J 6.1. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: DIREITO COMPARADO E SIS-TEMA BRASILEIRO1
J 6.1.1. Noções preliminares O legislador constituinte originário criou mecanismos por meio dos quais se
controlam os atos normativos, verificando sua adequação aos preceitos previstos na “Lei Maior”.
Como requisitos fundamentais e essenciais para o controle, lembramos a exis-tência de uma Constituição rígida e a atribuição de competência a um órgão para resolver os problemas de constitucionalidade, órgão esse que variará de acordo com o sistema de controle adotado. Conforme já estudado, Constituição rígida é aquela que possui um processo de
alteração mais dificultoso, mais árduo, mais solene que o processo legislativo de al-teração das normas não constitucionais. A CF brasileira é rígida, diante das regras procedimentais solenes de alteração previstas em seu art. 60. A ideia de controle, então, emanada da rigidez, pressupõe a noção de um esca-lonamento normativo, ocupando a Constituição o grau máximo na aludida relação hierárquica, caracterizando-se como norma de validade para os demais atos norma-tivos do sistema. Trata-se do princípio da supremacia da Constituição, que, nos dizeres do Pro-fessor José Afonso da Silva, reputado por Pinto Ferreira como “pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político”, “significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas”. Desse princípio, continua o mestre, “resulta o da com-patibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a Constituição. As que não forem compatíveis com ela são invá-lidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade das inferiores”.2 A Constituição está, pois, no ápice da pirâmide, orientando e “iluminando” os
demais atos infraconstitucionais. Alertamos que há uma tendência a ampliar o conteúdo do parâmetro de consti-tucionalidade de acordo com aquilo que a doutrina vem chamando de bloco de cons-titucionalidade e que será estudado no item 6.7.1.3.
J 6.1.2. A inconstitucionalidade das leis e a regra geral da “teoria da nulidade”. Sistema austríaco (Kelsen) versus Sistema norte--americano (Marshall). Anulabilidade versus nulidade
Pode-se afirmar que a maioria da doutrina brasileira acatou, inclusive por influência do direito norte-americano, a caracterização da teoria da nulidade ao se declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato nor-mativo (afetando o plano da validade). Trata-se, nesse sentido, de ato declaratório que reconhece uma situa-ção pretérita, qual seja, o “vício congênito”, de “nascimento”, de “origem” do ato normativo. A ideia de a lei ter “nascido morta” (natimorta), já que existente enquanto ato
estatal, mas em desconformidade (em razão do vício de inconstitucionalidade) em relação à noção de “bloco de constitucionalidade” (ou paradigma de controle), consa-gra a teoria da nulidade, afastando a incidência da teoria da anulabilidade. Assim, o ato legislativo, por regra, uma vez declarado inconstitucional, deve ser
considerado, nos termos da doutrina brasileira majoritária, “... nulo, írrito, e, portan-to, desprovido de força vinculativa”.3 A doutrina tradicional já se manifestava nessa linha, destacando-se os ensina-e Francisco Campos.7
Castro Nunes6 Cappelletti, ao descrever o sistema “norte-americano”, observa que “... a lei incons-titucional, porque contrária a uma norma superior, é considerada absolutamente nula (‘null and void’) e, por isto, ineficaz, pelo que o juiz, que exerce o poder de controle, não anula, mas, meramente, declara (preexistente) nulidade da lei inconstitucional”.8 Contra esse entendimento, destaca-se a teoria da anulabilidade da norma inconstitucional defendida por Kelsen9
e que influenciou a Corte Constitucional ndo-se como constitutiva a natureza jurídica da decisão que a reconhece.10 Segundo Cappelletti, no sistema austríaco, diferentemente do sistema norte-ame-ricano da nulidade, “... a Corte Constitucional não declara uma nulidade, mas anula, cassa (‘aufhebt’) uma lei que, até o momento em que o pronunciamento da Corte não seja publicado, é válida e eficaz, posto que inconstitucional (sic). Não é só: mas — coi-sa ainda mais notável — a Corte Constitucional austríaca tem, de resto, o poder discri-cionário de dispor que a anulação da lei opere somente a partir de uma determinada data posterior (‘Kundmachung’) de seu pronunciamento, contanto que este diferimento de eficácia constitutiva do pronunciamento não seja superior a um ano...”.11 Na linha da teoria da anulabilidade da lei inconstitucional (ineficácia a partir
da decisão), no Brasil, em sede doutrinária e minoritária, destacam-se Pontes de Miranda12
e Regina Nery Ferrari.13
A confrontação dos sistemas pode ser assim esquematizada:
Esse quadro representa tanto a teoria da nulidade (que prevalece na realidade
brasileira) como a da anulabilidade em seus extremos. Ao longo dos tempos, doutrina e jurisprudência procuraram flexibilizá-las. É o que passamos a estudar.
J 6.1.3. Flexibilização das teorias da “nulidade absoluta da lei declarada in-constitucional” e da “anulabilidade da norma inconstitucional” no direito estrangeiro (brevíssima noção)
Cappelletti observa que tanto o rigor da regra da não retroatividade do sistema
austríaco como o da técnica da nulidade absoluta do sistema norte-americano tive-ram de ser reavaliados, visto que insubsistentes.14
J 6.1.3.1. Áustria Em relação à Áustria, em 1929, a regra que negava qualquer retroatividade às
decisões e pronunciamentos da Corte Constitucional foi atenuada, fixando-se a pos-sibilidade de atribuição de efeitos retroativos à decisão anulatória. Regina Ferrari observa que “o efeito voltado para o futuro — ex nunc — é o
normal das sentenças constitutivas, mas não pertence à sua essência: o essencial é a produção de um estado jurídico que não existia antes de tal decisão”. Conclui em seguida que “... a norma inconstitucional é anulável e os atos prati-cados sob o império dessa lei devem ser considerados válidos, até e enquanto não haja decisão que a fulmine com tal vício, operando eficaz e normalmente como qual-quer outra disposição válida, já que o é até a decretação de inconstitucionalidade”. Finalmente, admite que referida sentença pode ter alcance ex tunc.15
J 6.1.3.2. Estados Unidos Quanto à técnica “fria” da nulidade ab origine (de origem norte-americana —
“the inconstitutional statute is not law at all”16 — e adotada no Brasil), Cappelletti
passa a imaginar situações práticas que apontariam a sua inadequação. Como ficariam todos os atos praticados, durante longos anos, sob a vigência de
uma lei que venha a ser declarada inconstitucional? Como resolver a questão de um contrato que tenha sido celebrado e servido de base para a prestação de um serviço público por longos anos? Como ficarão os efeitos da lei? Como sustentar o cumpri-mento de uma pena que tenha fundamento em lei que venha a ser declarada incons-titucional? Que fazer com os efeitos já consolidados? E a coisa julgada? E o mínimo de certeza e estabilidade que todas as relações jurídicas devem ter?
