125,
§ 2º, que os Estados organizarão sua Justiça cabendo-lhes a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.
Note-se que, se a lei ou ato normativo municipal, além de contrariar dispositivos da Constituição Federal, contrariar, da mesma forma, previsões expressas do texto da Constituição Estadual, mesmo que de repetição obrigatória e redação idêntica,139 teremos a aplicação do citado art. 125, § 2º, da CF, ou seja, competência do Tribunal de Justiça do respectivo Estado-membro.140
Por fim, observe-se que quando tramitam simultânea e paralelamente duas ações diretas de inconstitucionalidade, uma
perante o Tribunal de Justiça local e outra em curso no Supremo Tribunal Federal, contra a mesma lei estadual impugnada em face de princípios constitucionais estaduais que são reprodução de princípios da Constituição Federal, suspende-se o curso da ação direta proposta perante o Tribunal estadual até o julgamento final da ação ajuizada perante a Suprema Corte.141
10.2.4 Controle concentrado de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Federal
A Constituição Federal, nas previsões dos arts. 102, I, a, e 125, § 2º, somente deixa em aberto uma possibilidade de impugnação em relação ao objeto, relacionada à competência para processar e julgar as ações diretas de inconstitucionalidade de leis ou atos
normativos municipais contrários, diretamente, à Constituição Federal.
Nessas hipóteses, será inadmissível ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal142 ou perante o Tribunal de Justiça local,143 inexistindo, portanto, essa espécie de controle concentrado de constitucionalidade, pois o único controle de constitucionalidade de lei e de ato normativo municipal em face da Constituição Federal que se admite, em regra, é o difuso, exercido incidenter tantum, por todos os órgãos do Poder Judiciário, quando do julgamento de cada caso concreto;144 e, excepcionalmente, presente observado princípio da subsidiariedade, mediante o controle concentrado de lei municipal a ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal mediante arguição de descumprimento de
preceito fundamental por equiparação (conferir item 14.2 neste capítulo).
O Supremo Tribunal Federal entende não ser possível nessa hipótese o controle concentrado pelo Tribunal de Justiça, pois tendo as decisões efeitos erga omnes, no âmbito estadual, a elas estaria vinculado o próprio Supremo Tribunal Federal, que deixaria de exercer sua missão constitucional de guardião da Constituição.145
10.2.5 Controle concentrado de lei ou ato normativo distrital em face da Constituição Federal
Em relação ao Distrito Federal, a Constituição Federal não foi explícita na previsão do controle de constitucionalidade concentrado de suas leis ou atos normativos. Porém, em virtude do art. 32 da Carta, o Distrito Federal possui as
competências administrativas e legislativas cumuladas dos Estados e dos Municípios.146
Nesta esteira, o Supremo Tribunal Federal entendeu possível, e de sua própria competência, a ação direta de inconstitucionalidade em face de lei ou ato normativo do Distrito Federal, desde que no exercício de competência estadual, que afrontar a Constituição Federal. Na hipótese, porém, de lei ou ato normativo distrital, no exercício de competência municipal, será inadmissível o controle concentrado, pois equivaleria à arguição de uma lei municipal em face da Constituição Federal, o que já verificamos ser impossível.147
10.2.6 Controle concentrado de lei ou ato normativo anterior à Constituição Federal
Importante, ainda, ressaltar que só há possibilidade de ação direta de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo editado posteriormente à Constituição.
A compatibilidade dos atos normativos e das leis anteriores com a nova Constituição será resolvida pelo fenômeno da recepção,148 uma vez que a ação direta de inconstitucionalidade não é instrumento juridicamente idôneo ao exame da constitucionalidade de atos normativos do Poder Público que tenham sido editados em momento anterior ao da vigência da Constituição atual.
Como ensinado por Paulo Brossard, “é por esta singelíssima razão que as leis anteriores à Constituição não podem ser inconstitucionais em relação a ela, que veio a ter existência mais tarde. Se entre ambas houver inconciliabilidade, ocorrerá revogação, dado que a lei posterior revoga
a lei anterior com ela incompatível, e a lei constitucional, como lei que é, revoga as leis anteriores que se lhe oponham”.149
A possibilidade de fiscalização da constitucionalidade de forma concentrada pelo Supremo Tribunal Federal por meio de ADI exige uma relação de contemporaneidade entre a edição da lei ou do ato normativo e a vigência da Constituição. A ausência dessa relação permitirá tão somente a análise em cada caso concreto da compatibilidade ou não da norma editada antes da Constituição com seu texto.150
Excepcionalmente, porém, desde que presentes os requisitos exigidos para a arguição de descumprimento de preceito fundamental, o Supremo Tribunal Federal entendeu possível o controle concentrado de lei anterior à edição da Constituição
Federal nos termos da Lei nº 9.882/99 (conferir item 14.2, neste capítulo),151 criando verdadeiro controle concentrado de recepção em nosso ordenamento jurídico.
10.2.7 Controle concentrado e respeito à legalidade
A ação direta de inconstitucionalidade não é instrumento hábil para controlar a compatibilidade de atos normativos infralegais em relação à lei a que se referem, pois as chamadas crises de legalidade, como acentua o Supremo Tribunal Federal, caracterizadas pela inobservância do dever jurídico de subordinação normativa à lei, escapam do objeto previsto pela Constituição Federal.152
Dessa forma, como destaca o STF, “se o ato regulamentar vai além do conteúdo da lei, ou se afasta dos limites que esta lhe traça, pratica ilegalidade e não
inconstitucionalidade, pelo que não se sujeita à jurisdição constitucional”.153
10.2.8 Tratados internacionais e controle de constitucionalidade
A EC nº 45/04 concedeu ao Congresso Nacional, somente na hipótese de tratados e convenções internacionais que versem sobre Direitos Humanos, a possibilidade de incorporação com status ordinário (CF, art. 49, I) ou com status constitucional (CF, § 3º, art. 5º).
Os atos e tratados internacionais para serem incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, em regra, necessitam de referendo do Congresso Nacional (CF, art. 49, I), via decreto legislativo e posterior edição de Decreto Presidencial, promulgando e publicando o ato/tratado, dando-lhe executoriedade, conforme já
analisado no capítulo destinado ao processo legislativo.
Devidamente incorporado, esse ato normativo caracteriza-se como infraconstitucional para efeitos de controle de constitucionalidade, conforme já analisado no Capítulo 11 (item 4.5.3 – Tratados e atos internacionais e incorporação com status ordinário ou constitucional – Direitos Humanos), salvo na hipótese do § 3º, do art. 5º, pelo qual a EC nº 45/04 estabeleceu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Assim, os compromissos assumidos pelo Brasil em virtude de atos, tratados, pactos
ou acordos internacionais de que seja parte, devidamente ratificados pelo Congresso Nacional e promulgados e publicados pelo Presidente da República, apesar de ingressarem no ordenamento jurídico constitucional (CF, art. 5º, § 2º), não minimizam o conceito de soberania do Estado-povo na elaboração de sua constituição, devendo, pois, sempre ser interpretados com as limitações impostas constitucionalmente. Como anotam Canotilho e Moreira, analisando o art. 8º da Constituição da República Portuguesa que traz regra semelhante, “as normas de direito internacional público vigoram na ordem interna com a mesma relevância das normas de direito interno, desde logo quanto à subordinação à Constituição – sendo, pois, inconstitucionais se infringirem as normas da constituição ou os seus princípios”.154
Conclui-se, portanto, pela supremacia das normas constitucionais em relação aos tratados e atos internacionais, mesmo que devidamente ratificados pelo Congresso Nacional (CF, art. 49, I) e promulgados e publicados pelo Presidente da República (CF, art. 84, VIII),155 e, consequentemente, plena possibilidade de incidência do controle de constitucionalidade.
Podemos, portanto apontar algumas características relacionadas ao controle de constitucionalidade dos atos ou tratados internacionais devidamente incorporados no ordenamento jurídico nacional:
• os tratados e convenções internacionais ao serem incorporados formalmente ao ordenamento jurídico nacional qualificam-se como atos normativos infraconstitucionais.156 Ocorrendo a incorporação dos atos e tratados
internacionais pelo direito interno, essas normas situam-se no mesmo plano de validade e eficácia das normas ordinárias;157
• não existe hierarquia entre as normas ordinárias de direito interno e as decorrentes de atos ou tratados internacionais. A ocorrência de eventual conflito entre essas normas será resolvida ou pela aplicação do critério cronológico, devendo a norma posterior revogar a anterior, ou pelo princípio da especialidade;158
• esses atos normativos são passíveis de controle difuso e concentrado de constitucionalidade, pois apesar de originários de instrumento internacional não guardam nenhuma validade no ordenamento jurídico interno se
afrontarem qualquer preceito da Constituição Federal.159
Na hipótese do § 3º, do art. 5º, pelo qual a EC nº 45/04 estabeleceu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais, plenamente possível ao Supremo Tribunal Federal a análise da constitucionalidade ou não do texto incorporado com status constitucional, desde que se verifique o respeito aos parâmetros fixados no art. 60 da Constituição para a alteração do texto constitucional.
Observe-se, porém, que o Supremo Tribunal Federal alterou seu tradicional posicionamento, passando a proclamar –
por maioria – o status da supralegalidade dos tratados internacionais incorporados no ordenamento jurídico brasileiro antes da EC nº 45/04.
A Corte decidiu, em relação à vedação da prisão civil do depositário infiel, que “a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII, da CF”; concluindo, que “com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel”.160
Dessa forma, o STF manteve a supremacia das normas constitucionais sobre o referido
Pacto, porém inclinou-se pela interpretação da revogação das normas infraconstitucionais que disciplinavam a referida prisão civil, tendo inclusive, revogado sua Súmula 619 do STF (“A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”).
10.2.9 Controle de constitucionalidade e decretos
O Supremo Tribunal Federal, excepcionalmente, tem admitido ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto seja decreto, quando este, no todo ou em parte, manifestamente não regulamenta lei, apresentando-se, assim, como decreto autônomo. Nessa hipótese, haverá possibilidade de análise de compatibilidade diretamente com a
Constituição Federal para verificar-se a observância do princípio da reserva legal.161
Assim, em relação aos decretos presidenciais (CF, art. 84, IV), o Supremo Tribunal Federal, após consagrar o entendimento de que existem para assegurar a fiel execução das leis,162 entende possível o controle concentrado de constitucionalidade dos denominados decretos autônomos,163 afirmando que, “não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição exige”.164
Nos demais casos, a questão situa-se somente no âmbito legal, não
possibilitando o conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade.165
Assim, decreto executivo que, editado para regulamentar a lei, venha a divergir de seu sentido ou conteúdo, extravasando a previsão do art. 84, IV, da Constituição Federal (insubordinação executiva),166 não poderá ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade, mesmo que essa violação, reflexa e indiretamente, atinja o texto constitucional, pois o regulamento contrário à lei é ilegal.167
Da mesma forma, em todas as hipóteses em que a edição de atos normativos secundários, em função das leis que pretendem regulamentar, apresentarem vícios jurídicos, por desrespeito à subordinação normativa à lei, não caberá ação direta de inconstitucionalidade,
devendo o problema ser solucionado pela supremacia da aplicação da lei.168
10.3 Legitimação
A Constituição de 1988, alterando uma tradição em nosso direito constitucional, que a reservava somente ao Procurador-Geral da República, ampliou a legitimidade para propositura da ação direta de inconstitucionalidade, transformando-a em legitimação concorrente.169
Dessa forma, são legitimados: o Presidente da República,170 a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal,171 o Governador do Estado ou do Distrito Federal,172 o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e
confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Observe-se que a legitimidade ativa para propositura da ação direta engloba a legitimidade recursal.173
10.3.1 ADIn e pertinência temática
Para alguns dos legitimados do art. 103 da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal exige a presença da chamada pertinência temática, definida como o requisito objetivo da relação de pertinência entre a defesa do interesse específico do legitimado e o objeto da própria ação.174
Assim, enquanto se presume de forma absoluta a pertinência temática para o Presidente da República, Mesa do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, Procurador-Geral da República, Partido Político com representação no Congresso Nacional e Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, em face de suas próprias atribuições institucionais,175 no que se denomina legitimação ativa universal,176 exige-se a prova da pertinência por parte da Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal,177 do Governador do Estado ou do Distrito Federal178 das confederações sindicais ou entidades de âmbito nacional.179
10.3.2 ADIn e entidades de classe ou confederações sindicais
Em relação às confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional importante ressaltar que sua amplitude global deve ser verificada para análise de sua legitimidade,180 bem como tratar-se de entidade na defesa de uma categoria profissional, cujo conteúdo seja “imediatamente dirigido à ideia de
profissão, – entendendo-se classe no sentido não de simples segmento social, de classe social, mas de categoria profissional”.181
Não se reconhece a legitimidade para propositura de ações diretas de inconstitucionalidade às entidades sindicais de composição heterogênea, em cujo âmbito podem congregar-se tanto entes civis quanto, até mesmo, pessoas jurídicas de direito público.182 Da mesma maneira, o STF não reconhece legitimidade para as associações que representam somente uma fração de categoria profissional e cuja norma objeto da ação acabe por extrapolar o universo de seus próprios representados.183
Ainda em relação à legitimidade, o Supremo Tribunal Federal, alterando posicionamento fixado desde a edição da
CF/88, no sentido de ausência de legitimação ativa para o processo de controle abstrato de constitucionalidade, das entidades de classe de âmbito nacional, compostas de pessoas jurídicas (verdadeiras associações de associações),184 passou a entender que a “associação de associações” possui “legitimidade ad causam, haja vista ser entidade de classe que atua na defesa da mesma categoria social, apesar de se reunir em associações correspondentes a cada Estado”.185
10.3.3 Partidos políticos com representação no Congresso Nacional
O constituinte de 1988, ao possibilitar aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional a legitimação ativa universal para a propositura das ações diretas de inconstitucionalidade, rejeitou, conforme salienta Gilmar Ferreira Mendes,
modelo usualmente adotado no Direito Constitucional de outros países, que outorga legitimidade para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade a determinado número de parlamentares.186 Assim, a exigência de partido com representação no Congresso Nacional é satisfeita com a representação singular, ou seja, a existência de um parlamentar, em qualquer das Casas Legislativas, filiado a determinado partido político.
Observe-se que nem o diretório regional, nem a executiva regional estão autorizados à propositura de ação direta de inconstitucionalidade, pois não podem agir, nacionalmente, em nome do Partido Político. Como salienta o Pretório Excelso, “a Constituição Federal ao atribuir no art. 103, VIII, competência a Partido Político com representação no Congresso Nacional, referiu-se à sua representação nacional,
uma vez que, o órgão regional não representa o partido político, senão nos limites de sua atuação estadual”.187 Esta representação deverá ser realizada pelo Diretório Nacional ou pela Executiva do Partido, nos moldes de sua própria constituição interna.
O Supremo Tribunal Federal, alterando seu tradicional posicionamento, passou a proclamar que “a aferição da legitimidade deve ser feita no momento da propositura da ação e que a perda superveniente de representação do partido político no Congresso Nacional não o desqualifica como legitimado ativo para a ação direta de inconstitucionalidade”.188 Dessa forma, na hipótese de o partido político deixar de possuir representação congressual durante a tramitação da ação direta de inconstitucionalidade, não mais haverá
perda superveniente de legitimidade e consequente prejudicialidade da ação.189
Ressalte-se, novamente, que os partidos políticos têm legitimação ativa universal para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, independentemente das restrições decorrentes da já estudada pertinência temática.190
10.3.4 Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal
A Constituição Federal determina no § 4º, do art. 57, que cada Casa legislativa se reunirá, a partir de 1º de fevereiro, para a eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.
A Mesa da Câmara dos Deputados é regulamentada pelo art. 14 do seu Regimento Interno, compondo-se de
presidência e secretaria, sendo a primeira, do presidente e de dois vice-presidentes; e a segunda, de quatro secretários, eleitos pela maioria de seus membros. O inciso IV, do citado art. 14, diz que a Mesa, por iniciativa própria ou a requerimento de deputado ou comissão, poderá propor ação direta de inconstitucionalidade.
A Mesa do Senado Federal é regulamentada pelo art. 46 de seu Regimento Interno, e compõe-se de presidente, dois vice-presidentes e quatro secretários, que serão eleitos em escrutínio secreto e maioria de votos, presente a maioria da composição da Casa, assegurada, tanto quanto possível, a participação proporcional das representações partidárias ou dos blocos parlamentares com atuação no Senado.191
As Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados são órgãos distintos da Mesa do Congresso Nacional (CF, art. 57, § 5º), que será presidida pelo Presidente do Senado Federal, e os demais cargos serão exercidos, alternadamente, pelos ocupantes de cargos equivalentes na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Dessa forma, o Presidente do Congresso Nacional será o Presidente do Senado Federal, o 1º Vice do Congresso será o 1º Vice da Câmara dos Deputados, o 2º Vice do Congresso Nacional será o 2º Vice do Senado Federal, e assim sucessivamente.
A Mesa do Congresso Nacional não possui legitimidade para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade.
10.4 Finalidade da ação direta de inconstitucionalidade
A finalidade da ação direta de inconstitucionalidade é retirar do ordenamento jurídico lei ou ato normativo incompatível com a ordem constitucional, constituindo-se, pois, uma finalidade de legislador negativo do Supremo Tribunal Federal, nunca de legislador positivo.192 Assim, não poderá a ação ultrapassar seus fins de exclusão, do ordenamento jurídico, dos atos incompatíveis com o texto da Constituição.193
A ação direta de inconstitucionalidade, em virtude de sua natureza e finalidade especial, não é suscetível de desistência.194
Conforme aponta Gilmar Ferreira Mendes, a jurisprudência tedesca do Bundesverfassungsgericht direciona-se no mesmo sentido, “por militarem razões de ordem pública que estariam em perfeita compatibilidade com o caráter oficial do
processo”, e mais adiante indica que o Supremo Tribunal Federal, inicialmente, admitia a desistência da ação proposta, tendo, porém, afastado esse entendimento e, desde 1970, seu regimento interno, expressamente, consagra a inadmissibilidade da desistência da ação.195
Ressalte-se, ainda, que, em face desse princípio da indisponibilidade, o autor da ação direta de inconstitucionalidade também está impedido de desistir do pedido de medida cautelar formulado.196
10.5 Pedido de cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade
O art. 102, I, p, da Constituição Federal, prevê a possibilidade de solicitação de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade,197 necessitando, porém, de comprovação de perigo de lesão
irreparável, uma vez tratar-se de exceção ao princípio segundo o qual os atos normativos são presumidamente constitucionais,198 pois, conforme ensinamento de Paulo Brossard, “segundo axioma incontroverso, a lei se presume constitucional. A lei se presume constitucional, porque elaborada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo Poder Executivo, isto é, por dois dos três poderes, situados no mesmo plano que o Judiciário”.199 Como salienta Ives Gandra Martins, por
“ser da natureza dessa medida garantir os efeitos definitivos da ação – visto que no processo cautelar garante a liminar a utilidade do provimento decorrente de prestação jurisdicional principal, ao contrário da liminar em mandado de segurança, que garante o próprio direito lesado ou ameaçado – tem o STF entendido
desde a Representação 1.391/CE que os efeitos da liminar são ex nunc e não ex tunc... O que tem decidido a Suprema Corte, nas liminares concedidas contra o Poder Público no processo cautelar de ações diretas, é que a liminar suspende a eficácia e a vigência da norma, mas não desconstitui ainda as relações jurídicas constituídas e completadas. Em outras palavras, as relações jurídicas já constituídas, à luz de um direito tido por constitucional, não serão desconstituídas por força da medida liminar, mas apenas pela decisão definitiva ou pela discussão em sede de controle difuso”.200
A análise dos requisitos do fumus boni iuris e periculum in mora para a concessão de medida liminar em sede de controle abstrato de constitucionalidade admite maior discricionariedade por parte do Supremo Tribunal Federal (conveniência
política da suspensão da eficácia), que deverá analisar a “conveniência da suspensão cautelar da lei impugnada”,201 permitindo, dessa forma, uma maior subjetividade na análise da “relevância do tema, bem assim em juízo de conveniência, ditado pela gravidade que envolve a discussão”,202 bem como da “plausibilidade inequívoca” e dos evidentes “riscos sociais ou individuais, de várias ordens, que a execução provisória da lei questionada gera imediatamente”,203 ou, ainda, das “prováveis repercussões” pela manutenção da eficácia do ato impugnado204 e da “relevância da questão constitucional”205 e “relevância da fundamentação da arguição de inconstitucionalidade, além da ocorrência de periculum in mora, tais os entraves à atividade econômica”.206
Conforme acentuou o Ministro Gilmar Mendes, “ao adotar o conceito jurídico
indeterminado de conveniência política da suspensão da eficácia, procurou o Tribunal desenvolver um conceito geral que lhe outorgue maior liberdade para avaliar a necessidade ou não de suspensão cautelar da lei ou do ato normativo. É certo, por outro lado, que a utilização desse conceito permite que o Supremo Tribunal desenvolva um modelo diferenciado para o processo cautelar da ação direta de inconstitucionalidade, tanto quanto possível distinto do processo cautelar convencional”.207
Dessa maneira, a eficácia da liminar nas ações diretas de inconstitucionalidade, que suspende a vigência da lei ou do ato normativo arguido como inconstitucional, opera com efeitos ex nunc, ou seja, não retroativos, portanto, a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal a defere, sendo incabível a realização de ato
com base na norma suspensa.208 Excepcionalmente, porém, desde que demonstrada a conveniência e declarando expressamente, o Supremo Tribunal Federal concede medidas liminares com efeitos retroativos (ex tunc).209 Esse entendimento pacificado no STF foi formalizado pela Lei nº 9.868/99, que, no § 1º de seu art. 11, estabelece que a medida cautelar, dotada de eficácia contra todos, será concedida com efeitos ex nunc, salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa.
Observe-se, conforme entendimento do STF, que “a obrigatoriedade de observância da decisão de liminar, em controle abstrato realizado pelo Supremo Tribunal Federal, impõe-se com a publicação da ata da sessão de julgamento no Diário da Justiça. O ajuizamento de reclamação independe tanto da publicação do acórdão cuja
autoridade se quer garantir como de sua juntada”.210
Dessa forma, a concessão da medida cautelar produzirá, em regra, efeitos não retroativos – pois ainda não houve declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, mas sim a suspensão de sua eficácia – e em relação a todos, por tratar-se de controle abstrato de constitucionalidade. Entendendo, ainda, o Supremo Tribunal Federal possuir efeitos vinculantes somente a concessão da medida liminar, jamais sua negativa.211
A Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, ao disciplinar o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, estabeleceu que, salvo no período de recesso, a medida cautelar será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do
Tribunal, presentes na seção no mínimo 8 (oito) ministros, e após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias. Essa audiência poderá ser dispensada em caso de excepcional urgência.
A lei prevê, ainda, que o relator, julgando indispensável, ouvirá o Advogado-Geral da União e o procurador-geral da República, no prazo de 3 (três) dias.
No julgamento do pedido de medida cautelar, será facultada sustentação oral aos representantes judiciais do requerente e das autoridades ou órgãos responsáveis pela expedição do ato, na forma estabelecida pelo Regimento do Supremo Tribunal Federal.
A concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior, uma vez
que suspensos os efeitos da lei ou ato normativo impugnado, suspende-se também a revogação que havia ocorrido. A Lei nº 9.868/99, porém, autoriza que o Supremo Tribunal Federal decida a questão de forma diversa (art. 11, § 2º).
Dessa forma, a concessão da medida liminar possui efeitos repristinatórios, ou seja, a suspensão da eficácia da lei ou ato normativo objeto de impugnação acarretará o retorno provisório da vigência e eficácia da lei anteriormente revogada, até o julgamento do mérito da ação.212
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende que o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade, após o transcurso de significativo lapso de tempo, demonstra a ausência do requisito do periculum in mora, necessário para a concessão de liminar.213
Ressalte-se, por fim, a plena possibilidade de reiteração do pedido de concessão de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade, desde que ocorram fatos supervenientes que autorizem a suspensão da eficácia da lei ou do ato normativo impugnado.214
10.6 Ação direta de inconstitucionalidade e prazo decadencial
O ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade não se sujeita à observância de qualquer prazo de natureza prescricional ou de caráter decadencial, pois os atos inconstitucionais jamais se convalidam pelo decurso do tempo.215
10.7 Advogado-Geral da União
Compete ao Advogado-Geral da União, em ação direta de inconstitucionalidade, a defesa da norma legal ou ato normativo impugnado, independentemente de sua
natureza federal ou estadual,216 pois atua como curador especial do princípio da presunção da constitucionalidade das leis e atos normativos, não lhe competindo opinar nem exercer a função fiscalizadora já atribuída ao Procurador-Geral da República, mas a função eminentemente defensiva.217
Dessa forma, atuando como curador da norma infraconstitucional, o Advogado-Geral da União está impedido constitucionalmente de manifestar-se contrariamente a ela, sob pena de frontal descumprimento da função que lhe foi atribuída pela própria Constituição Federal, e que configura a única justificativa de sua atuação processual, neste caso.218 O STF prevê, excepcionalmente, a possibilidade de o Advogado-Geral da União deixar de exercer sua função constitucional de
curador especial do princípio da constitucionalidade das leis e atos normativos, quando houver precedente da Corte pela inconstitucionalidade da matéria impugnada.219
Ainda, excepcionalmente, a Corte, a partir de interpretação sistemática do texto constitucional, passou a permitir à Advocacia-Geral da União manifestar-se livremente em sede de controle abstrato de constitucionalidade – mesmo que isso signifique posicionar-se pela declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada – sempre que os interesses da União colidirem com a manutenção da norma no ordenamento jurídico. O STF, ainda, salientou que “a despeito de reconhecer que nos outros casos a AGU devesse exercer esse papel de contraditora no processo objetivo, constatou-se um problema de ordem prática, qual seja, a
falta de competência da Corte para impor-lhe qualquer sanção quando assim não procedesse, em razão da inexistência de previsão constitucional para tanto”.220
Como regra, porém, a atuação do Advogado-Geral da União permanece, como salientado pelo Supremo Tribunal Federal, de “curador da lei atacada, não lhe sendo dado, sob pena de inobservância do múnus público, adotar posição diametralmente oposta, como se atuasse como fiscal da lei, qualidade reservada, no controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo, ao Procurador-Geral da República”.221
Observe-se que o Advogado-Geral da União não possui legitimidade para o controle concentrado de constitucionalidade, qualquer que seja sua espécie (ADI, ADC, ADPF, ADI-Omissão), havendo necessidade
da assinatura do Presidente da República,222 esse sim legitimado constitucionalmente.
10.8 Procedimento e decisão
A Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, estabelece o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade genérica, devendo ser aplicada em adequação às normas constitucionais.223 O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal deve ser aplicado subsidiariamente.224
A petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, que permitirá
aditamentos,225 desde que antes da requisição de informações ao órgão editor do ato impugnado,226 “deverá expor os fundamentos jurídicos do pedido com relação às normas impugnadas, não sendo admitida alegação genérica sem demonstração compatível e razoável”,227 nem tampouco ataque generalizado a diversas leis ou atos normativos com alegações por amostragem.
A petição inicial será apresentada em duas vias, devendo conter cópias da lei ou do ato normativo impugnado e dos documentos necessários para comprovação da impugnação e indicará o dispositivo da lei ou do ato normativo impugnado e os fundamentos jurídicos do pedido em relação a cada uma das impugnações. Além disso, deverá individualizar o pedido, com suas especificações.
A Lei nº 9.868/99, seguindo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, exige instrumento de procuração quando a petição inicial for subscrita por advogado.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal determinou que todas as procurações ou delegações outorgadas pelos autores de ação direta (CF, art. 103), a seus Advogados e Procuradores, contenham poderes especiais para a instauração do pertinente processo de controle normativo abstrato perante esta Corte, com a indicação objetiva do diploma legislativo ou do ato normativo, e respectivos preceitos (quando for o caso), que devam expor-se, especificamente, à impugnação em sede de ação direta de inconstitucionalidade”.228
A petição inicial inepta, não fundamentada e a manifestamente improcedente serão liminarmente indeferidas pelo relator, cabendo agravo ao plenário do Tribunal.
Assim, ajuizada a ação, o relator pedirá informações à autoridade da qual tiver emanado o ato, seja do Executivo, do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa, ou ainda do Judiciário, se for o caso. As informações serão prestadas no prazo de 30 dias, contados do recebimento do pedido, podendo ser dispensadas, em caso de urgência, pelo relator ad referendum do Tribunal. Recebidas as informações, ou mesmo sem elas, o Advogado-Geral da União será, previamente, citado para defender o ato impugnado, sendo abertas vistas ao Procurador-Geral da República, que deverão manifestar-se, sucessivamente, no prazo de 15 dias.
Observe-se que o Procurador-Geral da República, por determinação expressa do § 1º, do art. 103, da Constituição Federal, será ouvido em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal.229
O Procurador-Geral da República, mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por ele propostas, em virtude da independência funcional dos membros do Ministério Público (CF, art. 127, § 1º), poderá ao final manifestar-se por sua improcedência,230 o que, certamente, não vinculará o Tribunal na apreciação da matéria.231 Ressalte-se, porém, conforme já analisado no item 10.4, que o Procurador-Geral da República não poderá desistir de ação direta de inconstitucionalidade já proposta.232
O relator está autorizado pela lei, em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, a requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para que, em audiência pública,233 sejam ouvidos depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.
A lei, ainda, autoriza o relator a solicitar informações aos Tribunais Superiores, aos Tribunais federais e aos Tribunais estaduais em relação à aplicação da norma impugnada no âmbito de sua jurisdição. Em qualquer das hipóteses, o prazo para manifestação será de 30 dias, a partir da solicitação do relator.234
Ressalte-se, ainda, que a Lei nº 9.868/99 estabeleceu a possibilidade de um procedimento mais célere nas ações diretas de inconstitucionalidade, desde que haja pedido de medida cautelar.
Nessa hipótese, e entendendo o relator existir relevância da matéria e especial significado para a ordem social e segurança jurídica, poderá, após a prestação de informações no prazo de dez dias e a manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias, submeter o processo diretamente ao Tribunal, que optará entre somente julgar o pedido de medida cautelar, ou julgar definitivamente a ação.
10.8-A Amicus curiae e democratização do controle concentrado de constitucionalidade
A Lei nº 9.868/99 passou a permitir que o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes (adequacy of representation),235 possa, por despacho irrecorrível, admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades, tendo, porém, o Supremo Tribunal Federal relativizado essa irrecorribilidade, autorizando a possibilidade de recurso pelo amicus curiae da decisão que haja denegado seu pedido de admissão no processo. O Plenário do STF decidiu ser irrecorrível a decisão denegatória de ingresso, no feito, como amicus curiae.236
A importância e relevância da figura do amicus curiae, que, uma vez admitido, deve ter ampla participação,237 foram ressaltadas pelo Ministro Gilmar Mendes, ao ensinar que “evidenciou a relevância do amicus curiae como fonte de informação
para a Corte, além de cumprir função integradora importante no Estado de Direito, tendo em conta o caráter pluralista e aberto de sua admissão, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais”.238
Essa inovação passou a consagrar, no controle abstrato de constitucionalidade brasileiro,239 a figura do amicus curiae, ou “amigo da Corte”, cuja função primordial é juntar aos autos parecer ou informações com o intuito de trazer à colação considerações importantes sobre a matéria de direito a ser discutida pelo Tribunal, bem como acerca dos reflexos de eventual decisão sobre a inconstitucionalidade da espécie normativa impugnada, dispondo, conforme salientado pelo STF, “da faculdade de submeter ao relator da causa propostas de requisição de informações
adicionais, de designação de peritos, de convocação de audiência públicas”.
Em face do processo objetivo que rege o controle concentrado de constitucionalidade e, consequentemente, da existência de causa de pedir aberta, torna-se importante a possibilidade da opinião do amicus curiae, permitindo-se, pois, ao Tribunal o conhecimento pleno das posições jurídicas e dos reflexos diretos e indiretos relacionados ao objeto da ação,240 mesmo que seu ingresso ocorra após o término do prazo de informações.241
Como ressaltado pelo Ministro Gilmar Mendes,
“é possível cogitar de hipóteses de admissão de amicus curiae, ainda que fora desse prazo (arts. 6º e 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99)”, uma vez que “essa construção jurisprudencial sugere a adoção de um
modelo procedimental que ofereça alternativas e condições para permitir, de modo cada vez mais intenso, a interferência de uma pluralidade de sujeitos, argumentos e visões. Essa nova realidade pressupõe, além de amplo acesso e participação de sujeitos interessados no sistema de controle de constitucionalidade de normas, a possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional lançar mão de quaisquer das perspectivas disponíveis para a apreciação da legitimidade de um determinado ato questionado”.242
A participação do amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade deve ser a mais ampla possível, pois, juntamente com as audiências públicas, foi instrumento de democratização e maior legitimação da atuação do Supremo Tribunal Federal.
Inicialmente, o STF, por maioria de votos, decidiu pela impossibilidade de sustentação oral do amicus curiae, que deveria, sempre, manifestar-se por escrito, sob pena de inviabilização dos trabalhos da Corte.243 Observe-se, porém, que, fixando novo posicionamento, o STF “admitiu, excepcionalmente, a possibilidade de realização de sustentação oral por terceiros admitidos no processo abstrato de constitucionalidade, na qualidade de amicus curiae”.244 Ressaltou, porém, o Ministro Sepúlveda Pertence, que “compete ao Tribunal decidir a respeito, através de norma regimental, razão por que, excepcionalmente e apenas no caso concreto, admitiu a sustentação oral”. Nesse novo julgamento Plenário, foram vencidos os Ministros Carlos Velloso e Ellen Gracie que, “salientando que a admissão da sustentação oral nessas hipóteses
poderia implicar a inviabilidade de funcionamento da Corte, pelo eventual excesso de intervenções, entendiam possível apenas a manifestação escrita”.
O Supremo Tribunal Federal passou, quanto à sustentação oral do amicus curiae, a aplicar a regra regimental prevista no artigo 131, § 3º, permitindo um tempo máximo de 15 minutos.245
Entendemos, que, desde que o relator defira a participação do amicus curiae, sua atuação não deverá sofrer restrições, devendo o Tribunal permitir sua participação plena, inclusive com a possibilidade de manifestação oral perante seus ministros, sempre com a finalidade de trazer à colação importantes argumentos sobre a matéria de direito a ser analisada pelo Supremo Tribunal Federal.246
A manifestação de amicus curiae tem a finalidade de auxiliar na instrução do processo,247 podendo ocorrer mesmo depois de encerrado o prazo de informações,248 tendo, porém, o STF, estabelecido como data-limite para a intervenção do amicus curiae no processo, o dia da remessa dos autos à mesa para julgamento, no intuito de racionalização do procedimento e para evitar, como salientado pela maioria,249 a transformação do “amicus curiae em regente do processo”.250 Não será, portanto, possível a inclusão do amicus curiae quando o processo já estiver incluído em pauta de julgamento,251 ou mesmo, quando esse já tiver sido iniciado ou estiver em curso.252
É incompatível com a finalidade da presença do amicus curiae no controle concentrado a formulação de pedido ou mesmo o aditamento de pedido formulado
anteriormente pelo autor,253 pois como salientado pelo Supremo Tribunal Federal, “não obstante o relevo da participação do amicus curiae, como terceiro interveniente, no processo de fiscalização normativa abstrata, ele não disporia de poderes processuais que, inerentes às partes, viabilizassem o exercício de determinadas prerrogativas que se mostrassem unicamente acessíveis a elas, como o poder que assiste, ao arguente, de delimitar o objeto da demanda por ele instaurada”.254 Também não será possível a interposição de recursos, inclusive embargos de declaração255 ou impugnações.256
Observe-se, portanto, que a lei atenuou a absoluta inadmissibilidade de participação de terceiros no controle concentrado de constitucionalidade, desde que comprovado o interesse público, consubstanciado pela relevância da matéria (art. 7º, § 2º).