Nos Estados Unidos, o precedente lembrado é o caso Linkletter v. Walker, 381
U.S. 618 (1965), em relação ao qual, realizando análise política, a Suprema Corte entendeu que o reconhecimento de inconstitucionalidade de lei que permitia certo sistema de colheita de provas não retroagiria para invalidar decisões já tomadas com base naquele sistema. Conforme relatado por Gilmar Mendes,17
toda a polêmica decorreu do julga-mento do caso Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643 (1961), no qual a Suprema Corte enten-deu, nos termos da 4.a Emenda, que a prova obtida ilegalmente não poderia ser con-siderada no juízo penal, seja nas Cortes Federais, como também, e inovando, nas Estaduais, superando-se a doutrina fixada em Wolf v. Colorado, 338 U.S. 25 (1949). O objetivo era desestimular “ações ilegais da polícia, proteger a privacidade das
vítimas e ensejar que os órgãos federais e estaduais operassem com base nos mesmos padrões jurídicos”. Contudo, à decisão não foi atribuído efeito retroativo, para evitar,
segundo o Juiz Clark, a quebra de confiança depositada em Wolf v. Colorado e impor “desmedida carga de trabalho para a administração da Justiça”.18 Assim, o pedido de se considerar ilegal, no caso Likletter v. Walker, a obtenção
da prova por arrombamento, agora com base no novo precedente fixado em Mapp v. Ohio, foi indeferido para evitar sério problema de administração de justiça (e a pers-pectiva de diversos pedidos no mesmo sentido de revisão), surgindo, pois, uma im-portante atenuação ao rígido princípio da nulidade absoluta da lei.19 Parafraseando Sérgio Resende de Barros, parecia estar sendo desatado o “nó
górdio” do sistema de controle, flexibilizando o sistema da nulidade absoluta e se permitindo a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.20
J 6.1.3.3. Espanha Garcia de Enterría, na Espanha, destaca a hipótese de declaração de inconstitu-cionalidade sem pronúncia de nulidade e pro futuro tendo como precedente a Sen-tença n. 45/1989.21
J 6.1.3.4. Portugal Em Portugal, muito embora a declaração de nulidade da lei inconstitucional
seja a regra geral, há expressa autorização constitucional permitindo a modulação dos efeitos da decisão, bem como a desconstituição da coisa julgada em matérias específicas e desde que haja expressa determinação pelo Tribunal Constitucional.
J 6.1.3.5. Alemanha Na Alemanha, o princípio da nulidade da lei inconstitucional está consagrado
como regra geral, nos termos do § 78 da Lei do Bundesverfassungsgericht. Contudo, ensina Gilmar Mendes, várias técnicas surgem no sentido de resolver
alguns problemas trazidos pela rigidez do princípio da nulidade (que é reconhecido como constitucional, como visto), destacando-se o “apelo ao legislador” ou “situa-ção ainda constitucional” (Appellentscheidung)22
e a declaração de inconstitucio-nalidade sem pronúncia de nulidade (Unvereinbarkeitserklärung — omissão par-cial; exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia;23 caos jurídico, lacunas ameaçadoras etc.).24
ameaça de
J 6.1.4. Flexibilização da teoria da nulidade no direito brasileiro A regra geral da nulidade absoluta da lei inconstitucional vem sendo, casuistica-mente, afastada pela jurisprudência brasileira e repensada pela doutrina. Ao lado do princípio da nulidade, que adquire, certamente, o status de valor
constitucionalizado, tendo em vista o princípio da supremacia da Constituição, outros valores, de igual hierarquia, destacam-se, por exemplo, o princípio da segu-rança jurídica e o da boa-fé. Nesses termos, valendo-se da evolução da jurisprudência norte-americana, Lú-cio Bittencourt afirma que a “... doutrina da ineficácia ab initio da lei inconstitucio
nal não pode ser entendida em termos absolutos, pois que os efeitos de fato que a norma produziu não podem ser suprimidos, sumariamente, por simples obra de um decreto judiciário”.25
J 6.1.4.1. A mitigação do princípio da nulidade no controle concentrado — art. 27 da Lei n. 9.868/99 e art. 11 da Lei n. 9.882/99 Toda evolução e movimento verificados no direito estrangeiro também foram
considerados no Brasil, que “legalizou” a tendência jurisprudencial que já vinha sen-do percebida,26
muito embora lentamente, a flexibilizar a rigidez do princípio geral
— e que ainda é regra, diga-se de passagem — da nulidade da lei declarada incons-titucional no controle concentrado. Nesse sentido, com bastante propriedade, estabelece o art. 27 da Lei n. 9.868/99: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de 2/3 de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro
momento que venha a ser fixado” (no mesmo sentido, cf. art. 11 da Lei n. 9.882/99 — ADPF). Trata-se da denominada, pela doutrina, técnica de modulação dos efeitos da
decisão e que, nesse contexto, permite uma melhor adequação da declaração de in-constitucionalidade, assegurando, por consequência e conforme visto, outros valores também constitucionalizados, como os da segurança jurídica, do interesse social, da boa-fé, da proteção da confiança legítima, enquanto expressões do Estado De-mocrático de Direito (impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico) (Cel-so de Mello, ARE 709.212). Nesse sentido foram as razões apontadas na exposição de motivos do projeto de
lei que deu origem à referida Lei n. 9.868/99: “Entendeu, portanto, a Comissão que, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucio-nalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, es-pecialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (v.g.: lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resul
tante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional”.27
J 6.1.4.2. A mitigação do princípio da nulidade no controle difuso A regra geral do art. 27 da Lei n. 9.868/99, em casos particulares, também tem
sido aplicada, por analogia, ao controle difuso. Em importante precedente, destaca-se ação civil pública ajuizada pelo MP de
São Paulo objetivando reduzir o número de vereadores do Município de Mira Estre-la, de 11 para 9, adequando-se ao mínimo constitucional previsto na redação origi-nal28
do art. 29, IV, da CF/88. Pouco razoável seria um Município com 2.651 habitan-tes ter 11 vereadores, 2 além do mínimo constitucional. O MP de São Paulo pedia a devolução dos subsídios indevidamente pagos e a
declaração incidental da inconstitucionalidade da lei (controle difuso), com efei-tos retroativos. Porém, conforme ponderou o Min. Maurício Corrêa na parte final de seu voto,
“... a declaração de nulidade com os ordinários efeitos ex tunc da composição da Câmara representaria um verdadeiro caos quanto à validade, não apenas, em par-te, das eleições já realizadas, mas dos atos legislativos praticados por esse órgão sob o manto presuntivo da legitimidade. Nessa situação específica, tenho presente excep-cionalidade tal a justificar que a presente decisão prevaleça tão somente para as legislaturas futuras, assegurando-se a prevalência, no caso, do sistema até então vigente em nome da segurança jurídica...”.29 Partindo desse precedente, interessante a análise de tantos outros julgados no
sentido de se modular os efeitos da decisão também no controle difuso, destacando--se os julgamentos do RE-AgR 434.222/AM e do MS 22.357/DF.
O STF, portanto, à luz do princípio da segurança jurídica, do princípio da
confiança, da ética jurídica, da boa-fé, todos constitucionalizados, em verdadeira ponderação de valores, vem, casuisticamente, mitigando os efeitos da decisão que
reconhece a inconstitucionalidade das leis também no controle difuso, preservando--se situações pretéritas consolidadas com base na lei objeto do controle. Sem dúvida, de maneira coerente, imprescindível essa tendência de mitigação
do princípio da nulidade, tanto em sede de controle concentrado como em sede de controle difuso.
J 6.1.5. Constitucionalidade e inconstitucionalidade superveniente?