Canotilho e Moreira, analisando idêntica hipótese, ensinam que a ação direta de inconstitucionalidade pode “envolver interesses públicos ou interesses privados dignos de consideração”, concluindo que, no âmbito do Tribunal Constitucional português, “estabeleceu-se uma praxe judicial no sentido de admitir a junção de documentos por terceiros interessados”.257
Em face das inúmeras novidades da lei, em especial a participação do amicus curiae e as audiências públicas, e da evolução de nossa Jurisdição Constitucional, o próprio Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo que “a intervenção de terceiros em ação direta de inconstitucionalidade tem características distintas deste instituto nos processos subjetivos”.258
O Supremo Tribunal Federal não vem admitindo litisconsórcio ativo ou passivo259 ou a intervenção assistencial de terceiro260 concretamente interessado, em face da natureza abstrata desta espécie de controle, incompatível com o acesso de terceiros interessados somente em defender seus direitos subjetivos. Como ressalta o Ministro Celso de Mello, em relação à intervenção de terceiro, “impõe-se registrar que existia, até mesmo, norma vedatória expressa (RiSTF, art. 169, § 2º), prestigiada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, reiteradamente, tem proclamado o absoluto descabimento da intervenção de terceiros no processo objetivo de fiscalização abstrata de constitucionalidade” (RDA 155/155, Rel. Min. Soares Muñoz – RDA 157/266, Rel. Min. Néri da Silveira – Adin nº 575 (AgRg),
Rel. Min. Celso de Mello, v. g.).261 Ressalte-se, porém, que tal vedação não deve ser aplicada, por óbvio, aos vários legitimados constitucionalmente.
Esse posicionamento foi abrandado pela Lei nº 9.868/99, em virtude da possibilidade do amicus curiae, pois, como adverte o Ministro Celso de Mello, “cabe ter presente a regra inovadora constante do art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, que, em caráter excepcional, abrandou o sentido absoluto da vedação pertinente à intervenção assistencial, passando, agora, a permitir o ingresso de entidade dotada de representatividade adequada no processo de controle abstrato de constitucionalidade”.262
10.8-B Julgamento e decisão
O julgamento da ação direta de inconstitucionalidade será realizado pelo
Plenário do Supremo Tribunal Federal, em respeito ao art. 97 da Constituição Federal, exigindo-se quorum mínimo de oito Ministros, para instalação da sessão263 que, entendendo tratar-se de lei ou ato normativo constitucional, fará essa declaração264 expressamente, julgando improcedente265 a ação direta de inconstitucionalidade; ficando, destarte, vedada a possibilidade de ação rescisória deste julgado.266
Por outro lado, se a maioria absoluta dos membros do Tribunal julgar procedente a ação direta de inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal declarará a lei ou o ato normativo inconstitucional, e consequentemente estará retirando-o do ordenamento jurídico, com os efeitos a seguir estudados.
Essa natureza dúplice da ação direta de inconstitucionalidade foi reafirmada pelo art. 23 da Lei nº 9.868/99, ao prever que, efetuado o julgamento, proclamar-se-á a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado, se num ou noutro sentido houver manifestação de no mínimo seis Ministros do Supremo Tribunal Federal (maioria absoluta). Caso, porém, não se obtenha maioria absoluta em nenhum sentido, o Supremo Tribunal Federal não pronunciará juízo de constitucionalidade ou inconstitucionalidade com efeitos vinculantes, mantendo-se, porém, a vigência e eficácia da lei.267
Importantíssimo ressaltar que o Supremo Tribunal Federal fica condicionado ao pedido, porém não a causa de pedir, ou seja, analisará a constitucionalidade dos dispositivos legais apontados pelo autor,
porém poderá declará-los inconstitucionais por fundamentação jurídica diferenciada,268 pois, tal como o Bundesverfassungsgericht, não está adstrito aos fundamentos invocados pelo autor, podendo declarar a inconstitucionalidade por fundamentos diversos dos expedidos na inicial.
A vinculação do STF ao pedido feito pelo autor não afasta a possibilidade de inconstitucionalidade por arrastamento, quando houver relação de dependência entre o dispositivo normativo declarado inconstitucional e outros não impugnados.
A hipótese de inconstitucionalidade por arrastamento é possível tanto em relação a dispositivos existentes na mesma lei ou ato normativo impugnado, quanto em relação a texto normativo diverso, porém elaborado sob o seu fundamento. Na primeira hipótese, onde todos os
dispositivos estarão na mesma lei ou ato normativo, serão declarados inconstitucionais artigos, parágrafos, incisos ou alíneas não impugnados originalmente, mas com absoluta relação de dependência com o dispositivo normativo impugnado e declarado inconstitucional. Na segunda hipótese, teremos leis ou atos normativos diversos, porém o substrato para a elaboração do dispositivo legal não impugnado tendo sido a lei ou ato normativo declarado inconstitucional deverá, igualmente, ter sua nulidade declarada.269
Essa ampla possibilidade de análise sobre a inconstitucionalidade ou não da lei ou ato normativo questionado torna impossível, conforme já salientado, qualquer que seja o resultado da ação – procedência ou improcedência –, o ajuizamento de ação rescisória.270
10.9 Efeitos da declaração de inconstitucionalidade – controle concentrado
Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle abstrato brasileiro são, em regra: erga omnes (gerais), ex tunc (retroativos), vinculantes e repristinatórios.
Declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo federal ou estadual, a decisão terá efeito retroativo (ex tunc) e para todos (erga omnes), desfazendo, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as consequências dele derivadas,271 uma vez que os atos inconstitucionais são nulos272 e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato
normativo, inclusive os atos pretéritos com base nela praticados (efeitos ex tunc).273
Importante ressaltar que a declaração de inconstitucionalidade do ato impugnado e, consequentemente, a retroatividade de sua nulidade alcança, inclusive, sentenças judiciais transitadas em julgado, uma vez que, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, “a rescindibilidade do acórdão conflitante” decorre “do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e da consequente prevalência da orientação fixada pelo STF”. Com esse fundamento, a Corte Suprema afastou o argumento “de que a decisão proferida na ADI não poderia retrotrair para alcançar decisão coberta pelo manto da coisa julgada, tendo em conta a jurisprudência da Corte quanto à eficácia ex tunc, como regra, da decisão proferida em controle concentrado, a legitimar a ação
rescisória de sentença que, mesmo anterior, lhe seja contrária”.274 Há, porém, necessidade de ajuizamento de ação rescisória, pois o exercício do controle concentrado de constitucionalidade, conforme apontado pelo STF, “não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que haja essa reforma ou rescisão, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria”.275
Assim, a declaração de inconstitucionalidade
“decreta a total nulidade dos atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe – ante a sua inaptidão para produzir
efeitos jurídicos válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito”.276
Note-se que, no controle concentrado de inconstitucionalidade, a lei ou o ato normativo declarado inconstitucional saem do ordenamento jurídico imediatamente com a decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, não havendo aplicação do art. 52, X, da Constituição Federal, que permanece somente para a utilização no controle difuso.
Como ressaltado pelo Ministro Moreira Alves,
“entre nós, como se adota o sistema misto de controle judiciário de inconstitucionalidade, se esta for declarada, no caso concreto, pelo Supremo Tribunal Federal, sua eficácia se limita às partes da lide, podendo o Senado Federal apenas suspender a execução, no todo ou
em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (art. 52, X, da Constituição). Já, em se tratando de declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo por meio de ação direta de inconstitucionalidade, a eficácia dessa decisão é erga omnes e ocorre, refletindo-se sobre o passado, com o trânsito em julgado do aresto desta Corte”.277
Ressalte-se, ainda, que esta posição é antiga no Supremo Tribunal Federal, pois em 18-6-1977 seu então Presidente, Ministro Thompson Flores, determinou que as comunicações ao Senado Federal, para os fins do art. 42, VII, da Constituição de 1967/69 (atual art. 52, X, da CF/88), se restringissem somente às declarações de inconstitucionalidade proferidas incidenter tantum, via controle difuso de constitucionalidade.278
10.9-A Modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade
A Lei nº 9.868/99 inovou em relação à ação direta, permitindo ao Supremo Tribunal Federal a limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade (modulação dos efeitos).
Assim, o art. 27 prevê que “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.
O Supremo Tribunal Federal decidiu que “o sistema pátrio comporta a modulação de
efeitos, sem que isso signifique violação ao texto constitucional”, afirmando que “a sua adoção decorreria da ponderação entre o Estado de Direito na sua expressão legalidade e na sua vertente segurança jurídica”. Ressaltou, ainda, “que o procedimento da modulação seria bifásico, escalonado e progressivo: o julgamento que se faz sobre o mérito da constitucionalidade e aquele referente à modulação de efeitos”, ou seja, “ocorreriam duas apreciações autônomas e distintas, sendo que a segunda – a qual envolveria a questão da modulação – tem como pressuposto a declaração prévia de inconstitucionalidade”.279
Dessa forma, permitiu-se ao STF a manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade denominada de modulação, ou limitação temporal pela Corte, seja em relação à sua amplitude,
seja em relação aos seus efeitos temporais, desde que presentes os dois requisitos constitucionais:280
• requisito formal: decisão da maioria de dois terços dos membros do Tribunal;
• requisito material: presença de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
Em relação à amplitude dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, excepcionalmente, o Supremo Tribunal Federal poderá afastar a regra geral no sentido dos efeitos gerais (erga omnes), para afastar a incidência de sua decisão em relação a algumas situações já consolidadas (garantia da segurança jurídica), ou ainda para limitar, total ou parcialmente, os efeitos temporais da declaração (ex tunc) ou os efeitos repristinatórios da decisão, declarando a
validade de alguns atos praticados na vigência da norma (“modulação dos efeitos”).281
Observe-se que o STF entende ser possível a utilização de embargos de declaração para fins de modulação dos efeitos de decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade,282 ficando seu acolhimento condicionado, entretanto, à existência de pedido formulado nesse sentido na petição inicial.283 Excepcionalmente, porém, o Supremo Tribunal Federal admitiu embargos de declaração para aplicar a modulação dos efeitos em decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade, mesmo sem pedido formulado na petição inicial.284 Excepcionalmente, em face do princípio da segurança jurídica, o STF entende possível a “modulação dos efeitos” no controle de não recepção de norma anterior ao
ordenamento jurídico285 e também no controle difuso.286
Em relação aos limites temporais da declaração de inconstitucionalidade287 temos a seguinte situação:288
• REGRA: efeitos ex tunc, ou seja, retroativos. Não há necessidade de manifestação expressa sobre esses efeitos, pois a retroatividade é a regra em nosso direito constitucional;289
• PRIMEIRA EXCEÇÃO:290 efeitos ex nunc, ou seja, não retroativos, a partir do trânsito em julgado da decisão em sede de ação direta de inconstitucionalidade, desde que fixados por 2/3 dos Ministros do STF;
• SEGUNDA EXCEÇÃO: efeitos a partir de qualquer momento escolhido pelo Supremo Tribunal Federal, desde que fixados por 2/3 de seus Ministros. Essa hipótese de restrição temporal dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade tem limites lógicos que deverão ser expressamente previstos pelo Tribunal, afastando os tradicionais efeitos retroativos (ex tunc) da declaração de inconstitucionalidade. Note-se que Allan Brewer-Cariás aponta a tendência contemporânea na América Latina de concessão de efeitos ex nunc ao controle concentrado de constitucionalidade, em face das inúmeras repercussões fáticas decorrentes de uma declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, afirmando que “o princípio geral em relação aos efeitos temporais das decisões adotadas em matéria de controle de constitucionalidade das leis, é que essas têm efeitos gerais, erga omnes, dado seu caráter anulatório, então somente tem efeitos constitutivos, ex nunc, pro futuro;291 STF – Pleno – ADI nº 4876 ED/DF – Rel.
Min. Dias Toffoli – 20-5-2015 (ADI-4876). é dizer, não tem efeitos retroativos”. O autor aponta nesse sentido: Panamá, México, Colômbia, Guatemala, Bolívia, Venezuela, Peru e Equador.292
O Supremo Tribunal Federal admite a prospeção dos efeitos como verdadeiro “apelo ao legislador”, que deverá, em prazo fixado pela Corte, editar nova norma, que revogará aquela declarada inconstitucional, mas cuja vigência foi mantida pela modulação dos efeitos determinada por 2/3 dos Ministros do Tribunal (“inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade”).
Trata-se de opção interpretativa excepcional fundada em razões de segurança jurídica e interesse social, cuja finalidade é evitar a ocorrência de maiores danos sociais com a retroatividade da
declaração de inconstitucionalidade. Conforme ensina o Ministro Gilmar Mendes, “razões de segurança jurídica podem obstar à revisão do ato praticado com base na lei declarada inconstitucional. Nessas hipóteses, avalia-se, igualmente, que, tendo em vista razões de segurança jurídica, a supressão da norma poderá ser mais danosa para o sistema do que a sua preservação temporária. Não há negar, ademais, que aceita a ideia da situação ‘ainda constitucional’, deverá o Tribunal, se tiver que declarar a inconstitucionalidade da norma, em outro momento, fazê-lo com eficácia restritiva ou limitada”.293
O Supremo Tribunal Federal, em sede de ação direta, vem aplicando costumeiramente essa modulação, tendo declarado a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade da lei impugnada,
com a consequente declaração do Congresso Nacional em mora e fixando prazo de manutenção da vigência e eficácia da lei declarada inconstitucional (efeitos pro futuro),294 ora de 60 dias, ora de 18 ou 24 meses, para que a situação legal pudesse ser regularizada.295 Conforme ainda salientado pelo Ministro Gilmar Mendes, “o que importa assinalar é que, segundo a interpretação aqui preconizada, o princípio da nulidade somente há de ser afastado se se puder demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob a forma de interesse social”, para concluir que “a declaração de inconstitucionalidade e, portanto, da nulidade da lei instituidora de uma nova entidade federativa, o Município,
constitui mais um dentre os casos – como os anteriormente citados, retirados de exemplos do direito comparado – em que as consequências da decisão tomada pela Corte podem gerar um verdadeiro caos jurídico”.296
Essa inovação do Supremo Tribunal Federal, em termos de controle concentrado de constitucionalidade, adotou postura austríaca, difundida posteriormente pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, pela qual o acórdão do Tribunal Constitucional poderá, excepcionalmente, e presente a necessidade de preservação da segurança jurídica, autorizar um prazo, no máximo, de 18 meses, para que o Parlamento edite uma lei em substituição daquela declarada inconstitucional.297 Cappelletti salientou que “a Corte Constitucional austríaca tem, de resto, o poder discricionário de dispor que a
anulação da lei opere somente a partir de uma determinada data posterior à publicação (Kundmachung) de seu pronunciamento”.298
Esse posicionamento exprime preocupação com a segurança jurídica, pois os efeitos da declaração de inconstitucionalidade deverão, normalmente, ser somente pro futuro, não afetando, imediatamente, atos realizados com fundamento na lei, antes que principiasse a eficácia da invalidação,299 pois, conforme salientava Hans Kelsen, “uma norma jurídica, em regra, somente é anulada com efeitos para o futuro, de forma que os efeitos já produzidos que deixar para trás permaneçam intocados”.300
Ressalte-se, porém, que diferentemente do modelo austríaco, onde a regra é a não retroatividade da declaração (efeitos ex
nunc) e a exceção é a possibilidade de decisão prospectiva ou efeitos pro futuro, defendemos, em virtude da tradição de retroatividade da declaração de inconstitucionalidade no Brasil (efeitos ex tunc) e das peculiaridades nacionais quanto ao número de ações diretas procedentes e consequente omissão do legislador em editar nova norma no prazo fixado pelo STF, que essa hipótese deve ser utilizada de maneira excepcionalíssima, sob pena de perpetuação da inconstitucionalidade no ordenamento jurídico.
Relembre-se que isso ocorreu no julgamento da medida liminar na ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) 23,301 onde foi concedida medida liminar pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no exercício da Presidência durante o recesso de janeiro, em virtude de mora do Congresso Nacional em
regulamentar, por lei complementar, nos termos do artigo 161, II, da Constituição Federal a entrega de recursos e os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE), uma vez que, em julgamento anterior, ocorrido em 24 de fevereiro de 2010 (ADIs 875, 1.987, 2.727 e 3.243), o STF declarou a inconstitucionalidade de diversos dispositivos da LC nº 62/89, modulando os efeitos de sua decisão e determinando sua aplicação até 31 de dezembro de 2012; prazo em que o Poder Legislativo deveria editar nova Lei complementar.
Transcorrido esse prazo, para que não houvesse situação de anomia jurídica em virtude da inércia do Legislativo, foi concedida liminar em ADO para estender o prazo anteriormente fixado por meio de modulação dos efeitos da ADI, prorrogando-se por mais 150 dias, período
em que determinou-se a permanência da vigência dos dispositivos da lei complementar anteriormente declarados inconstitucionais.
A declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade com manutenção da vigência da lei por determinado prazo até edição de nova norma pelo Poder Legislativo poderá acarretar a perpetuação ad eterno de norma inconstitucional pela inércia legislativa e pela possibilidade de concessão de medida liminar em ADO.
A Lei nº 9.868/99 também previu, expressamente, que a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm efeitos vinculantes em relação aos órgãos do
Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
Dessa forma, seguindo a orientação da EC nº 03, de 17 de março de 1993, que instituiu efeitos vinculantes à ação declaratória de constitucionalidade,302 a nova lei previu o obrigatório respeito das decisões do STF, em sede de ação direta de inconstitucionalidade.