Em regra, não se pode admitir nem o fenômeno da constitucionalidade superve-niente, nem o da inconstitucionalidade superveniente.
A) CONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE Constitucionalidade superveniente significa o fenômeno pelo qual uma lei ou
ato normativo que tenha “nascido” com algum vício de inconstitucionalidade, seja formal ou material, e se constitucionaliza. Esse fenômeno é inadmitido na medida em que o vício congênito não se convalida. Ou seja, se a lei é inconstitucional, trata--se de ato nulo (null and void), írrito, natimorto, ineficaz e, assim, por regra, não pode ser “corrigido”, pois o vício de inconstitucionalidade não se convalida, é um vício insanável, “incurável”. Como exceção a essa regra, lembramos o julgamento da ADI 2.240 e da ADO
3.682, pelas quais se possibilitaria, artificialmente, a “correção” do processo de cria-ção do município Luís Eduardo Magalhães, conforme estudamos no item 6.7.1.9. Estaríamos diante do fenômeno da constitucionalidade superveniente por decisão judicial, o que não se verificou, pois o prazo fixado na ADO 3.682, para se corrigir o vício congênito da lei estadual que criou o novo município, transcorreu in albis. Como se sabe (e, como se disse, o tema poderá ser compreendido no item 6.7.1.9), a
convalidação dos extraordinários vícios de inconstitucionalidade se deu pela EC n. 57/2008, que, então, poderia ser um “triste”, porque flagrantemente “inconstitucional”, exemplo de constitucionalidade superveniente por emenda constitucional e, assim, deci-são política do parlamento, sempre passível, nesse caso específico, de controle judicial.
B) INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE Inconstitucionalidade superveniente, por sua vez, seria o fenômeno pelo qual
uma lei ou ato normativo que “nasceu” “perfeita”, sem nenhum tipo de vício de in-constitucionalidade, vem a se tornar inconstitucional. Em regra, esse fenômeno não é observado. A seguir, dois exemplos clássicos, na
visão da jurisprudência do STF, que afastam essa possibilidade em razão da caracteri-zação de outros institutos específicos e próprios:
J lei editada antes do advento da nova Constituição (fenômeno da recep-ção): se a lei foi editada antes do advento de uma nova Constituição, duas situa-ções surgem: ou a lei é compatível e será recepcionada, ou a lei é incompatível e, então, nesse caso, será revogada por não recepção (cf. item 4.8.1).
Não se pode falar em inconstitucionalidade superveniente nesse caso, pois não
haverá preenchimento da regra da contemporaneidade. Ou seja, para se falar em controle de constitucionalidade, a lei tem que ter sido editada na vigência do texto de 1988 e ser confrontada (parâmetro de controle) perante a CF/88 ou toda normativida-de que tenha status de Constituição, dentro de uma perspectiva de “bloco de consti-tucionalidade” (cf. item 6.7.1.3).
J lei editada já na vigência da nova Constituição e superveniência de emen-da constitucional futura que altere o fundamento de constitucionalidade da lei: o STF entende que, se a lei foi editada já na vigência da nova Constituição sem nenhum tipo de vício, eventual emenda constitucional que mude o parâme-tro de controle pode deixar de assegurar validade à referida norma, e, assim, a nova emenda constitucional revogaria a lei em sentido contrário. Não se trata, portanto, do fenômeno de inconstitucionalidade superveniente.
A regra da impossibilidade de inconstitucionalidade superveniente, contudo, apre-senta duas exceções: a) mutação constitucional; b) mudança no substrato fático da norma. No primeiro caso (mutação constitucional), a redação do dispositivo da Cons-tituição não é alterada, mas o seu sentido interpretativo muda, surgindo, então, uma nova norma jurídica. As mutações constitucionais, portanto, exteriorizam o caráter dinâmico e de prospecção das normas jurídicas, por meio de processos informais. Informais no sentido de não serem previstos dentre aquelas mudanças formalmente estabelecidas no texto constitucional, como, por exemplo, as alterações por emendas constitucionais (cf. item 3.1). Vamos imaginar uma lei que proibia a união estável homoafetiva e que, durante
muito tempo, encontrou fundamento na CF/88, especialmente na hoje ultrapassada (literal) leitura do art. 226, § 3.o, que dispõe, para efeito da proteção do Estado, ser reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, de-vendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Assim, no exemplo, em um primeiro momento, a referida lei, que só admitia a união estável entre o homem e a mulher, era considerada constitucional.
Com a evolução da sociedade e do entendimento da Corte, passou-se a admitir a
união estável entre pessoas do mesmo sexo, especialmente ao se fazer uma releitura do art. 226, § 3.o, à luz da dignidade da pessoa humana (art. 1.o, III) e do art. 3.o, IV, que prescreve, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A lei, então, que nasceu constitucional, tornar-se-ia inconstitucional em razão da
mudança no sentido interpretativo do parâmetro de constitucionalidade. No segundo caso (mudança no substrato fático da norma), não se tem uma
alteração no parâmetro da Constituição, mas nos novos aspectos de fato que surgem e que não eram claros no momento da primeira interpretação. Como exemplo, lembramos o precedente do amianto (cf. item 7.11.1). Em um
primeiro momento, o STF pronunciou-se no sentido de se declarar a constitucionali-dade da lei federal que admitia o uso controlado de uma das modalidades do amian-to (asbesto branco). Em momento seguinte, em razão da mudança no substrato fático da norma, referida disposição se tornou inconstitucional, passando a norma por um processo de inconstitucionalização. Percebam, seja na primeira interpretação, seja 22 anos depois quando houve a
mudança de entendimento, a Constituição sempre proibiu substâncias que fizessem mal à saúde ou ao meio ambiente. O que se observou foi um novo diagnóstico do po-tencial de violação à saúde, inclusive em razão dos avanços tecnológicos e de pesquisa. Por esse motivo é que estamos fazendo uma distinção com o fenômeno da mutação constitucional, quando a alteração é do sentido da própria Constituição. Conforme anotou o Min. Dias Toffoli em seu voto proferido no julgamento da
ADI 3.937, “as percepções dos níveis de consenso e dissenso em torno da necessida-de ou não do banimento do amianto não são mais os mesmos observados quando da edição da referida norma geral (Lei n. 9.055/95, acrescente-se). Se, antes, tinha-se notícia dos possíveis riscos à saúde e ao meio ambiente ocasionados pela utilização da crisotila, falando-se naquela época na possibilidade do uso controlado dessa substância, hoje (22 anos depois, acrescente-se), o que se observa é um consenso em torno da natureza altamente cancerígena do mineral e da inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura, sendo esse o entendimento oficial dos órgãos nacionais e internacionais que detêm autoridade no tema da saúde em geral e da saú-de do trabalhador” (Pleno, j. 24.08.2017, fls. 15 do voto do Min. Dias Toffoli, acór-dão pendente de publicação). Além de toda a argumentação destacando os documentos internacionais de pro-teção a direitos humanos, o Min. Dias Toffoli ainda observa: “quando da edição da Lei federal, o país não dispunha de produto qualificado para substituir o amianto crisotila. No entanto, hoje já existem materiais alternativos. Além de ser importado desde 2003, o PVA, por exemplo, passou a ser produzido no Brasil a partir de maté-ria-prima nacional, o fio de polipropileno, possibilitando a substituição da crisotila. Ressalte-se que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e o Ministé-rio da Saúde já recomendaram a substituição do amianto pelas fibras de poliálcool vinílico (PVA) ou de polipropileno (PP), conforme Nota Técnica elaborada por Gru-po de Trabalho dessa autarquia federal (fl. 1068)...” (fls. 24 do voto). Finalmente, conclui: “esse conjunto de fatores — quais sejam, (i) o consenso dos
órgãos oficiais de saúde geral e de saúde do trabalhador em torno da natureza alta-mente cancerígena do amianto crisotila; (ii) a existência de materiais alternativos à fibra de amianto e (iii) a ausência de revisão da legislação federal, que já tem mais de 22 (vinte e dois anos) anos — revela a inconstitucionalidade superveniente (sob a óptica material) da Lei Federal n. 9.055/95, por ofensa, sobretudo, ao direito à saúde (arts. 6.o e 196, CF/88); ao dever estatal de redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7.o, XXII, CF/88); e à prote-ção do meio ambiente (art. 225, CF/88)” (fls. 25).