Essa previsão foi constitucionalizada com a edição da EC nº 45/04, que, alterando a redação do § 2º, do art. 102, da Constituição Federal, estabeleceu eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, para as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade.
Assim, uma vez proferida a decisão pelo STF, haverá uma vinculação obrigatória303 em relação a todos os órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário, que deverão pautar o exercício de suas funções na interpretação constitucional dada pela Corte Suprema, afastando-se, inclusive, a possibilidade de controle difuso por parte dos demais órgãos do Poder Judiciário. Os efeitos vinculantes se referem, inclusive, à ratio decidendi, para se evitar qualquer tentativa de desrespeito da decisão em sede de jurisdição constitucional.304
O obiter dictum, por sua vez, “não integra o dispositivo da decisão, nem se sujeita ao efeito vinculante”.305
Conforme decidido pelo STF, também o efeito vinculante consiste em “atribuir ao
julgado uma qualificada força impositiva e obrigatória em relação a supervenientes atos administrativos ou judiciais (= eficácia executiva ou instrumental)”.306
Entendemos que os efeitos vinculantes somente se aplicam ao legislador em duas hipóteses: (a) não poderá editar norma derrogatória da decisão do Supremo Tribunal Federal; (b) estará impedido de editar normas que convalidem os atos nulos praticados com base na lei declarada inconstitucional.307 Em ambas as hipóteses estará flagrante a intenção do legislador em limitar total ou parcialmente a decisão da Corte.
Não será possível, porém, a vinculação do Legislador em relação ao mérito da matéria decidida pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que poderá editar novas normas com objeto oposto ao decidido pela
Corte Suprema, em virtude de sua absoluta liberdade de criação legislativa, garantindo-se, dessa forma, a possibilidade de evolução. Dessa forma, caso o Congresso Nacional edite nova lei disciplinando matéria de maneira conflituosa com entendimento anterior do STF, em sede de controle concentrado – seja por repetir lei anterior, seja por redigir entendimento muito semelhante – caberá ao Supremo, caso provocado novamente, reanalisar a matéria, no sentido de sua constitucionalidade.
Os efeitos vinculantes não devem ser aplicados ao legislador no tocante à possibilidade de edição de novas normas com preceitos semelhantes ou idênticos aos declarados inconstitucionais, uma vez que, nessas hipóteses, haverá a possibilidade de nova análise da constitucionalidade da matéria pelo Supremo Tribunal Federal,
possibilitando uma evolução ou adequação às novas condições jurídicas, sociais e políticas. A ausência de efeitos vinculantes ao Legislador possibilita o dinamismo interpretativo e a constante adaptação e mutação constitucional,308 não sendo possível, portanto, limitar o processo legislativo em virtude dos efeitos vinculantes derivados do controle concentrado de constitucionalidade, de maneira a impedir a tramitação e votação de projeto de lei contrário ao entendimento do STF em determinada matéria.309
Não foi outro, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, pelo qual os efeitos vinculantes não se aplicam ao Poder Legislativo, pois isso “afetaria a relação de equilíbrio entre o tribunal constitucional e o legislador, reduzindo o último a papel subordinado perante o poder incontrolável do primeiro, acarretando prejuízo do
espaço democrático representativo da legitimidade política do órgão legislativo, bem como criando mais um fator de resistência a produzir o inaceitável fenômeno da chamada fossilização da Constituição”.310
O Supremo Tribunal Federal fixou novo entendimento em relação à sua vinculação em sede de jurisdição constitucional. A vinculação do próprio Pretório Excelso aos seus julgados, em sede de controle concentrado, era o entendimento pacificado pelo Tribunal, por entender que, na análise concentrada da constitucionalidade das leis e atos normativos, não estaria o STF vinculado à causa de pedir, tendo pois cognição plena da matéria, e, portanto, podendo examinar e esgotar todos os seus aspectos constitucionais.311
Esse posicionamento foi alterado pela nova composição plenária do Supremo Tribunal Federal, que
“embora salientando a necessidade de motivação idônea, crítica e consciente para justificar eventual reapreciação de uma questão já tratada pela Corte, concluiu no sentido de admitir o julgamento das ações diretas, por considerar que o efeito vinculante previsto no § 2º do art. 102 da CF não condiciona o próprio STF, limitando-se aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo, e que, no caso, ficou demonstrada a distinção entre os dispositivos impugnados”.312
A vinculação obrigatória ocorrerá nas quatro seguintes situações:
• procedência da ação: a norma foi declarada inconstitucional, com os efeitos já estudados acima;
• improcedência da ação: a norma foi declarada constitucional, permanecendo no ordenamento jurídico;
• interpretação conforme a Constituição: Conferir item 10.9.1, neste capítulo;
• declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução do texto: Conferir item 10.9.2, neste capítulo;
• A interpretação constitucional e o ativismo judicial (Neoconstitucionalismo e Positivismo): Conferir item 10.9.3, neste capítulo.
Essa vinculação obrigatória decorre da própria racionalidade do sistema concentrado de constitucionalidade,313 onde compete ao Supremo Tribunal Federal, por força da escolha política realizada pelo legislador constituinte originário, a guarda da Constituição Federal.
Assim, uma vez que interprete a norma constitucional abstratamente, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, a Corte Suprema define seu significado e alcance, que deverá ser respeitado por todos os demais órgãos estatais, sob pena de desrespeito à sua função constitucional.314
Importante, nesse sentido, lembrar a lição de Thomas Cooley, ao defender a força obrigatória dos precedentes da Corte Suprema norte-americana em sede de jurisdição constitucional, quando afirma que “os diversos departamentos governamentais são iguais em dignidade e autoridade, que é coordenada, não podendo nenhum deles submeter à outra a sua jurisdição, nem privar de qualquer porção de seu poder constitucional. Mas o poder judiciário é a autoridade suprema na interpretação da Constituição e na
interpretação das leis, e as suas interpretações devem ser aceitas e observadas pelos outros departamentos... Suas sentenças tornam-se leis do país nos pontos decididos por eles, e a desobediência ou desatenção que sofram, tanto de um simples particular como de um funcionário público, produzirá nova controvérsia que em última instância virá a ser decidida da mesma maneira pelo poder judiciário”.315
10.9-B Efeitos repristinatórios
Por fim, a declaração de inconstitucionalidade de lei ou atos normativos, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, acarreta os denominados efeitos repristinatórios,316 uma vez que a decretação de sua nulidade torna sem efeito a antiga revogação que produzira, ou seja, a lei anterior
supostamente revogada por lei inconstitucional declarada nula com efeitos retroativos (ex tunc) jamais perdeu sua vigência, não sofrendo solução de continuidade.317
Importante ressaltar a diferença entre repristinação e efeitos repristinários.
Na repristinação, ocorre o retorno de vigência de lei anteriormente revogada pela revogação de sua lei revogadora, desde que, nos termos do art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro, houver expressa previsão (conferir Capítulo 11, item 2.1). Dessa forma, a lei anterior volta a ter vigência somente a partir da revogação de sua lei revogadora. Exemplificando: Se a Lei A for revogada pela Lei B, em 1º de janeiro, sendo esta, posteriormente, revogada pela Lei C, que expressamente prevê a
repristinação, em 30 de julho, haverá retorno da vigência da Lei A somente nessa data de 30 de julho.
Diversamente, nos efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade, se a lei revogadora foi decretada nula e, consequentemente, jamais teve a força de revogar a lei anterior, essa manteve sua vigência permanente. Exemplificando: Se a Lei A for revogada pela Lei B, em 1º de janeiro, sendo esta, posteriormente, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 30 de julho, não haverá solução de continuidade na vigência da Lei A, que manterá sua vigência inclusive no período compreendido entre 1º de janeiro e 30 de julho, em virtude dos efeitos ex tunc da declaração de inconstitucionalidade.
Anote-se, por fim, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em afastar o denominado efeito repristinatório indesejado, ou seja, a possibilidade de manter norma anterior também inconstitucional pela declaração de inconstitucionalidade de norma posterior. No exemplo acima, se ambas as leis fossem inconstitucionais, tanto a Lei A quanto a Lei B, haveria necessidade – para que o STF declarasse a inconstitucionalidade da Lei B –, que o autor da ação pleiteasse, também, a inconstitucionalidade da Lei A, para que esta não permanecesse no ordenamento jurídico com a mácula de nulidade.
Conforme apontado pelo Ministro Celso de Mello, em relação ao efeito repristinatório indesejado, há “necessidade, em tal hipótese, de formulação de pedidos sucessivos de declaração de
inconstitucionalidade tanto do diploma ab-rogatório quanto das normas por ele revogadas, desde que também eivadas do vício da ilegitimidade constitucional. Ausência de impugnação, no caso, do diploma legislativo cuja eficácia restaurar-se-ia em função do efeito repristinatório. Hipótese de incognoscibilidade da ação direta”,318 uma vez que, como ressaltado pelo Ministro Eros Grau, “o entendimento é que na ação direta que vislumbre a impugnação de preceito modificador do originário, expressamente conflitante com a Constituição do Brasil, o requerente deve necessariamente pleitear a inconstitucionalidade de ambos, sob pena de a ação ser considerada incabível, consoante reiterados precedentes desta Corte”.319
10.9-B.1 Interpretação conforme a Constituição
A supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos editados pelo poder público competente exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e consequente retirada do ordenamento jurídico.
Extremamente importante ressaltar que a interpretação conforme a Constituição somente será possível quando a norma apresentar vários significados, uns compatíveis com as normas constitucionais
e outros não, ou, no dizer de Canotilho, “a interpretação conforme a constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela”.320
Portanto, não terá cabimento a interpretação conforme a Constituição quando contrariar texto expresso da lei, que não permita qualquer interpretação em conformidade com a Constituição, pois o Poder Judiciário não poderá, substituindo-se ao Poder Legislativo (leis) ou Executivo (medidas provisórias), atuar como legislador positivo, de forma a criar um novo texto legal. Nessas hipóteses, o Judiciário deverá declarar a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo incompatível com a Constituição.
A finalidade, portanto, dessa regra interpretativa é possibilitar a manutenção no ordenamento jurídico das leis e atos normativos editados pelo poder competente que guardem valor interpretativo compatível com o texto constitucional.321
Conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, a técnica da denominada interpretação conforme “só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco”,322 tendo salientado o Ministro Moreira Alves que “em matéria de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, admite-se, para resguardar dos sentidos que eles podem ter por via de interpretação, o que for constitucionalmente legítimo – é a denominada interpretação conforme a Constituição”.323
Para que se obtenha uma interpretação conforme a Constituição, o intérprete poderá declarar a inconstitucionalidade parcial do texto impugnado, no que se denomina interpretação conforme com redução do texto, ou, ainda, conceder ou excluir da norma impugnada determinada interpretação, a fim de compatibilizá-la com o texto constitucional. Essa hipótese é denominada interpretação conforme sem redução do texto. Vislumbram-se, portanto, três hipóteses:
• interpretação conforme com redução do texto: essa primeira hipótese ocorrerá quando for possível, em virtude da redação do texto impugnado, declarar a inconstitucionalidade de determinada expressão, possibilitando, a partir dessa exclusão de texto, uma interpretação compatível com a Constituição Federal. Assim, na Adin nº 1.127-8, o STF,
liminarmente, suspendeu a eficácia da expressão ou desacato contida no art. 7º, § 2º, do Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94), concedendo à imunidade material dos advogados uma interpretação conforme o art. 133 da Constituição Federal;
• interpretação conforme sem redução do texto, conferindo à norma impugnada uma determinada interpretação que lhe preserve a constitucionalidade: nessas hipóteses, salienta o Pretório Excelso, “quando, pela redação do texto no qual se inclui a parte da norma que é atacada como inconstitucional, não é possível suprimir dele qualquer expressão para alcançar essa parte, impõe-se a utilização da técnica de concessão da liminar para a suspensão da eficácia parcial do texto impugnado sem a redução de sua expressão literal, técnica essa que se inspira na razão de ser da declaração de
inconstitucionalidade sem redução do texto em decorrência de este permitir interpretação conforme a Constituição”.324 O STF julgou parcialmente procedente ação direta de inconstitucionalidade “para declarar-se inconstitucional a expressão contida no art. 276, § 2º, da Lei nº 10.098 do Estado do RS, bem como declarar-se que os §§ 3º e 4º desse mesmo artigo só são constitucionais com a interpretação que exclua da aplicação deles as funções ou empregos relativos a servidores celetistas que não se submeteram ao concurso aludido no art. 37, II, da parte permanente da CF, ou referido no § 1º, art. 19 da ADCT”;325
• interpretação conforme sem redução do texto, excluindo da norma impugnada uma interpretação que lhe acarretaria a inconstitucionalidade: nesses casos, o Supremo Tribunal Federal excluirá da
norma impugnada determinada interpretação incompatível com a Constituição Federal, ou seja, será reduzido o alcance valorativo da norma impugnada, adequando-a à Carta Magna. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, “por votação unânime, deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar, para, sem redução de texto e dando interpretação conforme à Constituição, excluir com eficácia ex tunc, da norma constante do art. 90 da Lei nº 9.099/95, o sentido que impeça a aplicação de normas de direito penal, com conteúdo mais favorável ao réu, aos processos penais com instrução iniciada à época da vigência desse diploma legislativo”.326 Assim, “A interpretação conforme é plenamente aceita e utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de dar ao texto do ato normativo impugnado compatibilidade com a
Constituição Federal, mesmo se necessário for a redução de seu alcance.”327 Nesse sentido, “o Tribunal, por votação majoritária, indeferiu o pedido de medida cautelar, para em interpretação conforme a Constituição e sem redução de texto, afastar qualquer exegese que inclua, no âmbito de compreensão da Lei Complementar nº 87, de 13-9-96, a prestação de serviços de navegação ou de transporte aéreo”.328
10.9-B.2 Declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto
A declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto pode ser utilizada como um mecanismo para atingir-se uma interpretação conforme a Constituição e, dessa forma, preservar-se a constitucionalidade da lei ou do ato
normativo, excluindo-se algumas de suas interpretações possíveis.
Apesar de a doutrina apontar as diferenças entre a interpretação conforme à Constituição – que consiste em técnica interpretativa – e a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto – que configura técnica de decisão judicial – entendemos que ambas as hipóteses se completam, de forma que diversas vezes para se atingir uma interpretação conforme a Constituição, o intérprete deverá declarar a inconstitucionalidade de algumas interpretações possíveis do texto legal, sem contudo alterá-lo gramaticalmente.329
Bryde, citado por Gilmar Ferreira Mendes, aponta a diferença teórica entre as duas espécies, sem porém recusar suas semelhanças quanto aos efeitos, bem como
o fato do Tribunal Constitucional alemão utilizar-se da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, como instrumento para atingir-se uma interpretação conforme a Constituição. Assim, afirma Bryde que “Seria admissível que o Tribunal censurasse determinada interpretação por considerá-la inconstitucional. Isto resultaria, porém, da proximidade entre a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto e a interpretação conforme à Constituição. A semelhança de efeitos dos dois instrumentos não altera a fundamental diferença existente entre eles. Eles somente poderiam ser identificados se se considerasse a interpretação conforme à Constituição não como regra normal de hermenêutica, mas como um expediente destinado a preservar leis inconstitucionais. Não se tem dúvida,
outrossim, de que a Corte Constitucional utiliza muitas vezes a interpretação conforme à Constituição com esse desiderato. É certo, também, que, nesses casos, mais adequada seria a pronúncia da declaração de nulidade parcial sem redução de texto. Se utilizada corretamente, a interpretação conforme à Constituição nada mais é do que interpretação da lei (Gesetzesauslegung), uma vez que qualquer intérprete está obrigado a interpretar a lei segundo as decisões fundamentais da Constituição”.330
Ressalte-se, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, conforme verificado no item anterior, utiliza-se da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto como instrumento decisório para atingir-se uma interpretação conforme a Constituição, de maneira a salvar a
constitucionalidade da lei ou do ato normativo, sem contudo alterar seu texto.
10.9-B.3 A interpretação constitucional e o ativismo judicial
No Brasil, a partir do fortalecimento do Poder Judiciário e da Jurisdição Constitucional pela Constituição de 1988, principalmente pelos complexos mecanismos de controle de constitucionalidade e pelo vigor dos efeitos de suas decisões, em especial os efeitos erga omnes e vinculantes, somados à inércia dos Poderes Políticos em efetivar totalmente as normas constitucionais, vem permitindo que novas técnicas interpretativas ampliem a atuação jurisdicional em assuntos tradicionalmente de alçadas dos Poderes Legislativo e Executivo.
Principalmente, a possibilidade do Supremo Tribunal Federal em conceder interpretações conforme a Constituição, declarações de nulidade sem redução de texto, e, ainda, mais recentemente, a partir da edição da Emenda Constitucional nº 45/04, a autorização constitucional para editar, de ofício, Súmulas Vinculantes não só no tocante à vigência e eficácia do ordenamento jurídico, mas também em relação à sua interpretação, acabaram por permitir, não raras vezes, a transformação da Corte Suprema em verdadeiro legislador positivo, completando e especificando princípios e conceitos indeterminados do texto constitucional; ou, ainda, moldando sua interpretação com elevado grau de subjetivismo.
O ativismo judicial, expressão utilizada pela primeira vez em 1947 por Arthur Schlesinger Jr., em artigo sobre a Corte
Suprema dos EUA, no Direito brasileiro tornou-se, portanto, tema de extrema relevância, não só quanto à sua possibilidade, mas, principalmente, em relação aos seus limites, pois há muita polêmica sobre a prática do ativismo judicial, inclusive no tocante à sua conceituação.
Ativismo judicial seria “uma filosofia quanto à decisão judicial mediante a qual os juízes permitem que suas decisões sejam guiadas por suas opiniões pessoais sobre políticas públicas, entre outros fatores” (cf. a respeito, Black’s Law Dictionary), sendo apontado por alguns doutrinadores norte-americanos como uma prática, que por vezes indica a ignorância de precedentes, possibilitando violações à Constituição; ou, seria um método de interpretação constitucional, no exercício de sua função jurisdicional, que possibilita,
por parte do Poder Judiciário, a necessária colmatação das lacunas constitucionais geradas pela omissão total ou parcial dos outros Poderes, ou ainda, pelo retardamento da edição de normas que possibilitem a plena efetividade do texto constitucional?
Teríamos com o ativismo judicial, clara afronta à Separação de Poderes, com direta usurpação das funções da legislatura ou da autoridade administrativa, como por diversas vezes apontou o Juiz Antonin Scalia, da Suprema Corte dos Estados Unidos, para desqualificar essa prática (cf. voto vencido no caso Romer v. Evans, 1996); ou, verdadeira necessidade constitucional permitida pelo sistema de freios e contrapesos em face da finalidade maior de garantir a plena supremacia e efetividade das normas constitucionais?
Não há dúvidas de que a eficácia máxima das normas constitucionais exige a concretização mais ampla possível de seus valores e de seus princípios, porém, em caso de inércia dos poderes políticos, devemos autorizar a atuação subjetiva do Poder Judiciário (Luis Roberto Barroso), mesmo que isso transforme o Supremo Tribunal Federal em um superlegislador, pois imune de qualquer controle, que não seja a própria autocontenção (judicial restraint), ou, devemos restringi-lo, para que não se configure flagrante desrespeito aos limites normativos substanciais da função jurisdicional, usurpando, inclusive, função legiferante (Elival da Silva Ramos)?
A história do ativismo judicial norte-americano mostra, em face de seu alto grau de subjetivismo, momentos diversos na defesa dos Direitos Fundamentais. Há, claramente, decisões ativistas alinhadas
com o pensamento progressista, enquanto outras, com o mais radical conservadorismo.
Aponta-se, como a primeira decisão considerada como ativista, embora inexistisse a terminologia à época, o caso Dred Scott, de 1857, quando julgando uma lei que libertava automaticamente os escravos que ingressassem num território onde a escravidão tivesse sido anteriormente abolida, a Suprema Corte declarou-a inconstitucional, por ferir o direito de propriedade, protegido pela cláusula do due process of law. Igualmente, a mesma cláusula do devido processo legal foi invocada na decisão Lochner v. New York, de 1905, permitindo que a Corte invalidasse direito social consagrado pela legislação, que passará a limitar a jornada de trabalho dos padeiros a dez horas diárias; o argumento foi de
que a lei privava os cidadãos de sua liberdade de contratar.
Por outro lado, o ativismo judicial foi de imperiosa importância na questão racial norte-americana durante a Corte Warren, especialmente a partir da decisão Brown v. Board of Education, de 1954, em que a Corte Suprema, derrubando seu próprio precedente (Plessy v. Ferguson, de 1896), decidiu ser inconstitucional lei que adotava a doutrina “iguais, mas separados”, permitindo instalações públicas separadas para negros e brancos, desde que – teoricamente – fossem de igual qualidade; e, com essa postura ativa deu início ao fim da segregação racial nos Estados Unidos da América.
Outros Direitos Fundamentais foram consagrados e efetivados com a possibilidade de maior amplitude
interpretativa por parte do Judiciário, como se vê em clássicas decisões ativistas da Suprema Corte Americana, tais como o reconhecimento do direito constitucional à privacidade (Griswold v. Connecticut, de 1965), a necessidade de que toda pessoa presa em flagrante ser alertada sobre seus direitos constitucionais (Miranda v. Arizona, 1966), e o mais controvertido de todos, o reconhecimento do direito constitucional ao aborto, como projeção do direito à privacidade (caso Roe v. Wade, 1973).
Não são poucos os doutrinadores que apontam enorme perigo à Democracia e à vontade popular, na utilização do ativismo judicial, pois como salientado por Ronald Dworkin, “o ativismo é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico. Um juiz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulgação, as decisões
anteriores da Suprema Corte que buscaram interpretá-la e as duradouras tradições de nossa cultura política. O ativista ignoraria tudo isso para impor a outros poderes do Estado o seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige”.331
Por outro lado, não se pode ignorar a advertência feita pelo Ministro Celso de Mello, ao recordar que as “práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas por esta Corte em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à
Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade.”332
O bom senso entre a “passividade judicial” e o “pragmatismo jurídico”, entre o “respeito à tradicional formulação das regras de freios e contrapesos da Separação de Poderes” e “a necessidade de garantir às normas constitucionais a máxima efetividade” deve guiar o Poder Judiciário, e, em especial, o Supremo Tribunal Federal na aplicação do ativismo judicial, com a apresentação de metodologia interpretativa clara e fundamentada, de maneira a balizar o excessivo subjetivismo, permitindo a análise crítica da opção tomada, com o desenvolvimento de técnicas de autocontenção judicial, principalmente, afastando sua aplicação em questões estritamente políticas, e, basicamente, com a utilização minimalista desse método
decisório, ou seja, somente interferindo excepcionalmente de forma ativista, mediante a gravidade de casos concretos colocados e em defesa da supremacia dos Direitos Fundamentais.
10.9-B.4 Reclamações e garantia da eficácia das decisões do STF em sede de ação direta de inconstitucionalidade333
Tradicionalmente, para garantir a autoridade de suas decisões proferidas em sede de ação direta de inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal sempre admitiu a utilização de reclamação334 (CF, art. 102, I, l) desde que ajuizada por um dos colegitimados para a propositura da própria ação direta de inconstitucionalidade e com o mesmo objeto.335 Como acentua o Pretório Excelso, a necessidade de garantir-se a eficácia das decisões em sede de ações diretas de
inconstitucionalidade, “notadamente em face da notória insubmissão de alguns tribunais judiciários às teses jurídicas consagradas nas decisões proferidas pelo STF”, autoriza o reconhecimento de legitimidade aos órgãos ativa ou passivamente legitimados à instauração do controle abstrato de constitucionalidade (CF, art. 103).336
Não era admitida, porém, reclamação requerida por terceiros pretensamente interessados, cuja alegação fosse eventual prejuízo pelo descumprimento da decisão.337
Em conclusão, era pacífico no Supremo Tribunal Federal,
“hoje, a jurisprudência deste Tribunal tem se orientado no sentido de só admitir reclamação com fundamento em desrespeito à autoridade das suas decisões
tomadas em ação direta nos casos em que é requerida por quem foi parte na respectiva ação direta e que tenha o mesmo objeto: RCL nº 399-0, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 7-3-93, maioria, in DJU, de 24-3-95; RCLQO nº 385-MA (medida liminar), Rel. Celso Mello, j. em 26-3-92, unânime, in RTJ, 146/416; RCLQO nº 397-RJ (medida liminar), Rel. Min. Celso Mello, j. em 25-11-92, unânime, in RTJ, 147/31; RCL nº 467-DF, Rel. Min. Celso Mello, 10-4-94, maioria, in DJU, de 9-12-94; RCL nº 447-PE, Rel. Sydney Sanches, j. em 16-2-95, unânime, in 31-3-95”.338
Com o advento da Lei nº 9.868/99 e a previsão de efeitos vinculantes, conforme já analisado, desde logo, entendemos que haveria ampliação da legitimidade para ajuizamento de reclamações, na hipótese de desrespeito dos demais órgãos do Poder Judiciário às decisões proferidas em sede
de ação direta de inconstitucionalidade pelo STF, permitindo-se ao interessado, no caso concreto, a utilização desse instrumento para a concretização dos efeitos vinculantes. Esse posicionamento foi reforçado com a constitucionalização dos efeitos vinculantes nas ações diretas de inconstitucionalidade, por força da EC nº 45/04 (nova redação do § 2º, do art. 102, da Constituição Federal).
Esse posicionamento foi consagrado pelo Supremo Tribunal Federal, ao decidir que
“todos aqueles que forem atingidos por decisões contrárias ao entendimento firmado pelo STF no julgamento de mérito proferido em ação direta de inconstitucionalidade sejam considerados parte legítima para a propositura de reclamação”.339
Dessa forma, como bem salientou o Pretório Excelso, “assiste plena legitimidade ativa, em sede de reclamação, àquele – particular ou não – que venha a ser afetado, em sua esfera jurídica, por decisões de outros magistrados ou Tribunais que se revelem contrárias ao entendimento fixado, em caráter vinculante, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos processos objetivos de controle normativo abstrato instaurados mediante ajuizamento, quer de ação direta de inconstitucionalidade, quer de ação declaratória de constitucionalidade”.340
Igualmente, nos termos do art. 103-A, § 1º, do texto constitucional, caberá reclamação para garantir os efeitos das Súmulas Vinculantes,341 inclusive, nas hipóteses em que as decisões se basearam genericamente em princípios342 ou em lei estadual posterior,343 no intuito de afastar
a incidência do enunciado vinculante fixado pelo Supremo Tribunal Federal.
11 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE INTERVENTIVA
GENÉRICA
INTERVENTIVA
Previsão
Art. 102, I, a
Art. 34, VII
Legitimidade
Art. 103, I a IX
Art. 36, III
Finalidade
Jurídica
Jurídica e política
Objeto
Lei ou ato normativo estadual ou federal contrários à Constituição Federal
Lei ou ato normativo estadual contrário aos princípios sensíveis da Constituição Federal
O art. 18 da Constituição Federal afirma que a organização político-administrativa
da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos. Assim, a regra é a autonomia entre os entes federativos, porém, excepcionalmente, a constituição permite a intervenção, nos casos taxativos previstos nos sete incisos do art. 34.
Uma das hipóteses de decretação da intervenção federal da União nos Estados e no Distrito Federal, prevista no art. 34, VII, da Constituição Federal, fundamenta-se na defesa da observância dos chamados princípios sensíveis:
a. forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b. direitos da pessoa humana;
c. autonomia municipal;
d. prestação de contas da administração pública, direta e indireta;
e. aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de receitas de transferência, na manutenção e desenvolvimento do ensino344 e nas ações e serviços públicos de saúde.345
São denominados princípios sensíveis constitucionais, pois sua inobservância pelos Estados-membros ou Distrito Federal no exercício de suas competências legislativas, administrativas ou tributárias pode acarretar a sanção politicamente mais grave existente em um Estado Federal, a intervenção na autonomia política.
Assim, qualquer lei ou ato normativo do Poder Público, no exercício de sua competência constitucionalmente deferida que venha a violar um dos princípios
sensíveis constitucionais, será passível de controle concentrado de constitucionalidade, pela via da ação interventiva.
Nessa hipótese, porém, a chamada intervenção normativa dependerá de provimento pelo Supremo Tribunal Federal, da ação direta de inconstitucionalidade interventiva, proposta pelo Procurador-Geral da República, que detém legitimação exclusiva. Note-se que o fato de a Constituição Federal referir-se à representação do Procurador-Geral da República não altera sua natureza jurídica de ação, pois, como lembrava Alfredo Buzaid, “o poder de submeter ao julgamento do Supremo Tribunal Federal o ato arguido de inconstitucionalidade representa o exercício de direito de ação”.346
O Procurador-Geral, no exercício de suas atribuições e com base na independência funcional do Ministério Público, não está obrigado nem poderá ser compelido a ajuizar, perante o Supremo Tribunal Federal, a citada ação, tornando-se, como lembra Celso de Mello, “perfeitamente lícito ao PGR determinar o arquivamento de qualquer representação que lhe tenha sido dirigida. O PGR atua discricionariamente”.347
A ação direta interventiva possui dupla finalidade, pois pretende a declaração de inconstitucionalidade formal ou material da lei ou ato normativo estadual (finalidade jurídica) e a decretação de intervenção federal no Estado-membro ou Distrito Federal (finalidade política), constituindo-se, pois, um controle direto, para fins concretos,348 o que torna inviável a concessão de liminar.349
Uma vez julgada procedente a ação interventiva, e após seu trânsito em julgado, o Supremo comunicará a autoridade interessada, bem como o Presidente da República, para as providências constitucionais (RISTF, art. 175, parágrafo único).
A decretação da intervenção federal será sempre realizada pelo Presidente da República (CF, art. 84, X), porém na presente hipótese dependerá de requisição do Supremo Tribunal Federal, cujo Decreto se limitará a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade. Caso não seja suficiente, será decretada a intervenção, rompendo-se momentaneamente com a autonomia do Estado-membro.
Trata-se, portanto, de espécie de intervenção provocada por requisição. Uma vez decretada a intervenção, não haverá controle político, pois a Constituição Federal exclui a necessidade de apreciação pelo Congresso Nacional. Sua duração, bem como os limites, serão fixados no Decreto presidencial, até que ocorra o retorno da normalidade do pacto federativo.
12 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO (ADO)
12.1 Finalidade
A Constituição Federal prevê que, declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando
de órgão administrativo, para fazê-lo em 30 dias.350
O objetivo pretendido pelo legislador constituinte de 1988, com a previsão da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, foi conceder plena eficácia às normas constitucionais, que dependessem de complementação infraconstitucional. Assim, tem cabimento a presente ação, quando o poder público se abstém de um dever que a Constituição lhe atribuiu.
12.2 Objeto
As hipóteses de ajuizamento da presente ação não decorrem de qualquer espécie de omissão do Poder Público, mas em relação às normas constitucionais de eficácia limitada de princípio institutivo e de caráter impositivo,351 em que a constituição investe o Legislador na obrigação de expedir comandos normativos. Além disso,
as normas programáticas vinculadas ao princípio da legalidade,352 por dependerem de atuação normativa ulterior para garantir sua aplicabilidade, são suscetíveis de ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
12.3 Inconstitucionalidade por omissão
Na conduta negativa consiste a inconstitucionalidade. A constituição determinou que o Poder Público tivesse uma conduta positiva, com a finalidade de garantir a aplicabilidade e eficácia da norma constitucional. O Poder Público omitiu-se, tendo, pois, uma conduta negativa.353
A incompatibilidade entre a conduta positiva exigida pela constituição e a conduta negativa do Poder Público omisso configura-se na chamada inconstitucionalidade por omissão.354
Não se deve, porém, confundir “omissão legislativa” com “opção legislativa”, que se consubstancia em legítima discricionariedade do Congresso Nacional, no exercício de sua função legiferante precípua.355 Portanto, só há o cabimento da presente ação quando a constituição obriga o Poder Público a emitir um comando normativo e este se queda inerte, pois, como ressalta Canotilho,
“a omissão legislativa (e ampliamos o conceito também para a administrativa) só é autônoma e juridicamente relevante quando se conexiona com uma exigência constitucional de ação, não bastando o simples dever geral de legislador para dar fundamento a uma omissão constitucional. Um dever jurídico-constitucional de ação existirá quando as normas constitucionais tiverem a natureza de imposições concretamente impositivas”.356
Note-se que esta omissão poderá ser absoluta (total) ou relativa (parcial), como afirma Gilmar Ferreira Mendes, pois “a total ausência de normas, como também a omissão parcial, na hipótese de cumprimento imperfeito ou insatisfatório de dever constitucional de legislar”.357 O que se pretende é preencher as lacunas inconstitucionais, para que todas as normas constitucionais obtenham eficácia plena.358
Para combater esta omissão, denominada doutrinariamente de síndrome de inefetividade por acarretar a inaplicabilidade de algumas normas constitucionais, a Constituição Federal trouxe-nos a ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
12.3.1 Legitimidade e procedimento
A Lei nº 12.063, de 27-10-2009, estabeleceu a disciplina processual da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, acrescentando o Capítulo II-A, com os arts. 12-A até 12-H na Lei nº 9.868, de 10-11-1999.
São legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade por omissão o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, as Mesas das Assembleias Legislativas e da Câmara Legislativa, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional.359
O procedimento da ação direta de inconstitucionalidade genérica estabelecido na Lei nº 9.868/99 será aplicado, no que couber, à ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
A petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade por omissão deverá, obrigatoriamente, indicar a omissão inconstitucional total ou parcial quanto ao cumprimento de dever constitucional de legislar ou quanto à adoção de providência de índole administrativa; bem como o pedido, com suas especificações.
A petição inicial inepta, não fundamentada, e a manifestamente improcedente serão liminarmente indeferidas pelo relator, cabendo agravo desta decisão.
Importante salientar que inexiste prazo para a propositura da presente ação,
havendo porém necessidade de aferir-se caso a caso a existência do transcurso de tempo razoável, que já houvesse permitido a edição da norma faltante.360
Não é obrigatória a oitiva do Advogado-Geral da União, nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, uma vez que inexiste ato impugnado a ser defendido,361 porém, a Lei nº 12.063/09 trouxe importante novidade, pois a critério do relator poderá se manifestar. O Procurador-Geral da República, porém, sempre deverá se manifestar, no prazo de 15 dias, após o decurso do prazo para informações.
12.4 Decisão do Supremo Tribunal Federal
Declarando o Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade por omissão, por ausência de medida legal que torne a norma constitucional efetiva, deverá dar
ciência ao Poder ou órgão competente para:362
1. Órgão administrativo: adoção de providências necessárias em 30 dias ou em prazo razoável a ser estipulado excepcionalmente pelo Supremo Tribunal Federal, tendo em vista as circunstâncias específicas do caso e o interesse público envolvido. A fixação de prazo permite a futura responsabilização do Poder Público administrativo, caso a omissão permaneça.
2. Poder Legislativo: ciência para adoção das providências necessárias, sem prazo preestabelecido. Nessa hipótese, o Poder Legislativo tem a oportunidade e a conveniência de legislar, no exercício constitucional de sua função precípua, não podendo ser forçado pelo Poder Judiciário a exercer seu munus, sob pena de afronta a separação dos Poderes, fixada pelo art. 2º
da Carta Constitucional.363 Como não há fixação de prazo para a adoção das providências cabíveis, igualmente, não haverá possibilidade de responsabilização dos órgãos legislativos. Declarada, porém, a inconstitucionalidade e dada ciência ao Poder Legislativo, fixa-se judicialmente a ocorrência da omissão, com efeitos retroativos ex tunc e erga omnes, permitindo-se sua responsabilização por perdas e danos, na qualidade de pessoa de direito público da União Federal,364 se da omissão ocorrer qualquer prejuízo.