J 6.2. BREVE ANÁLISE EVOLUTIVA DO SISTEMA BRASILEIRO DE CON-TROLE DE CONSTITUCIONALIDADE30
J 6.2.1. Constituição de 1824 No tocante ao sistema brasileiro de controle de constituciona-lidade,31
a Constituição Imperial de 1824 não estabeleceu nenhum
sistema de controle, consagrando o dogma da soberania do Parla-mento, já que, sob a influência do direito francês (a lei como “expres-são da vontade geral”) e do inglês (supremacia do Parlamento), somente o Órgão Legislativo poderia saber o verdadeiro sentido da norma. No entanto, nas precisas palavras de Clèmerson Merlin Clève, “não foi apenas o
dogma da soberania do Parlamento que impediu a emergência da fiscalização juris-dicional da constitucionalidade no Império. O Imperador, enquanto detentor do Po-der Moderador, exercia uma função de coordenação; por isso, cabia a ele (art. 98) manter a ‘independência, o equilíbrio e a harmonia entre os demais poderes’. Ora, o papel constitucional atribuído ao Poder Moderador, ‘chave de toda a organização política’ nos termos da Constituição, praticamente inviabilizou o exercício da função de fiscalização constitucional pelo Judiciário. Sim, porque, nos termos da Constitui-ção de 1824, ao Imperador cabia solucionar os conflitos envolvendo os Poderes, e não ao Judiciário”. Portanto, completa o ilustre jurista, “o dogma da ‘soberania do Parla-mento’, a previsão de um Poder Moderador e mais a influência do direito público europeu, notadamente inglês e francês, sobre os homens públicos brasileiros, inclu-sive os operadores jurídicos, explicam a inexistência de um modelo de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis no Brasil ao tempo do Império”.32
J 6.2.2. Constituição de 1891 A partir da Constituição Republicana de 1891, sob a influência do direito norte--americano, consagra-se, no direito brasileiro, mantida até a CF/88, a técnica de con-trole de constitucionalidade de lei ou ato com indiscutível caráter normativo (desde que infraconstitucionais), por qualquer juiz ou tribunal, observadas as regras de com-petência e organização judiciária. Trata-se do denominado controle difuso de cons-titucionalidade, repressivo, posterior, ou aberto, pela via de exceção ou defesa, pelo qual a declaração de inconstitucionalidade se implementa de modo incidental (inci-denter tantum), prejudicialmente ao mérito.33
J 6.2.3. Constituição de 1934 A Constituição de 1934, mantendo o sistema de controle difuso, estabeleceu,
além da ação direta de inconstitucionalidade interventiva, a denominada cláusula de reserva de plenário (a declaração de inconstitucionalidade só poderia ser pela maioria absoluta dos membros do tribunal) e a atribuição ao Senado Federal de competência para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou ato declarado inconstitucional por decisão definitiva. Asseverou Gilmar Ferreira Mendes, ao comentar as novidades trazidas pela Cons-tituição de 1934 em relação ao sistema de controle de constitucionalidade, que “talvez a mais fecunda e inovadora alteração (...) se refira à ‘declaração de inconstitucionalida-de para evitar a intervenção federal’, tal como a denominou Bandeira de Mello, isto é, a representação interventiva, confiada ao Procurador-Geral da República, nas hipóte-ses de ofensa aos princípios consagrados no art. 7.o, I, a a h, da Constituição. Cuidava-se de fórmula peculiar de composição judicial dos conflitos federativos, que condicionava a eficácia da lei interventiva, de iniciativa do Senado (art. 41, § 3.o), à declaração de sua inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal (art. 12, § 2.o)”.34
J 6.2.4. Constituição de 1937 A Constituição de 1937, denominada Polaca, já que elaborada sob a inspiração
da Carta ditatorial polonesa de 1935, não obstante tenha mantido o sistema difuso de constitucionalidade, estabeleceu a possibilidade de o Presidente da República influen-ciar as decisões do Poder Judiciário que declarassem inconstitucional determinada lei, já que, de modo discricionário, poderia submetê-la ao Parlamento para o seu reexame, podendo o Legislativo, pela decisão de 2/3 de ambas as Casas, tornar sem efeito a de-claração de inconstitucionalidade, desde que confirmasse a validade da lei.35 regras, inegavelmente, implicavam o desproporcional fortalecimento do Executivo.
Referidas
J 6.2.5. Constituição de 1946 A Constituição de 1946, fruto do movimento de redemocratização e reconstitu-cionalização instaurado no País, flexibilizou a hipertrofia do Executivo, restaurando a tradição do sistema de controle de constitucionalidade. Através da EC n. 16, de 26.11.1965, criou-se no Brasil uma nova modalidade de ação direta de inconstitu-cionalidade, de competência originária do STF, para processar e julgar originaria-mente a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, federal ou estadual, a ser proposta, exclusivamente, pelo Procurador-Geral da República. Esta-beleceu-se, ainda, a possibilidade de controle concentrado em âmbito estadual.
J 6.2.6. Constituição de 1967 e EC n. 1/69 Esta última regra foi retirada pela Constituição de 1967, embora a EC n. 1/69
tenha previsto o controle de constitucionalidade de lei municipal, em face da Consti-tuição Estadual, para fins de intervenção no Município.
J 6.2.7. Constituição de 1988 A Constituição de 1988, elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte con-vocada pela EC n. 26, de 27.11.198536 (DOU de 28.11.1985, p. 17422, col. 1), trouxe
quatro principais novidades no sistema de controle de constitucionalidade. Em relação ao controle concentrado em âmbito federal, ampliou a legitimação
para a propositura da representação de inconstitucionalidade, acabando com o monopólio do Procurador-Geral da República. Em consonância com o art. 103 da CF/88, o art. 2.o da Lei n. 9.868, de 10.11.1999, legalizando o entendimento jurispru-dencial da Suprema Corte, dispõe que a ação direta de inconstitucionalidade poderá ser proposta pelos seguintes legitimados: Presidente da República; Mesa do Senado Federal; Mesa da Câmara dos Deputados; Mesa de Assembleia Legislativa ou Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal; Governador de Estado ou Governador do Distrito Federal; Procurador-Geral da República; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacio-nal; confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Estabeleceu-se, também, a possibilidade de controle de constitucionalidade
das omissões legislativas, seja de forma concentrada (ações diretas de inconstitu-cionalidade por omissão — ADO, nos termos do art. 103, § 2.o), seja de modo inci-dental, pelo controle difuso (mandado de injunção — MI, na dicção do art. 5.o, LXXI — sobre a evolução da utilização do mandado de injunção, cf. item 14.11.5). Nos termos do art. 125, § 2.o, os Estados poderão instituir a representação de incons-titucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constitui-ção Estadual, vedando, contudo, a atribuição da legitimação para agir a um único órgão. Por fim, pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro, facultou-se a cria-ção da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), no pará-grafo único do art. 102. Posteriormente, a EC n. 3/93 estabeleceu a ação declaratória de constitucio-e renumerou o parágrafo único do art. 102 da CF/88, transforman-nalidade (ADC)37
do-o em § 1.o, mantendo a redação original da previsão da ADPF, nos seguintes ter-mos: “a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”. Enfim, a EC n. 45/2004 (Reforma do Judiciário) ampliou a legitimação ativa
para o ajuizamento da ADC (ação declaratória de constitucionalidade), igualando aos legitimados da ADI (ação direta de inconstitucionalidade), alinhados no art. 103, e estendeu o efeito vinculante, que era previsto de maneira expressa somente para a ADC, agora, também (apesar do que já dizia o art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/99 e da jurisprudência do STF), para a ADI. Tudo caminha para a expressa consagração da ideia de efeito dúplice ou ambivalente entre as duas ações, faltando somente a igualação dos seus objetos. Por todo o exposto, valendo-nos das palavras de José Afonso da Silva, “o Brasil
seguiu o sistema norte-americano, evoluindo para um sistema misto e peculiar que combina o critério difuso por via de defesa com o critério concentrado por via de ação direta de inconstitucionalidade, incorporando também, agora timidamente, a ação de inconstitucionalidade por omissão (arts. 102, I, a e III, e 103). A outra novi-dade está em ter reduzido a competência do Supremo Tribunal Federal à matéria constitucional. Isso não o converte em Corte Constitucional. Primeiro porque não é o único órgão jurisdicional competente para o exercício da jurisdição constitucional, já que o sistema perdura fundado no critério difuso, que autoriza qualquer tribunal e juiz a conhecer da prejudicial de inconstitucionalidade, por via de exceção. Segundo, porque a forma de recrutamento de seus membros denuncia que continuará a ser um
Tribunal que examinará a questão constitucional com critério puramente técnico--jurídico, mormente porque, como Tribunal, que ainda será, do recurso extraordiná-rio, o modo de levar a seu conhecimento e julgamento as questões constitucionais nos casos concretos, sua preocupação, como é regra no sistema difuso, será dar primazia à solução do caso e, se possível, sem declarar inconstitucionalidades”.38
J 6.3. ESPÉCIES DE INCONSTITUCIONALIDADE E O “ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL” J 6.3.1.
Inconstitucionalidade por ação e por omissão (quadro es-quemático)
O que se busca com esse tema é saber quando uma norma infracons-titucional padecerá do vício de inconstitucionalidade, que poderá verificar-se em razão de ato comissivo ou por omissão do Poder Público. Fala-se, então, em inconstitucionalidade por ação (positiva ou por atu-ação), a ensejar a incompatibilidade vertical dos atos inferiores (leis ou atos do Poder Público) com a Constituição,39
por omissão, decorrente da inércia legislativa na regulamentação de normas consti-tucionais de eficácia limitada. Para Canotilho, enquanto a inconstitucionalidade por ação pressupõe a existên-cia de normas inconstitucionais, a inconstitucionalidade por omissão pressupõe a “violação da lei constitucional pelo silêncio legislativo (violação por omissão)”.40
Particularizando, a inconstitucionalidade por ação pode-se dar: a) do ponto de
vista formal; b) do ponto de vista material; c) e estamos pensando em uma terceira forma em razão dos escândalos dos denominados “mensalão” e “mensalinho” para votar em um sentido ou em outro, “batizada” de “vício de decoro parlamentar”.41
No tocante ao vício formal e material, a doutrina também tem distinguido as
expressões nomodinâmica e nomoestática, respectivamente, para a inconstitucio-nalidade.42
legislativo de formação do ato normativo, isso nos dá a ideia de dinamismo, de mo-vimento. Por sua vez, o vício material, por ser um vício de matéria, de conteúdo, a ideia que passa é de vício de substância, estático.
6.3.2. Vício formal (inconstitucionalidade orgânica, inconstitucionalidade formal propriamente dita e inconstitucionalidade formal por viola-ção a pressupostos objetivos do ato)
Como o próprio nome induz, a inconstitucionalidade formal, também conhecida
como nomodinâmica, verifica-se quando a lei ou ato normativo infraconstitucional contiver algum vício em sua “forma”, ou seja, em seu processo de formação, vale dizer, no processo legislativo de sua elaboração, ou, ainda, em razão de sua elabora-ção por autoridade incompetente. Segundo Canotilho, os vícios formais “... incidem sobre o ato normativo en-quanto tal, independentemente do seu conteúdo e tendo em conta apenas a forma da sua exteriorização; na hipótese inconstitucionalidade formal, viciado é o ato, nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final”.43 Podemos, então, falar em inconstitucionalidade formal orgânica, em incons-titucionalidade formal propriamente dita e em inconstitucionalidade formal por violação a pressupostos objetivos do ato.
J 6.3.2.1. Inconstitucionalidade formal orgânica A inconstitucionalidade formal orgânica decorre da inobservância da compe-tência legislativa para a elaboração do ato. Para se ter um exemplo, o STF entende inconstitucional lei municipal que disci-pline o uso do cinto de segurança, já que se trata de competência da União, nos ter-mos do art. 22, XI, legislar sobre trânsito e transporte. Outro exemplo, dentre tantos já apreciados pelo STF (cf. item 7.10 desta obra),
foi assim ementado: “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei estadual que regula obrigações relativas a serviços de assistência médico-hospitalar regidos por contratos de natureza privada, universalizando a cobertura de doenças (Lei n. 11.446/1997, do Estado de Pernambuco). Vício formal. Competência privativa da União para legislar sobre direito civil, comercial e sobre política de seguros (CF, art. 22, I e VII). Prece-dente: ADI n. 1.595-MC/SP, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 19/12/02, Pleno, maioria” (ADI 1.646, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 02.08.2006, DJ de 07.12.2006). No mesmo sentido: ADI 1.595, Rel. Min. Eros Grau, j. 03.03.2005, DJ de 07.12.2006.