Dessa forma, a natureza da decisão nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão tem caráter obrigatório ou mandamental, pois o que se pretende constitucionalmente é a obtenção de uma ordem judicial dirigida a outro órgão do Estado.
12.5 ADI por omissão (ADO) e medida liminar
A doutrina e o próprio Supremo Tribunal Federal sempre entenderam incompatível com o objeto da referida demanda a concessão da liminar. Se nem mesmo o provimento judicial último pode implicar o afastamento da omissão, como salientou o próprio Supremo Tribunal Federal, o que se dará quanto ao exame preliminar?365
Ocorre, porém, que a Lei nº 12.063/09 trouxe importante novidade no procedimento das ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, prevendo a possibilidade – em caso de excepcional urgência e relevância da matéria –, de concessão da medida cautelar pela maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal, após a audiência, no prazo de 5 dias, dos
órgãos ou autoridades responsáveis pela omissão inconstitucional e, se o relator entender indispensável, no prazo de 3 dias, a oitiva do Procurador-Geral da República.
A concessão da medida cautelar, que deverá ser publicada em seção especial do Diário Oficial da União e do Diário da Justiça da União, poderá consistir em:
• suspensão da aplicação da lei ou do ato normativo questionado, somente em se tratando de hipótese de omissão parcial;
• suspensão de processos judiciais ou de procedimentos administrativos;
• quaisquer outras providências a serem fixadas pelo STF.
Na ADO 23 MC/DF,366 foi concedida medida liminar em ADI por omissão pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no exercício da
Presidência durante o recesso de janeiro, em virtude de mora do Congresso Nacional em regulamentar, por lei complementar, nos termos do artigo 161, II, da Constituição Federal a entrega de recursos e os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE), uma vez que, em julgamento anterior, ocorrido em 24 de fevereiro de 2010 (ADIs 875, 1.987, 2.727 e 3.243), o STF declarou a inconstitucionalidade de diversos dispositivos da LC 62/89, modulando os efeitos de sua decisão e determinando sua aplicação até 31 de dezembro de 2012, prazo em que o Poder Legislativo deveria editar nova Lei complementar.
Transcorrido esse prazo, para que não houvesse situação de anomia jurídica em virtude da inércia do Legislativo, foi concedida liminar em ADO para estender o
prazo anteriormente fixado por meio de modulação dos efeitos da ADI, prorrogando-se por mais 150 dias, período em que se determinou a permanência da vigência dos dispositivos da lei complementar anteriormente declarados inconstitucionais.
13 AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE
13.1 Previsão
A emenda constitucional nº 3, de 17-3-1993, introduziu em nosso ordenamento jurídico constitucional uma nova espécie dentro do controle de constitucionalidade, que posteriormente sofreu alterações com a EC nº 45/03, a ação declaratória de constitucionalidade.
Alterou-se o art. 102, I, a; e foram criados o § 2º ao art. 102 e o § 4º ao art. 103, da Constituição Federal, sendo que, nesse
último caso, houve revogação pela EC nº 45/04.
Compete, portanto, ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.
Apesar da ampla discussão doutrinária sobre a inconstitucionalidade da EC nº 3, de 17-3-1993, no tocante à criação da ação declaratória de constitucionalidade,367 o plenário do Supremo Tribunal Federal já declarou incidentalmente tanto a sua constitucionalidade, como sua aplicabilidade imediata, sem necessidade de lei regulamentando seu procedimento.368
Entretanto, a possibilidade de criação de uma ação declaratória de constitucionalidade de âmbito estadual divide a doutrina. José Afonso da Silva não
admite tal possibilidade, por ausência de previsão constitucional,369 enquanto Nagib Slaibi Filho entende permitida ao Estado-membro, no exercício de sua competência remanescente, a criação dessa ação na esfera estadual, desde que respeitado o paradigma da Constituição Federal.370 Parece-nos que a razão está com Nagib Slaibi Filho, uma vez que é característica da Federação a autonomia dos Estados-membros, que engloba a capacidade de auto-organização por meio de suas respectivas Constituições estaduais. Assim, e desde que seguissem o modelo federal, nada estaria a impedir que o legislador constituinte-reformador estadual criasse por emenda constitucional uma ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo estadual, em face da Constituição Estadual, a ser ajuizada no Tribunal de Justiça e tendo como
colegitimados, em virtude da EC nº 45/04, os respectivos estaduais, para os colegitimados do art. 103 da CF, para a ação direta de inconstitucionalidade.
13.2 Finalidade
A ação declaratória de constitucionalidade, que consiste em típico processo objetivo destinado a afastar a insegurança jurídica ou o estado de incerteza sobre a validade de lei ou ato normativo federal, busca preservar a ordem jurídica constitucional.
Ressalte-se que as leis e atos normativos são presumidamente constitucionais, porém esta presunção, por ser relativa, poderá ser afastada, tanto pelos órgãos do Poder Judiciário, por meio do controle difuso de constitucionalidade, quanto pelo Poder Executivo, que poderá recusar-se a cumprir determinada norma legal por entendê-la inconstitucional.
Neste ponto, situa-se a finalidade precípua da ação declaratória de constitucionalidade: transformar a presunção relativa de constitucionalidade em presunção absoluta, em virtude de seus efeitos vinculantes.
Portanto, o objetivo primordial da ação declaratória de constitucionalidade é transferir ao STF a decisão sobre a constitucionalidade de um dispositivo legal que esteja sendo duramente atacado pelos juízes e tribunais inferiores, afastando-se o controle difuso da constitucionalidade. Uma vez que declarada a constitucionalidade da norma, o Judiciário e também o Executivo ficam vinculados à decisão proferida.371
13.3 Legitimidade
A ação declaratória de constitucionalidade poderá ser proposta, nos termos da EC nº 45/04,372 pelos mesmos colegitimados à
propositura da ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, pelos Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa, Governador de Estado ou do Distrito Federal, Procurador-Geral da República,373 Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.374
As mesmas observações analisadas em relação à legitimidade para propositura da ação direta de inconstitucionalidade são aplicáveis, a partir da EC nº 45/04, à ação declaratória de constitucionalidade (conferir, nesse mesmo capítulo, item 10.3).375
13.4 Objeto
Somente poderá ser objeto de ação declaratória de constitucionalidade a lei ou ato normativo federal,376 sendo, porém, pressuposto para seu ajuizamento a demonstração, juntamente com a petição inicial, de comprovada controvérsia judicial que coloque em risco a presunção de constitucionalidade do ato normativo sob exame, a fim de permitir ao Supremo Tribunal Federal o conhecimento das alegações em favor e contra a constitucionalidade, bem como o modo pelo qual estão sendo decididas as causas que envolvem a matéria.377
A comprovação da controvérsia exige prova de divergência judicial, e não somente de entendimentos doutrinários diversos, como na hipótese citada pelo Ministro Carlos Velloso, exigindo-se “existência de inúmeras ações em andamento em juízos ou tribunais, em que a constitucionalidade
da lei é impugnada”,378 pois, como afirmado pelo Ministro Néri da Silveira,
“não se trata de consulta à Suprema Corte, mas de ação com decisão materialmente jurisdicional, impõe-se, à instauração da demanda em exame, que se faça comprovada, desde logo, a existência de controvérsia em torno da validade ou não da lei ou ato normativo federal”.379
Ainda, como ressalta o Supremo Tribunal Federal,
“a delimitação do objeto da ação declaratória de constitucionalidade não adstringe aos limites do objeto fixado pelo autor, mas estes estão sujeitos aos lindes da controvérsia judicial que o autor tem que demonstrar”.380
13.5 Procedimento e julgamento
O Supremo Tribunal Federal declarando a imediata aplicabilidade da ação declaratória de constitucionalidade, fixou seu procedimento até a edição de lei regulamentando-a, seguindo o voto do Ministro-relator Moreira Alves,381 que com a devida vênia será transcrito parcialmente:
“A Emenda Constitucional nº 3, de 1993, ao instituir a ação declaratória de constitucionalidade, já estabeleceu quais são os legitimados para propô-la e quais são os efeitos de sua decisão definitiva de mérito. Silenciou, porém, quanto aos demais aspectos processuais a serem observados com referência a essa ação. Tendo em vista, porém, que a natureza do processo relativo a essa ação é a mesma da ação direta de inconstitucionalidade, é de adotar-se a disciplina desta nesse particular, exceto no que se diferenciam
pelo seu fim imediato, que é oposto – a ação direta de inconstitucionalidade visa diretamente à declaração de inconstitucionalidade do ato normativo, ao passo que a ação declaratória de constitucionalidade visa diretamente à declaração de constitucionalidade do ato normativo –, e que acarreta a impossibilidade da aplicação de toda a referida disciplina. Atento a esta diretriz, já determinei aos requerentes da presente ação – que atenderam a essa exigência – a juntada da documentação relativa ao processo legislativo da Emenda Constitucional em causa para que o Tribunal, que tem de examinar a constitucionalidade dela sob todos os seus ângulos, disponha dos elementos que dizem respeito à sua constitucionalidade formal. Por outro lado, partindo do pressuposto de que é ínsita à propositura
dessa ação a demonstração, em sua inicial – com a juntada de sua comprovação –, da controvérsia judicial que põe risco a presunção de constitucionalidade do ato normativo sob exame, observo que, no caso, esse requisito está devidamente preenchido, permitindo à Corte o conhecimento das alegações em favor da constitucionalidade e contra ela, e do modo como estão sendo decididas num ou noutro sentido. Não sendo indispensável, em processo objetivo, que haja legitimado passivo para contestar a ação, parece-me que só a lei poderá, para a colheita de mais alegações (ou para o fortalecimento das já conhecidas) em favor da inconstitucionalidade do ato normativo em causa, determinar que todos os legitimados para propor ação direta de inconstitucionalidade, ou alguns deles, possam intervir no processo relativo à ação
declaratória de constitucionalidade. (...) No processo da ação declaratória de constitucionalidade, por visar à preservação da presunção de constitucionalidade do ato normativo que é seu objeto, não há razão para que o Advogado-Geral da União atue como curador dessa mesma presunção, aliás, o silêncio da Emenda Constitucional nº 3 a esse respeito, não obstante tenha incluído um § 4º no artigo 103 da Carta Magna, é um silêncio eloquente, a afastar a ideia de que houve omissão, a propósito, por inadvertência. Também na ação declaratória de constitucionalidade faz-se mister o parecer do Procurador-Geral da República, como órgão do Ministério Público como custos legis em sentido amplo. Por fim, o julgamento dessa ação declaratória observará, por inteiramente aplicável, a disciplina do julgamento da
ação direta de inconstitucionalidade, inclusive quanto ao quorum para a declaração da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade do ato normativo em causa.”
A Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, estabeleceu o procedimento da ação declaratória de constitucionalidade, seguindo os preceitos básicos fixados pelo Supremo Tribunal Federal.
A petição inicial será apresentada em duas vias, devendo conter cópias do ato normativo questionado e dos documentos necessários para comprovação da procedência do pedido de declaração de constitucionalidade e indicará o dispositivo da lei ou do ato normativo questionado e os fundamentos jurídicos do pedido. Além disso, deverá individualizar o pedido, com suas especificações e, conforme já
analisado, demonstrar a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória.
A Lei nº 9.868/99, seguindo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, exige instrumento de procuração quando a petição inicial for subscrita por advogado.
A petição inicial inepta, não fundamentada e a manifestamente improcedente serão liminarmente indeferidas pelo relator, cabendo agravo ao plenário do Tribunal.
A Lei nº 9.868/99 autorizou o relator, em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, a requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer
sobre a questão, ou fixar data para que, em audiência pública, sejam ouvidos depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria. A lei, ainda, autoriza o relator a solicitar informações aos Tribunais Superiores, aos Tribunais federais e aos Tribunais estaduais em relação à aplicação da norma impugnada no âmbito de sua jurisdição. Em qualquer das hipóteses, o prazo para manifestação será de 30 dias, a partir da solicitação do relator.
Previu-se, ainda, que, uma vez proposta a ação declaratória, não se admitirá desistência.
Resumidamente, poderíamos estabelecer os seguintes procedimentos para as ações declaratórias de constitucionalidade, fixados, inicialmente, pelo STF e depois regulamentados pela Lei nº 9.868/99:
• adoção da disciplina da ação direta de inconstitucionalidade;
• necessidade de juntada da documentação relativa ao processo legislativo do ato normativo envolvido, se for alegado vício formal no processo legislativo;
• demonstração de controvérsia judicial que ponha em risco a presunção de constitucionalidade da lei ou do ato normativo federal;382
• impossibilidade de desistência;
• impossibilidade de admissão de terceiros na relação processual, pela inexistência de sujeito passivo;383
• desnecessidade da oitiva do Advogado-Geral da União;
• oitiva do Procurador-Geral da República, na qualidade de custos legis, no prazo de 15 dias;
• aplicação do quorum relativo à ação direta de inconstitucionalidade.
Ainda, relacionando-se com o procedimento, não nos parece que haja vedação à concessão de liminar que assegure a plena aplicação da lei controvertida até a pronúncia da decisão definitiva pelo Supremo Tribunal Federal, ressalvando-se, porém, que a liminar não produziria efeitos vinculantes, em face da clareza e taxatividade da afirmação da Constituição: decisões definitivas de mérito.384
Não foi esse, porém, o entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal, que, por maioria de votos, conheceu do pedido de medida cautelar, com efeitos vinculantes, por entender possível o exercício, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de ação declaratória de
constitucionalidade, do poder geral de cautela.385
Dessa forma, no julgamento da ação declaratória de constitucionalidade nº 4-6, o Tribunal concedeu a medida cautelar,386 com eficácia ex nunc e com efeitos vinculantes, até o final julgamento da ação.387
O Ministro Celso de Mello salientou, em defesa da possibilidade da concessão de liminar em sede de ação declaratória de constitucionalidade com efeitos vinculantes, que “impõe-se reconhecer, no âmbito desse novo instrumento de direito processual constitucional, que se revela admissível o exercício, pelo STF, do poder cautelar de que se acha naturalmente investido, quer como Tribunal judiciário, quer, especialmente, como Corte Constitucional”, uma vez que “os provimentos de natureza
cautelar acham-se instrumentalmente vocacionados a conferir efetividade ao julgamento final resultante do processo principal, assegurando, desse modo, plena eficácia à tutela jurisdicional de conhecimento ou de execução, inclusive às decisões que emergem do processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade”, para então concluir no sentido de que “o exercício do poder geral de cautela, pelo STF, em sede de ação declaratória de constitucionalidade, destina-se a garantir a própria utilidade da prestação jurisdicional a ser efetivada no processo de controle normativo abstrato, em ordem a impedir que o eventual retardamento na apreciação do litígio constitucional culmine por afetar e comprometer o resultado definitivo do julgamento”.388
Dessa forma, uma vez concedida a liminar em ação declaratória de constitucionalidade, não haverá mais possibilidade do afastamento, por inconstitucionalidade, da incidência da lei ou ato normativo federal por parte dos demais órgãos do Poder Judiciário ou por parte do Executivo, que deverão submeter-se ao integral cumprimento da norma analisada liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal, em face dos efeitos vinculantes.389
A efetividade dos efeitos vinculantes da decisão do STF será preservada, se necessário, pelo instrumento da reclamação, uma vez que não haverá possibilidade de insurgência contra a aplicação da lei ou ato normativo federal declarado, liminarmente, constitucional.390
Em conclusão, poderíamos apontar os seguintes aspectos sobre a concessão de medida liminar nas ações declaratórias de constitucionalidade:
• possibilidade do exercício do poder geral de cautela por parte do Supremo Tribunal Federal em sede de ação declaratória de constitucionalidade;
• liminar com efeitos erga omnes, ex nunc e vinculantes, havendo comunicação a todos os Tribunais Superiores, Tribunais Regionais Federais e Tribunais Estaduais;391
• impossibilidade de, a partir da concessão da liminar, os demais órgãos do Poder Judiciário e o Poder Executivo deixarem de observar a lei ou ato normativo federal objeto de análise, por entendê-los inconstitucionais, em face dos efeitos vinculantes;
• utilização do instrumento da reclamação (CF, art. 102, inciso I, l) para garantir os efeitos vinculantes de liminar concedida pelo STF em ação declaratória de constitucionalidade.
A Lei nº 9.868/99 estabeleceu, ainda, em relação a medida cautelar em ação declaratória de constitucionalidade, a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, deferir pedido de medida cautelar consistente na determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo.392
Concedida a medida cautelar, o Supremo Tribunal Federal deverá proceder a publicação de sua parte dispositiva em
seção especial do Diário Oficial da União, no prazo de 10 dias, e proceder o julgamento da ação no prazo máximo de 180 dias, sob pena de perda da eficácia da medida provisória.
13.6 Efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal
As decisões definitivas de mérito (sejam pela procedência ou pela improcedência), proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante,393 relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.
Assim, se o Supremo Tribunal Federal concluir que a lei ou ato normativo federal é constitucional, então expressamente fará a declaração, julgando procedente a ação,
que produzirá efeitos ex tunc, erga omnes e vinculantes a todos os órgãos do Poder Executivo e aos demais órgãos do Poder Judiciário. Da mesma forma, se considerar improcedente a ação, julgará a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, com os mesmos efeitos.
Poderão ocorrer, ainda, duas outras possibilidades. A primeira ocorrerá quando o Supremo julgar parcialmente procedente a norma, significando, pois, que a declarou constitucional em parte, devendo o restante da norma, declarada inconstitucional, retirar-se do ordenamento jurídico ex tunc.