J 6.3.2.2. Inconstitucionalidade formal propriamente dita Por sua vez, a inconstitucionalidade formal propriamente dita decorre da
inobservância do devido processo legislativo. Podemos falar, então, além de vício de competência legislativa (inconstitucionalidade orgânica), em vício no procedi-mento de elaboração da norma, verificado em momentos distintos: na fase de inicia-tiva ou nas fases posteriores.44 J
Vício formal subjetivo: o vício formal subjetivo verifica-se na fase de inicia-tiva. Tomemos um exemplo: algumas leis são de iniciativa exclusiva (reservada)45 do Presidente da República, como as que fixam ou modificam os efetivos das Forças Armadas, conforme o art. 61, § 1.o, I, da CF/88. Iniciativa privativa, ou melhor, ex-clusiva ou reservada, significa, no exemplo, ser o Presidente da República o único responsável por deflagrar, dar início ao processo legislativo da referida matéria. Em hipótese contrária (ex.: um Deputado Federal dando início), estaremos diante de um vício formal subjetivo insanável, e a lei será inconstitucional. J
Vício formal objetivo: por seu turno, o vício formal objetivo será verificado
nas demais fases do processo legislativo, posteriores à fase de iniciativa. Como exem-plo citamos uma lei complementar sendo votada por um quorum de maioria relativa. Existe um vício formal objetivo, na medida em que a lei complementar, por força do art. 69 da CF/88, deveria ter sido aprovada por maioria absoluta.
Outro exemplo seria uma PEC votada com quorum diferente do previsto no art.
60, § 2.o (3/5 em cada Casa e em 2 turnos de votação). Se isso ocorrer, a emenda promulgada padecerá de vício formal objetivo de inconstitucionalidade. Outra hipótese seria a violação ao princípio do bicameralismo federativo. Como
se sabe, os projetos de lei federal devem ser aprovados nas duas Casas do Congresso Nacional — Câmara dos Deputados e Senado Federal. Se, eventualmente, projeto de lei for modificado em sua substância pela Casa
revisora, terá a emenda de voltar para a análise da Casa iniciadora, sob pena de con-figurar o vício formal objetivo. Nesse ponto, a denominada “emenda de redação” pode existir na Casa reviso-ra, mas desde que não signifique substancial modificação do texto aprovado na Casa iniciadora. Se isso ocorrer, terá de voltar para a análise da outra Casa (art. 65, pará-grafo único), sob pena de se configurar o vício formal objetivo.
J 6.3.2.3. Inconstitucionalidade formal por violação a pressupostos objetivos
do ato normativo Segundo Canotilho, “hoje, põe-se seriamente em dúvida se certos elementos
tradicionalmente não reentrantes no processo legislativo não poderão ocasionar ví-cios de inconstitucionalidade. Estamos a referir-nos aos chamados pressupostos, constitucionalmente considerados como elementos determinantes de competência dos órgãos legislativos em relação a certas matérias (pressupostos objectivos)”.46 Exemplificando, o autor lembra o art. 229, 2.o, da Constituição portuguesa, que
determina a audiência obrigatória, pelos órgãos de soberania, dos órgãos do governo regional, quanto a questões relativas às regiões autônomas, sob pena de faltar um pres-suposto para o exercício da competência e, assim, caracterizar-se irregularidade do ato. Nesse caso, a audiência e participação obrigatórias “... são elementos externos ao
procedimento de formação das leis...”, e a sua falta gera a inconstitucionalidade formal, já que os pressupostos do ato legislativo devem ser entendidos como “ele-mentos vinculados do ato legislativo”.47 Transportando a teoria de Canotilho para o direito brasileiro, valemo-nos de
exemplos trazidos por Clèmerson Merlin Clève, quais sejam, a edição de medida provisória sem a observância dos requisitos da relevância e urgência (art. 62, caput) ou a criação de Municípios por lei estadual sem a observância dos requisitos do art. 18, § 4.o. Neste último exemplo, o ilustre professor observa que a “... lei estadual dispondo
sobre a criação de novo Município, ainda que regularmente votada e sancionada, mas sem observar o pressuposto referido, estará maculada por inafastável vício de incons-titucionalidade formal. O mesmo se verifica no caso do art. 18, § 3.o, da Lei Funda-mental da República”.48
Também concordamos com esse pensamento. O tema foi apreciado no julga-mento da ADI 2.240, na qual se discutia a constitucionalidade da lei baiana n. 7.619/2000, que criou o Município de Luís Eduardo Magalhães, sem a total obser-vância dos pressupostos fixados no art. 18, § 4.o. O Plenário do STF declarou a in-constitucionalidade do referido dispositivo, mas não pronunciou a nulidade do ato, mantendo sua vigência por mais 24 meses (efeito prospectivo ou para o futuro), tema que será retomado no item 6.7.1.9 deste trabalho. Cabe lembrar que a EC n. 57/2008 convalidou a criação de vários Municípios, em nosso entender, de modo inconstitu-cional, ilegítimo e até imoral (cf. item 6.7.4.9).
J 6.3.3. Vício material (de conteúdo, substancial ou doutrinário) Por seu turno, o vício material (de conteúdo, substancial ou doutrinário) diz
respeito à “matéria”, ao conteúdo do ato normativo. Assim, aquele ato normativo que afrontar qualquer preceito ou princípio da Lei Maior deverá ser declarado inconstitu-cional, por possuir um vício material. Não nos interessa saber aqui o procedimento de elaboração da espécie normativa, mas, de fato, o seu conteúdo. Por exemplo, uma lei discriminatória que afronta o princípio da igualdade. Nas palavras de Barroso, “a inconstitucionalidade material expressa uma incom-patibilidade de conteúdo, substantiva entre a lei ou ato normativo e a Constituição. Pode traduzir-se no confronto com uma regra constitucional — e.g., a fixação da remune-ração de uma categoria de servidores públicos acima do limite constitucional (art. 37, XI) — ou com um princípio constitucional, como no caso de lei que restrinja ilegiti-mamente a participação de candidatos em concurso público, em razão do sexo ou idade (arts. 5.o, caput, e 3.o, IV), em desarmonia com o mandamento da isonomia. O controle material de constitucionalidade pode ter como parâmetro todas as categorias de nor-mas constitucionais: de organização, definidoras de direitos e programáticas”.49 A inconstitucionalidade material é também conhecida como nomoestática.50 Observamos que uma lei pode padecer somente de vício formal, somente de ví-cio material, ou ser duplamente inconstitucional por apresentar tanto o vício formal como o material.
J 6.3.4. Vício de decoro parlamentar (?) Como se sabe e foi publicado em jornais, revistas etc., muito se falou em um
esquema de compra de votos, denominado “mensalão”, para votar de acordo com o governo ou em certo sentido. As CPIs vêm investigando e a Justiça apurando, e, uma vez provados os fatos, os
culpados deverão sofrer as sanções de ordem criminal, administrativa, civil etc. O grande questionamento que se faz, contudo, é se, uma vez comprovada a exis-tência de compra de votos, haveria mácula no processo legislativo de formação das emendas constitucionais a ensejar o reconhecimento da sua inconstitucionalidade.