A segunda, quando o Tribunal, julgando procedente a ação, declarar a constitucionalidade da norma, desde que interpretada de determinada maneira – interpretação conforme à constituição – tornando aquela interpretação vinculante
para os demais órgãos judiciais e para as autoridades administrativas em geral.
Em relação aos efeitos da decisão da ação declaratória de constitucionalidade, a Lei nº 9.868/99 estabeleceu as mesmas regras referentes à ação direta de inconstitucionalidade, já analisadas no presente capítulo, no item 10.9.394
Declarada a constitucionalidade de uma lei ou ato normativo federal em ação declaratória de constitucionalidade, não há a possibilidade de nova análise contestatória da matéria, sob a alegação da existência de novos argumentos que ensejariam uma nova interpretação no sentido de sua inconstitucionalidade. Ressalte-se que o motivo impeditivo dessa nova análise decorre do fato de o Supremo Tribunal Federal, como já visto anteriormente, quando analisa
concentradamente a constitucionalidade das leis e atos normativos, não estar vinculado a causa de pedir, tendo, pois, cognição plena da matéria, examinando e esgotando todos os seus aspectos constitucionais.395
14 ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
A Constituição Federal determina que a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.396
Trata-se, portanto, de norma constitucional de eficácia limitada, que depende de edição de lei, estabelecendo a forma pela qual será apreciada a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição.397
O Congresso Nacional editou a Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999, em complementação ao art. 102, § 1º, da Constituição Federal, tornando-a integrante de nosso controle concentrado de constitucionalidade.398
A lei regulamentou a arguição de descumprimento de preceito fundamental da seguinte forma:
• órgão competente para o processo e julgamento: Supremo Tribunal Federal;
• legitimados ativos:399 são os mesmos colegitimados para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103, I a IX), ou seja, o Presidente da República,400 a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa do Senado Federal, as Mesas das Assembleias Legislativas, os Governadores de Estado, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da
OAB, partidos políticos com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional;
• hipóteses de cabimento: a lei possibilita a arguição de descumprimento de preceito fundamental em três hipóteses – para evitar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público; para reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público e quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;401 ressalte-se que a arguição de descumprimento de preceito fundamental deverá ser proposta em face de atos do poder público já concretizados, não se prestando para a realização de controle preventivo desses atos.402 Igualmente, a
arguição de descumprimento de preceito fundamental não será cabível contra Súmulas do Supremo Tribunal Federal, que “não podem ser concebidos como atos do Poder Público lesivos a preceito fundamental”, pois “os enunciados de Súmula são apenas expressões sintetizadas de orientações reiteradamente assentadas pela Corte, cuja revisão deve ocorrer de forma paulatina, assim como se formam os entendimentos jurisprudenciais que resultam na edição dos verbetes”.403
• caráter subsidiário: a lei expressamente veda a possibilidade de arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.404 Obviamente, esse mecanismo de efetividade dos preceitos fundamentais não substitui as demais previsões constitucionais que tenham semelhante finalidade, tais como o habeas
corpus, habeas data; mandado de segurança individual e coletivo; mandado de injunção; ação popular; ações diretas de inconstitucionalidade genérica, interventiva e por omissão e ação declaratória de constitucionalidade. Como ressaltou o Supremo Tribunal Federal, “é incabível a arguição de descumprimento de preceito fundamental quando ainda existente medida eficaz para sanar a lesividade”.405 O Supremo Tribunal Federal entendeu possível, em face do princípio da subsidiariedade, receber arguição de descumprimento de preceito fundamental como ação direta de inconstitucionalidade, desde que “demonstrada a impossibilidade de se conhecer da ação como ADPF, em razão da existência de outro meio eficaz para impugnação da norma, qual seja, a ADI, porquanto o objeto do pedido principal é a declaração de
inconstitucionalidade de preceito autônomo por ofensa a dispositivos constitucionais, restando observados os demais requisitos necessários à propositura da ação direta”.406 O princípio da subsidiariedade exige, portanto, o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceito fundamental ou a verificação, ab initio, de sua inutilidade para preservação do preceito fundamental.407 Caso os mecanismos utilizados, de maneira exaustiva, mostrem-se ineficazes, será cabível o ajuizamento da arguição. Da mesma forma, se desde o primeiro momento se verificar a ineficiência dos demais mecanismos jurisdicionais para a proteção do preceito fundamental, será possível que um dos colegitimados se dirija diretamente ao STF, por meio de arguição de descumprimento de preceito fundamental (por exemplo:
ADPF nº 54 – questão de ordem – aborto de feto anencéfalo). Em relação ao princípio da subsidiariedade, entendeu o Supremo Tribunal Federal a impossibilidade de ajuizamento de ADPF se possível o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade no âmbito do Tribunal de Justiça local. Conforme salientado pelo Ministro Celso de Mello, “a possibilidade de instauração, no âmbito do Estado-membro, de processo objetivo de fiscalização normativa abstrata de leis municipais contestadas em face da Constituição Estadual (CF, art. 125, § 2º) torna inadmissível, por efeito da incidência do princípio da subsidiariedade (Lei nº 9.882/99, art. 4º, § 1º), o acesso imediato à arguição de descumprimento de preceito fundamental. É que, nesse processo de controle abstrato de normas locais, permite-se, ao Tribunal de Justiça
estadual, a concessão, até mesmo in limine, de provimento cautelar neutralizador da suposta lesividade do diploma legislativo impugnado, a evidenciar a existência, no plano local, de instrumento processual de caráter objetivo apto a sanar, de modo pronto e eficaz, a situação de lesividade, atual ou potencial, alegadamente provocada por leis ou atos normativos editados pelo Município”.408
• procedimento: A petição inicial será apresentada em duas vias, devendo conter cópias do ato questionado e dos documentos necessários para comprovar a impugnação e deverá conter a indicação do preceito fundamental que se considera violado; a indicação do ato questionado; a prova da violação do preceito fundamental e o pedido, com suas especificações. A arguição realizada na hipótese de controvérsia constitucional sobre lei ou ato
normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição, deverá vir acompanhada de comprovação dessa controvérsia judicial. A petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de arguição de descumprimento de preceito fundamental, faltar algum requisito legal ou for inepta, cabendo dessa decisão agravo ao Plenário. Analisado o pedido de liminar, se houver, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias e, entendendo necessário, poderá ouvir as partes nos processos que ensejaram a arguição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou, ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na
matéria. Conforme estabelece a lei, poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo. Decorrido o prazo das informações, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os Ministros, e pedirá dia para julgamento;
• concessão de medida liminar: por decisão da maioria absoluta de seus membros, o STF poderá deferir pedido de medida liminar, salvo em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou, ainda, no recesso, quando a liminar poderá ser deferida pelo Ministro relator, ad referendum do Plenário. A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da
arguição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes de coisa julgada;409
• possibilidade de participação de amicus curiae (aplicação analógica do art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99);410
• participação do Ministério Público: Não bastasse o § 1º, do art. 103, da Constituição Federal, que determina que o Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal, a Lei nº 9.882/99 previu no parágrafo único de seu art. 7º, que o Ministério Público, nas arguições que não houver formulado, terá vista do processo, por cinco dias, após o decurso do prazo para informações;
• quorum para instalação da sessão e para a decisão: Conforme estabelece o art. 8º,
da Lei nº 9.882/99, a decisão sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental somente será tomada se presentes na sessão pelo menos dois terços dos Ministros. A lei não estabelece quorum qualificado para a votação, porém se houver necessidade de declaração de inconstitucionalidade do ato do Poder Público que tenha descumprido preceito fundamental, nos termos do art. 97 da Constituição Federal, haverá necessidade de maioria absoluta;
• efeitos da decisão: a decisão terá eficácia contra todos – erga omnes – e efeitos vinculantes relativamente aos demais órgãos do Poder Público, cabendo, inclusive, reclamação para garantia desses efeitos. Em relação à amplitude e efeitos temporais da decisão, a Lei nº 9.882/99 prevê, em seu art. 11, que ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Em relação a esses efeitos conferir nesse capítulo item 10.9, onde essas inovações foram tratadas;
• comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados: julgada a ação, as autoridades ou órgãos responsáveis serão comunicados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental;
• irrecorribilidade da decisão: a decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido em arguição de descumprimento de preceito fundamental é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória.
14.1 Arguição de descumprimento de preceito fundamental preventiva e repressiva
Caberá, preventivamente, arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal com o objetivo de se evitar lesões a princípios, direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, ou, repressivamente, para repará-las, quando causadas pela conduta comissiva ou omissiva de qualquer dos poderes públicos.411
Nessa hipótese, o nosso ordenamento jurídico foi menos generoso que o
argentino, pois somente possibilita a arguição quando se pretenda evitar ou cessar lesão, decorrente de ato praticado pelo Poder Público, a preceito fundamental previsto na Constituição, diferentemente do direito de Amparo argentino, que é admissível contra toda ação ou omissão de autoridades públicas ou de particulares, que de forma atual ou iminente, lesionem, restrinjam, alterem ou ameacem, com arbitrariedade ou manifesta ilegalidade, direitos e garantias reconhecidos pela Constituição, pelos tratados e leis.412
Independentemente dessa restrição, o mecanismo previsto pelo § 1º, do art. 102, da CF e regulamentado pela Lei nº 9.882/99, possibilita uma maior efetividade no controle das ilegalidades e abusos do Poder Público e na concretização dos direitos fundamentais.
O Supremo Tribunal Federal poderá, de forma rápida, geral e obrigatória – em face da possibilidade de liminar e da existência de efeitos erga omnes e vinculantes – evitar ou fazer cessar condutas do poder público que estejam colocando em risco os preceitos fundamentais da República, e, em especial, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e os direitos e garantias fundamentais.
Note-se que, em face do art. 4º, caput e § 1º, da Lei nº 9.882/99, que autoriza a não admissão da arguição de descumprimento de preceito fundamental, quando não for caso ou quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade, foi concedida certa discricionariedade ao Supremo Tribunal Federal, na escolha das arguições que deverão ser processadas e julgadas, podendo, em face de seu caráter subsidiário, deixar de conhecê-las quando
concluir pela inexistência de relevante interesse público, sob pena de tornar-se uma nova instância recursal para todos os julgados dos tribunais superiores e inferiores.413
Dessa forma, entendemos que o STF poderá exercer um juízo de admissibilidade discricionário para a utilização desse importantíssimo instrumento de efetividade dos princípios e direitos fundamentais, levando em conta o interesse público e a ausência de outros mecanismos jurisdicionais efetivos.
Importante ressaltar que essa discricionariedade concedida ao Supremo Tribunal Federal decorre do fato de que toda Corte que exerce a jurisdição constitucional não é somente um órgão judiciário comum, mas sim órgão político diretivo das condutas estatais, na medida
em que interpreta o significado dos preceitos constitucionais, vinculando todas as condutas dos demais órgãos estatais e como tal deve priorizar os casos de relevante interesse público.
Como ressalta Bernard Schwartz, ao analisar esse poder de escolha da Corte Suprema norte-americana, “o seu poder facultativo de determinar os casos em que ela própria pode julgar resultou no fato de que ela deixou de ser simplesmente um órgão judiciário comum. É um tribunal de recurso especial, apenas para a solução de questões consideradas como envolvendo um interesse público substancial e não os interesses exclusivos de algumas pessoas privadas”.414
14.2 Arguição de descumprimento de preceito fundamental por equiparação
Essa hipótese de arguição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 9.882/99, distanciou-se do texto constitucional, uma vez que o legislador ordinário, por equiparação legal, também considerou como descumprimento de preceito fundamental qualquer controvérsia constitucional relevante sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.
O texto constitucional é muito claro quando autoriza à lei o estabelecimento, exclusivamente da forma pela qual o descumprimento de um preceito fundamental poderá ser arguido perante o Supremo Tribunal Federal. Não há qualquer autorização constitucional para uma ampliação das competências do STF.
Controvérsias entre leis ou atos normativos e normas constitucionais, relevantes que sejam, não são hipóteses idênticas ao descumprimento pelo Poder Público de um preceito fundamental, e devem ser resolvidas em sede de controle de constitucionalidade, tanto difuso quanto concentrado.
O legislador ordinário utilizou-se de manobra para ampliar, irregularmente, as competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal, que conforme jurisprudência e doutrina pacíficas, somente podem ser fixadas pelo texto magno. Manobra essa eivada de flagrante inconstitucionalidade, pois deveria ser precedida de emenda à Constituição.
Note-se que foi criada pela Lei nº 9.882/99 a possibilidade de um dos colegitimados arguir ao Supremo Tribunal Federal a
inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, fora das hipóteses cabíveis no controle concentrado, quais sejam – controvérsia constitucional relevante sobre lei ou ato normativo municipal e controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal anteriores à Constituição Federal.
Em ambas as hipóteses o Supremo Tribunal Federal já havia decidido faltar-lhe competência para essa análise, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, por ausência de previsão expressa na Constituição Federal, não sendo admissível que o legislador ordinário, por meio de uma manobra terminológica, amplie essa competência sem alterar o art. 102, I, a, da CF.415
Relembre-se, ainda, de que a legitimação para a arguição de descumprimento de
preceito fundamental e para a ação direta de inconstitucionalidade são idênticas (art. 2º, I, da Lei nº 9.882/99), sendo, igualmente, idênticos seus efeitos erga omnes e vinculantes (art. 10, § 3º, da Lei nº 9.882/99 e art. 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99); o que iguala ambas as hipóteses, demonstrando, claramente, a tentativa da legislação ordinária em ampliar, repita-se, de forma inconstitucional, a competência do Supremo Tribunal Federal em sede de ação direta de inconstitucionalidade.
Em conclusão, entendemos que essa hipótese legal, por não se constituir descumprimento de preceito fundamental, contraria o art. 102, § 1º, da Constituição Federal, sendo, portanto, inconstitucional.
Ressalte-se, porém, que o Supremo Tribunal Federal, em questão de ordem e
por maioria de votos, reconheceu o cabimento de arguição de descumprimento de preceito fundamental para analisar lei anterior à Constituição Federal.416
Como destacado pelo Supremo Tribunal Federal, foram apontados
“como violados os preceitos dos artigos 1º, IV (dignidade da pessoa humana); 5º, II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade); 6º, caput, e 196 (direito à saúde), todos da CF, e, como ato do Poder Público, causador da lesão, o conjunto normativo ensejado pelos artigos 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, requerendo, em última análise, a interpretação conforme à Constituição dos referidos dispositivos do CP, a fim de explicitar que os mesmos não se aplicam aos casos de aborto de feto anencéfalo”, consequentemente, entendeu existir
“necessidade do pronunciamento do Tribunal, a fim de se evitar a insegurança jurídica decorrente de decisões judiciais discrepantes acerca da matéria”, e, apontando “a inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesividade alegada, apontando-se, como fundamento, o que verificado relativamente ao habeas corpus 84025/RJ (DJU de 25.6.2004), da relatoria do Min. Joaquim Barbosa, no qual a paciente, não obstante recorrer a essa via processual, antes do pronunciamento definitivo pela Corte, dera à luz a feto que veio a óbito em minutos, ocasionando o prejuízo da impetração”, concluiu afirmando que “quanto ao caráter acentuadamente objetivo da ADPF e a necessidade de o juízo da subsidiariedade ter em vista os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional – a ação direta de inconstitucionalidade e a
ação declaratória de constitucionalidade. Assim, incabíveis estas, como no caso de controle de legitimidade do direito pré-constitucional, possível a utilização daquela”.417
Dessa forma, o STF admite o ajuizamento de arguição de descumprimento de preceito fundamental em virtude de controvérsia constitucional relevante sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição,418 ainda que, excepcionalmente, revogados.
O STF alterou seu posicionamento anterior, que exigia para o cabimento de ADPF a vigência da norma impugnada.419 Na ADPF nº 84/DF, por unanimidade, a Corte admitiu o cabimento de ADPF contra medida provisória rejeitada, e, consequentemente, não mais em vigor, afirmando que “cumpre, porém,
demonstrar a inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesividade do ato do Poder Público questionado, conforme exige o artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99 (subsidiariedade da arguição de descumprimento de preceito fundamental). A inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 242/2005 foi suscitada nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nos 3467-7 e 3473-1, tendo sido, inclusive, deferida medida liminar para suspender a eficácia da MP. Ocorre que, com a rejeição da Medida pelo Senado Federal, ambas as ações foram consideradas prejudicadas por esta Suprema Corte, em razão de perda do objeto. Desta forma, torna-se cabível a presente ação, pois o exame da subsidiariedade deve ser realizado considerando-se os demais processos objetivos disponíveis em nosso sistema
constitucional, permitindo uma solução ampla e eficaz para a controvérsia”.420
Da mesma maneira, ampliando seu cabimento, o STF reconheceu a possibilidade de analisar em sede de ADPF o denominado “estado de coisas inconstitucional”, consistente em “violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades”. Entendeu nossa Corte Suprema que, “no sistema prisional brasileiro ocorreria violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica”, e, consequentemente, “as penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios
converter-se-iam em penas cruéis e desumanas”.421
15 SÚMULAS VINCULANTES (LEI Nº 11.417/2006)
A instituição da súmula vinculante, pela EC nº 45/04, corresponde à tentativa de adaptação do modelo da common law (stare decisis) para nosso sistema romano-germânico (civil law); porém, é importante relembrar que essa ideia já fora adotada no Império, quando, em 1876, o Supremo Tribunal de Justiça passou a ter a possibilidade de editar assentos com força de lei, em relação à “inteligência das leis civis, comerciais e criminais, quando na execução delas ocorrerem dúvidas manifestadas no julgamento divergentes do mesmo tribunal, das Relações e dos Juízes”, nos termos do art. 2º, do Decreto nº 6.142, de 10-3-1876, sem porém que
tivesse sido utilizado até a proclamação da República.