Entendemos que sim, e, no caso, trata-se de vício de decoro parlamentar, já
que, nos termos do art. 55, § 1.o, “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”. Dito isso, cabe lembrar que, no julgamento da AP 470 (conhecida como
“mensalão”), ficou demonstrado o esquema de corrupção para compra de apoio político.51 Como noticiado, “‘houve, efetivamente, a distribuição de milhões de reais a par-lamentares que compuseram a base aliada do governo, distribuição essa executada mais direta e pessoalmente por Delúbio Soares, Marcos Valério e Simone Vasconce-los, como nós vimos nas últimas sessões de julgamento’, disse o ministro-relator. Ele afirmou que o responsável pela articulação da base aliada era José Dirceu, que se reunia frequentemente com líderes parlamentares que receberam dinheiro em espé-cie do Partido dos Trabalhadores para a aprovação de determinadas emendas consti-tucionais. O dinheiro, afirma o ministro, foi distribuído em espécie na agência do Banco Rural, em Brasília, ‘onde Simone Vasconcelos dispunha de uma sala reserva-da para a entrega do numerário aos parlamentares e aos seus intermediários’” (Notí-cias STF de 03.10.2012). Ainda, de acordo com as Notícias STF de 04.10.2012, para a Ministra Rosa
Weber, “‘houve, sem dúvida, um conluio’ para a compra de apoio de deputados federais — não todos — para as votações a favor do governo na Câmara dos Depu-tados. O dinheiro, prossegue a ministra, veio de recursos, pelo menos em parte, pú-blicos. Ela ressaltou que os parlamentares receberam dinheiro ilicitamente, ‘caso contrário o pagamento não teria ocorrido pela forma como foi feito, sempre às escon-didas, mediante a utilização de terceiros e o recebimento de vultosos valores em es-pécie, inclusive malas em quartos de hotel’”. E continua: “‘aos meus olhos, ficou evidente que o Partido dos Trabalhadores
costumava alcançar dinheiro a outros partidos, entregando-o a parlamentares ou membros da organização partidária’, considerou a Ministra. Tal prática, conforme ela, ocorria para a obtenção de apoio político no Parlamento. ‘Disso, resulta a ve-rossimilhança na descrição dos fatos pela denúncia. Foi criado um esquema para pagar deputados federais em troca de seus votos na Câmara Federal e os valores eram expressivos. Esses recursos tinham origem em peculato, em gestão fraudulen-ta do Banco Rural, em empréstimos simulados, foi o que se concluiu por este Plená-rio, ainda que por maioria’, completou a Min. Rosa Weber” (Notícias STF de 04.10.2012 — original sem grifos — cf. Infs. 682 e 683/STF).
Pois bem, diante do julgamento da citada AP 470, a Associação dos Delega-dos de Polícia do Brasil — ADEPOL (ADI 4.887), a Confederação dos Servido-res Públicos do Brasil — CSPB (ADI 4.888) e o Partido Socialismo e Liberdade — PSOL (ADI 4.889) ajuizaram ADIs no STF objetivando a declaração de in-constitucionalidade da Reforma da Previdência (ECs ns. 41/2003 e 47/2005), alegando aprovação mediante compra de votos de parlamentares, liderados por réus condenados no “mensalão”, qual seja, o por nós denominado vício de decoro parlamentar. A “tese” que lançamos no ano de 2005, e já colocada neste nosso livro a partir
de sua 9.a edição, foi admitida pela PGR em seu parecer na ADI 4.887, tendo sido denominada “vício na formação da vontade no procedimento legislativo”, a ense-jar a violação aos princípios democráticos e do devido processo legislativo, implican-do, necessariamente, a inconstitucionalidade do ato normativo (fls. 18 do parecer/ PGR n. 10.323-RG, item 27). Contudo, o posicionamento do MPF é no sentido da improcedência da ADI.
Vejamos: “na ação penal 470, foram condenados 7 parlamentares em razão da sua participação no esquema de compra e venda de votos e apoio político que ficou conhecido como ‘mensalão’. Não se pode presumir, sem que tenha havido a respec-tiva condenação judicial, que outros parlamentares foram beneficiados pelo esque-ma e, em troca, venderam seus votos para a aprovação das ECs 41/2003 e 47/2005. Assim, mesmo com a desconsideração dos votos dos 7 deputados condenados, os dois turnos de votação das emendas constitucionais na Câmara dos Deputados su-peram o quórum qualificado exigido pela Constituição para a sua aprovação” (fls. 19 do parecer/MPF). Vamos aguardar como o STF enfrentará essa importante questão. Em nosso
entender, sem dúvida, o comprovado esquema de compra e venda de votos para se conseguir apoio político enseja o por nós denominado vício de decoro parlamentar a caracterizar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, pois que macula-dos a essência do voto e o conceito de representatividade popular. Nesse sentido, inclusive, concordou a PGR conforme visto acima. Teremos que aguardar se o STF vai considerar isoladamente os 7 votos dos parlamentares condenados (linha do pa-recer da PGR) ou a premissa exposta pela Ministra Rosa Weber de que o Partido dos Trabalhadores alimentava e incentivava o esquema a contaminar, como um todo, o procedimento ou, ao menos, a contaminar os votos dos parlamentares eleitos pela legenda e sua base aliada. Esse sentido de uma contaminação mais ampla do procedimento parece poder
ser extraído do julgamento da AP 470 que, ao identificar os focos do esquema, reco-nheceu a capacidade de manipulação, sugerindo-se uma “contaminação” mais avassaladora. Vejamos a ementa: “(...). 5. Parlamentares beneficiários das transferências ilícitas de recursos detinham po-der de influenciar os votos de outros parlamentares de seus respectivos partidos, em especial por ocuparem as estratégicas funções de Presidentes de partidos políticos, de líderes parlamentares, líderes de bancadas e blocos partidários. Comprovada a
participação, no recebimento da propina, de intermediários da estrita confiança dos parla-mentares, beneficiários finais do esquema. Depoimentos e recibos informais apreendidos no curso das investigações compõem as provas da prática criminosa” (AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 17.12.2012, Plenário, DJE de 22.04.2013, fls. 51.626-51.629).
Sem dúvida, um grande tema, pendente de julgamento pelo STF!
6.3.5. “Estado de coisas inconstitucional” A terminologia “estado de coisas inconstitucional” foi utilizada pelo Min.
Marco Aurélio, no julgamento da cautelar na ADPF 347 (j. 09.09.2015), a partir de decisão proferida pela Corte Constitucional da Colômbia (mérito pendente). Segundo esclareceu, “presente quadro de violação massiva e persistente de
direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públi-cas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, ad-ministrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como ‘estado de coisas inconstitucional’”. Assim, o STF determinou: a) “ante a situação precária das penitenciárias, o in-teresse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacio-nal”; b) a obrigação de todos os “juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão”.
J 6.4. MOMENTOS DE CONTROLE
A classificação que passamos a analisar diz respeito ao momento em que será
realizado o controle, qual seja, antes de o projeto de lei virar lei (controle prévio ou preventivo), impedindo a inserção no sistema normativo de normas que padeçam de vícios, ou já sobre a lei, geradora de efeitos potenciais ou efetivos (controle posterior ou repressivo).
J 6.4.1. Controle prévio ou preventivo Como vimos acima, o controle prévio é o realizado durante o processo legisla-tivo de formação do ato normativo. Logo no momento da apresentação de um pro-jeto de lei, o iniciador, a “pessoa”, o órgão que deflagrar o processo legislativo, em tese, já deve verificar a regularidade material do aludido projeto de lei. O controle prévio também é realizado pelo Legislativo, pelo Executivo e pelo
Judiciário.