As súmulas vinculantes surgem a partir da necessidade de reforço à ideia de uma única interpretação jurídica para o mesmo texto constitucional ou legal, de maneira a assegurar-se a segurança jurídica e o princípio da igualdade, pois os órgãos do Poder Judiciário não devem aplicar as leis e atos normativos aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias, devendo, pois, utilizar-se de todos os mecanismos constitucionais no sentido de conceder às normas jurídicas uma interpretação única e igualitária.
Não foi outra a intenção do legislador constituinte ao estabelecer como competência do Supremo Tribunal Federal o julgamento dos recursos extraordinários (uniformização na interpretação da
Constituição Federal) e competência ao Superior Tribunal de Justiça para o julgamento dos recursos especiais (uniformização na interpretação da legislação federal).
Esse modelo, porém, não se mostrou célere e suficiente para impedir desigualdades perpetradas por diferentes interpretações judiciais da mesma norma, buscando o legislador constituinte derivado, no modelo anglo-saxônico, o stare decisis, da expressão stare decisis et quieta non movere (mantenha-se a decisão e não se perturbe o que foi decidido), onde nosso exemplo mais próximo são os Estados Unidos da América, em que as decisões da Corte Suprema são acatadas como regra por todo o sistema judiciário e pela administração pública.
Como ressaltado pelo Ministro Carlos Velloso,
“no sistema judicial norte-americano, que garante aos indivíduos, de modo amplo, a tutela jurisdicional, todos os Tribunais estão vinculados às decisões da Suprema Corte, nos casos em iguais estados de fato em que a decisão da Suprema Corte foi tomada. Isso, sem dúvida, proporciona segurança jurídica”.422
A EC nº 45/04 não adotou o clássico stare decisis, nem tampouco transformou nosso sistema de civil law em common law, porém permitiu ao Supremo Tribunal Federal de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em
relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
A previsão do caput do art. 103-A, da Constituição Federal, de edição de lei federal, que deve estabelecer a forma de edição, revisão e cancelamento das súmulas vinculantes, não impediria o Supremo Tribunal Federal de ter utilizado esse mecanismo, imediatamente, após a publicação da EC nº 45/04, por se tratar de norma constitucional de eficácia contida. Nesse sentido, a EC nº 45/04 não só trouxe os requisitos mínimos para a imediata aplicabilidade das súmulas vinculantes, como também expressamente previu, sem qualquer condicionamento à edição da legislação federal, que as atuais súmulas
do Supremo Tribunal Federal somente poderão produzir efeitos vinculantes após sua confirmação por dois terços de seus integrantes e publicação na imprensa oficial (EC nº 45/04, art. 8º).
Não houve, porém, a edição de súmula vinculante até a publicação da Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006, que disciplinou a edição, a revisão e o cancelamento dos enunciados das súmulas pelo Supremo Tribunal Federal.
A lei trouxe algumas novidades em relação ao texto-base da Constituição Federal, em especial ao estabelecer dois mecanismos geradores da edição, revisão e cancelamento de enunciados de súmulas vinculantes pelo STF: direto e incidental.
O procedimento direto, nos termos do art. 103-A da Constituição Federal e da Lei nº 11.417/06, cuja vacatio legis é de 3 (três)
meses, exige os seguintes requisitos e procedimento, sem prejuízo da disciplina subsidiária do regimento interno do Supremo Tribunal Federal:
• órgão competente: somente o Supremo Tribunal Federal poderá editar súmulas vinculantes;423
• objeto: a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas;
• legitimidade: as súmulas vinculantes poderão ser editadas de ofício ou por provocação de qualquer dos colegitimados para o ajuizamento de ações diretas de inconstitucionalidade que possuem legitimação constitucional, ou seja, pelo Presidente da República, Mesa da Câmara dos Deputados, Mesa do Senado Federal, Governadores de Estado ou do Distrito Federal, Mesas das Assembleias Legislativas, Procurador-Geral da
República, partido político com representação no Congresso Nacional, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional (CF, art. 103, I a IX). A Lei nº 11.417/06 ampliou a colegitimação para a propositura de edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula vinculante, estendendo essa faculdade ao Defensor Público da União, aos Tribunais Superiores, aos Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, aos Tribunais Regionais Federais, aos Tribunais Regionais do Trabalho, aos Tribunais Regionais Eleitorais e aos Tribunais Militares (legitimação legal). Conferir, em relação a essa legitimidade, Capítulo 12, item 10.3, inclusive no tocante à pertinência temática, que entendemos deva ser integralmente aplicada para a
provocação de edição de súmulas vinculantes;
• controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica: esse requisito deixa clara uma das finalidades dessa nova previsão constitucional, qual seja, a garantia da segurança jurídica, ao exigir a necessária discussão sobre os múltiplos argumentos jurídicos, antes de o Supremo Tribunal Federal editar uma súmula, pois, como salientado por Sálvio de Figueiredo Teixeira, “as súmulas vinculantes serão elaboradas com base na maturidade do trabalho jurisprudencial, fruto de lenta e prolongada atividade técnica dos juízes, de muitas e longas discussões, da observação atenta de casos repetidos”;424
• relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica: aqui, a EC nº 45/04, com a exigência desse requisito, expôs a segunda importante finalidade das súmulas vinculantes, a preservação do princípio da igualdade, ou seja, a necessidade de uma mesma interpretação jurídica para uma questão idêntica que se repete em diversos processos, além de procurar efetivar o princípio da celeridade processual, consagrado no art. 5º, LXXVIII, e impedir a eternização de conflitos cujo posicionamento jurídico o STF já definiu;
• atuação do Procurador-Geral da República, que deverá manifestar-se previamente à edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula vinculante, nas propostas que não houver formulado;
• Amicus Curiae: nos termos do § 2º do art. 3º da Lei nº 11.417/06, o relator poderá admitir, por decisão irrecorrível, a manifestação de terceiros na questão, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (conferir em relação ao amicus curiae, Capítulo 12, item 10.8);
• quorum qualificado de votação: a edição, revisão ou cancelamento de enunciados de súmulas vinculantes exige a maioria de 2/3 dos membros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária;
• efeitos vinculantes com eficácia imediata (conferir em relação à vinculação dos efeitos, Capítulo 12, itens 10.9 e 13.6);
• possibilidade de manipulação dos efeitos gerados pelas súmulas vinculantes: o art. 4º da Lei nº 11.417/06 admitiu a modulação ou limitação temporal de efeitos na edição das súmulas vinculantes,
estabelecendo que, por decisão de 2/3 de seus membros, o Supremo Tribunal Federal poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público (conferir Capítulo 12, item 10.9);
• publicação do enunciado da súmula vinculante: no prazo de 10 dias após a sessão em que editar, rever ou cancelar enunciado de súmula com efeito vinculante, o STF publicará, em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União, o enunciado respectivo.
O segundo mecanismo de edição, revisão ou cancelamento de enunciados de súmulas vinculantes – procedimento incidental –, criado especificamente pela Lei nº 11.417/06, difere do procedimento direto
no tocante à legitimidade e à existência de caso específico em julgamento no STF, para que possa ser iniciado.
Dessa forma, o procedimento incidental para a edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula vinculante exige os seguintes requisitos:
• requisitos idênticos ao procedimento direto: objeto (validade, interpretação e eficácia de normas determinadas), controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica;
• requisitos específicos: legimitidade e propositura no curso de processo. Assim, o Município poderá propor, incidentalmente ao curso de processo em que seja parte, a
edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante.
Ressalte-se que, tanto no procedimento direto, quanto no procedimento incidental, não haverá suspensão de processos que tenham por objeto a matéria discutida no Plenário do Supremo Tribunal Federal.
As exigências de controvérsia entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica (proteção ao princípio da segurança jurídica) e de relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica (proteção aos princípios da igualdade e celeridade) demonstram que a correta edição e utilização das súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal425 possibilitará a drástica redução do número de processos e a célere pacificação e solução uniforme de
complexos litígios, que envolvam toda a coletividade e coloquem em confronto diferentes órgãos do Judiciário ou este com a administração pública.426
Além disso, assegurará direitos idênticos a todos, mesmo àqueles que não tenham ingressado no Poder Judiciário, mas, eventualmente, pudessem ser lesados pela administração, em virtude de seus efeitos vinculantes não só ao Poder Judiciário, mas também a todos os órgãos da administração pública direta e indireta.
O Supremo Tribunal Federal, reforçando as finalidades de proteção ao princípio da segurança jurídica e proteção aos princípios da igualdade e celeridade desse novo instituto, dotou as súmulas vinculantes de caráter impeditivo de recurso, permitindo, portanto, que os Tribunais ou Turmas recursais recorridos
possam realizar e, eventualmente, negar a admissibilidade dos recursos extraordinários e dos agravos de instrumento contrários ao objeto da súmula.
Como salientado por Reis Friede, a
“reforma constitucional permitirá, sem novos processos, a realização da justiça para os interessados em situação idêntica e reduzirá significativamente a quantidade de processos em tramitação no Judiciário, o que contribuirá para a melhor qualidade da prestação jurisdicional”.427
Porém, a adoção de súmulas vinculantes não é unânime na doutrina nacional, gerando grandes controvérsias e posições antagônicas.
Maria Tereza Sadek expõe de forma clara as posições antagônicas, constatando que
“a súmula vinculante (stare decisis) é vista por seus defensores como indispensável para garantir a segurança jurídica e evitar a multiplicação, considerada desnecessária, de processos nas várias instâncias. Tal providência seria capaz de obrigar os juízes de primeira instância a cumprir as decisões dos tribunais superiores, mesmo que discordassem delas, e impediria que grande parte dos processos tivesse continuidade, desafogando o Judiciário de processos repetidos. Seus oponentes, por seu lado, julgam que a adoção da súmula vinculante engessaria o Judiciário, impedindo a inovação e transformando os julgamentos de primeiro grau em meras cópias de decisões já tomadas. Dentre os que contestam tal expediente, há os que aceitam a súmula impeditiva de recurso, um sistema em que o juiz não fica obrigado
a seguir o entendimento dos tribunais superiores do STF, mas permite que a instância superior não examine o recurso que contrarie a sua posição”.428
A doutrina contrária às súmulas vinculantes afirma que haverá verdadeiro engessamento de todo o Poder Judiciário e consequente paralisia na evolução do Direito,429 além da possibilidade de maior totalitarismo do órgão de cúpula judicial, como alegado pelo professor Eros Grau, atualmente Ministro do Supremo Tribunal Federal, ao se posicionar contra os efeitos vinculantes e afirmar que “nenhuma razão ou pretexto se presta a justificar essa manifestação de totalitarismo, que também nenhuma lógica pode sustentar, e que, afinal, há de agravar ainda mais a crise do direito oficial, em nada contribuindo à restauração da sua eficácia”.430
Não concordamos com esse posicionamento, nem tampouco nos parece que a edição de súmulas vinculantes poderá acarretar o engessamento e consequente paralisia na evolução e interpretação do Direito.431 A própria história do stare decisis afasta essas alegações, pois, entre todos os tribunais, nenhum se notabilizou tanto pela defesa intransigente, polêmica, construtiva e evolutiva dos direitos fundamentais como a Suprema Corte americana, mesmo adotando o mecanismo de vinculação, não podendo, porém, ser acusada de imutabilidade interpretativa.
Com o passar dos anos, a defesa dos direitos fundamentais pela Corte Suprema seguiu a evolução da sociedade norte-americana, passando a colocar a pessoa humana em primeiro plano, mesmo em detrimento do direito de propriedade,
inicialmente defendido de maneira tão ciosa no sistema da common law.
Relembre-se, nesse sentido, o famoso caso Dred Scott (Scott v. Sandford, 19 How. 393-1857), em que a Corte Suprema julgou inconstitucional a seção 8ª do Missouri Compromise Act, de 1850, que proibira a escravidão nos territórios, por entender sua contrariedade à 5ª Emenda (due process of law)432 e, mesmo após a abolição da escravatura, basta analisar o ativismo judicial da Corte de Warren, que encerrou com a segregação racial nos Estados Unidos, quando a Corte, em 17 maio de 1954, entendeu, revogando precedente de 1866, que a existência de separação nas escolas para os negros era incompatível com a 14ª Emenda,433 que garante a igual proteção das leis, e, portanto, a discriminação racial nas escolas públicas era flagrantemente inconstitucional, tendo,
em memorável voto, proclamado o Chief Justice Warren que
“atualmente, é duvidoso se possa esperar vença alguma criança na vida, caso se lhe negue a oportunidade de educar-se. Tal oportunidade quando o Estado tomou a seu cargo provê-la, constitui direito que deve ser acessível a todos, em igualdade de condições, ... apesar de poderem ser iguais os fatores tangíveis, a segregação de crianças nas escolas públicas apenas por motivo racial priva grupos minoritários de iguais oportunidades educacionais”,
para concluir que “separá-las de outras de idade e qualificações semelhantes devido apenas à sua raça gera sentimento de inferioridade quanto ao seu status na comunidade que pode contaminar seus corações e espíritos de modo irreparável”.434
O próprio Direito inglês alterou tradicional regra de imutabilidade em seus precedentes, consagrada pela Câmara dos Lordes em 1898, no caso London Tramways v. London County Council, e adotou, após 68 anos, nova orientação, que desobriga a Câmara dos Lordes à obrigatoriedade de seus precedentes (regra adotada em 26-7-1966, no Practice Statement of 1966, lido pelo Lord Gardiner, no Parlamento Inglês).
O fundamento da alteração foi a consciência de que uma rígida aderência aos precedentes pode levar a injustiças e também restringir indevidamente a adequada evolução do Direito. Observe-se, porém, que mesmo após a adoção do novo posicionamento, são excepcionais e raríssimos os casos em que a Câmara dos Lordes alterou os próprios precedentes, em prol da segurança jurídica.435
A EC nº 45/04 possibilitou ao Supremo Tribunal Federal, assim como à Corte Suprema Americana e à Câmara dos Lordes inglesa, a não vinculação ad eternum a seus próprios precedentes, podendo, a partir de novas provocações, reflexões e diversas decisões futuras, alterar a interpretação dada em matéria constitucional e, consequentemente, proceder a revisão ou cancelamento da súmula, o que impedirá qualquer forma de engessamento e paralisia na evolução do Direito, sem, contudo, desrespeitar os princípios da igualdade, segurança jurídica e celeridade processual.436
Dessa forma, nos termos do § 2º do art. 103-A, da Constituição Federal, regulamentado pela Lei nº 11.417/06, a revisão ou cancelamento de súmula poderá ser, igualmente, de ofício ou provocada por um dos colegitimados, tanto pelo
procedimento direto, quanto pelo procedimento incidental.
Ressalte-se, ainda, que, reforçando a possibilidade de mutação e evolução interpretativa do direito sumular, a Lei nº 11.417/06 estabeleceu que, revogada ou modificada a lei em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso.
Além disso, é importante ressaltar que competirá a cada um dos magistrados, ao analisar o caso concreto, a conclusão pela aplicação de determinada súmula ou não, ou mesmo a possibilidade de apontar novos pontos característicos que não se encontram analisados na Súmula, ou ainda, a necessidade de alteração da súmula em virtude da evolução do Direito,
de maneira semelhante ao que ocorre no direito norte-americano, quando o juiz utiliza-se do mecanismo processual do distinguishing (distinção entre o caso concreto e o precedente judicial) para demonstrar que não é o caso de aplicação de determinado precedente na hipótese em julgamento.
A EC nº 45/04, corretamente, não previu, por exagerado e inútil, nenhum mecanismo que possa responsabilizar disciplinarmente o juiz pela não adoção das súmulas vinculantes.437 A proteção da validade das súmulas vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal será feita da mesma maneira como vem ocorrendo com os efeitos vinculantes nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, por meio de reclamações (CF, art. 102, I, l cc
art. 103-A, § 3º – conferir no Capítulo 12, item 10.9.1).
Assim, do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso, sem prejuízo dos recursos cabíveis ou outros meios admissíveis de impugnação (art. 7º da lei).
Em se tratando de descumprimento administrativo de enunciado de súmula vinculante, por omissão ou ato da administração, a reclamação será cabível após o esgotamento das vias administrativas. Nesses casos, a própria
Lei nº 11.417/06 previu a necessidade de explicitação das razões de aplicabilidade ou inaplicabilidade do enunciado da súmula vinculante pela autoridade administrativa prolatora da decisão impugnada, se não a reconsiderar; antes de encaminhar o recurso à autoridade superior; competindo, igualmente, à autoridade administrativa competente para decidir o recurso explicitar as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula.
Observe-se, porém, que para não tornar inócuos os efeitos vinculantes das súmulas do STF, a Lei nº 11.417/06 alterou a legislação sobre processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal (Lei nº 9.784/99), estabelecendo que, acolhida pelo Supremo Tribunal Federal a reclamação fundada em violação de enunciado da súmula vinculante, será dada
ciência à autoridade prolatora da decisão e ao órgão competente para o julgamento do recurso, que deverão adequar as futuras decisões administrativas, em casos semelhantes, sob pena de responsabilização de pessoas nas esferas cível, administrativa e penal.
Por vislumbrar ofensa à Súmula Vinculante 13, o STF suspendeu a nomeação de irmão de Governador de Estado para o cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas, entendendo que “estariam presentes os requisitos autorizadores da concessão da liminar. Considerou-se que a natureza do cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas não se enquadraria no conceito de agente político, uma vez que exerce a função de auxiliar do Legislativo no controle da Administração Pública, e que o processo de nomeação do irmão do Governador, ao menos numa análise perfunctória dos
autos, sugeriria a ocorrência de vícios que maculariam a sua escolha por parte da Assembleia Legislativa do Estado”.438
Igualmente, a Corte, em medida cautelar em Reclamação 8.225/SC, concedida pelo Ministro Celso de Mello, garantiu o efetivo cumprimento da Súmula Vinculante 14, em defesa do princípio constitucional da ampla defesa.
Em relação à vinculação de efeitos previstos para as súmulas vinculantes e suas consequências, analisar nesse mesmo capítulo, itens 10.9 e 13.6, que se aplicam integralmente.

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