J 6.4.1.1. Controle prévio ou preventivo realizado pelo Legislativo O Legislativo verificará, através de suas comissões de constituição e jus-tiça, se o projeto de lei, que poderá virar lei, contém algum vício a ensejar a inconstitucionalidade. De acordo com o art. 32, IV, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados,
o controle será realizado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (vide Res. da CD n. 20, de 2004 — DCD, de 18.03.2004, Suplemento, p. 3), enquanto no Senado Federal o controle será exercido pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania — CCJ, de acordo com o art. 101 de seu Regimento Interno. O plenário das referidas Casas também poderá verificar a inconstitucionalidade do projeto de lei, o mesmo podendo ser feito durante as votações. Michel Temer observa que tal controle nem sempre se verifica em relação a to-dos os projetos de atos normativos, citando a sua inocorrência, por exemplo, sobre projetos de medidas provisórias, resoluções dos Tribunais e decretos.52 Questão interessante pode surgir indagando se o parecer negativo das Comis-sões de Constituição e Justiça, declarando a inconstitucionalidade do projeto de lei, inviabilizaria o seu prosseguimento. O § 2.o do art. 101 do Regimento Interno do Senado Federal53
dispõe que, em
se tratando de inconstitucionalidade parcial, a Comissão poderá oferecer emenda corrigindo o vício. No entanto, a regra geral é a do seu § 1.o, ao estabelecer que, quando a Comissão emitir parecer pela inconstitucionalidade e injuridicidade de qualquer proposição, será esta considerada rejeitada e arquivada definitivamen-te, por despacho do Presidente do Senado, salvo, desde que não seja unânime o
parecer, se houver recurso interposto nos termos do art. 254 do RI, ou seja, inter-posto por no mínimo 1/10 dos membros do Senado, manifestando opinião favorá-vel ao seu processamento. Da mesma forma, o art. 54, I, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados54
estabelece que será “terminativo o parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, quanto à constitucionalidade ou juridicidade da matéria” (inciso com redação adaptada à Resolução n. 20/2004). No entanto, há a previsibilidade de recur-so para o plenário da Casa contra referida deliberação, nos termos dos arts. 132, § 2.o; 137, § 2.o; e 164, § 2.o, do referido Regimento Interno.
J 6.4.1.2. Controle prévio ou preventivo realizado pelo Executivo Como veremos melhor ao estudar o processo legislativo, o Chefe do Executivo,
aprovado o projeto de lei, poderá sancioná-lo (caso concorde) ou vetá-lo. O veto dar-se-á quando o Chefe do Executivo considerar o projeto de lei incons-titucional ou contrário ao interesse público. O primeiro é o veto jurídico, sendo o segundo conhecido como veto político. Assim, caso o Chefe do Executivo entenda ser inconstitucional o projeto de lei
poderá vetá-lo, exercendo, desta feita, o controle de constitucionalidade prévio ou preventivo, antes de o projeto de lei transformar-se em lei. Referido veto, necessariamente, nos termos do art. 66, § 4.o, da CF/88, será apre-ciado em sessão conjunta da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, dentro de 30 dias a contar de seu recebimento, podendo, pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em votação ostensiva, ou seja, por voto “aberto” (lembra-mos que a EC n. 76/2013 aboliu a votação secreta nessa hipótese), ser rejeitado (afastado), produzindo, nesse caso, os mesmos efeitos que a sanção. Derrubado o veto, o projeto deverá ser enviado ao Presidente da República para
promulgação da lei no prazo de 48 horas e, se este não o fizer, caberá ao Presidente do Senado Federal a promulgação, em igual prazo, e, caso este não a promulgue, caberá ao Vice-Presidente do Senado Federal fazê-lo (art. 66, § 7.o, da CF/88). Na hipótese de o veto ser mantido, o projeto será arquivado, aplicando-se a regra
contida no art. 67, que consagra a regra da irrepetibilidade. Imaginando a hipótese de derrubada do veto e a consequente promulgação da
lei, naturalmente, a correspondente lei, ato normativo, poderá ser objeto de controle de constitucionalidade, agora, porém, o chamado controle posterior ou repressivo.
J 6.4.1.3. Controle prévio ou preventivo realizado pelo Judiciário O controle prévio ou preventivo de constitucionalidade a ser realizado pelo
Poder Judiciário sobre PEC ou projeto de lei em trâmite na Casa Legislativa busca garantir ao parlamentar o respeito ao devido processo legislativo, vedando a sua
participação em procedimento desconforme com as regras da Constituição. Trata--se, como visto, de controle exercido, no caso concreto, pela via de exceção ou de-fesa, ou seja, de modo incidental. Assim, deve-se deixar claro que a legitimação para a impetração do MS é exclu-siva do parlamentar, na medida em que o direito público subjetivo de participar de um processo legislativo hígido (devido processo legislativo) pertence somente aos membros do Poder Legislativo. A jurisprudência do STF consolidou-se no sentido de negar a legitimidade ativa ad causam a terceiros, que não ostentem a condi-ção de parlamentar, ainda que invocando a sua potencial condição de destinatários da futura lei ou emenda à Constituição, sob pena de indevida transformação em con-trole preventivo de constitucionalidade em abstrato, inexistente em nosso sistema constitucional (vide RTJ 136/25-26, Rel. Min. Celso de Mello; RTJ 139/783, Rel. Min. Octavio Gallotti, e, ainda, MS 21.642-DF, MS 21.747-DF, MS 23.087-SP, MS 23.328-DF). E a perda superveniente do mandato parlamentar? Parece ter razão o Min. Celso de Mello ao afirmar que a perda superveniente de
titularidade do mandato legislativo desqualifica a legitimação ativa do congressis-ta. Isso porque “... a atualidade do exercício do mandato parlamentar configura, nes-se contexto, situação legitimante e necessária, tanto para a instauração quanto para o prosseguimento da causa perante o STF. Inexistente, originariamente, essa situa-ção, ou, como se registra no caso, configurada a ausência de tal condição, em virtude da perda superveniente do mandato parlamentar no Congresso Nacional, impõe--se a declaração de extinção do processo de mandado de segurança, porque au-sente a legitimidade ativa ad causam do ora impetrante, que não mais ostenta a condição de membro de qualquer das Casas do Congresso Nacional” (MS 27.971, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, j. 1.o.07.2011, DJE de 1.o.08.2011). Outro entendimento acarretaria a conversão do mandado de segurança, que não
pode ser utilizado para a impugnação de normas em tese, em ADI, situação essa não admitida em nosso ordenamento jurídico. E quais os limites do controle judicial? Nos termos da jurisprudência do STF, o controle de constitucionalidade a ser
exercido pelo Judiciário durante o processo legislativo abrange somente a garantia de um procedimento em total conformidade com a Constituição, não lhe cabendo, con-tudo, a extensão do controle sobre aspectos discricionários concernentes às ques-tões políticas e aos atos interna corporis, vedando-se, desta feita, interpretações das normas regimentais (cf.: MS 22.503-3/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Maurício Corrêa, DJ de 06.06.1997, p. 24872, Ement. v. 01872-03, p. 385; j. 08.05.1996 — Tribunal Pleno,55
descrevendo o posicionamento da Suprema Corte).
Os limites desse controle jurisdicional foram bem delimitados pela Corte no
julgamento do MS 32.033 (Rel. p/ o ac. Min. Teori Zavascki, j. 20.06.2013, Plenário, DJE de 18.02.2014), impetrado, preventivamente, por parlamentar, questionando proje-to de lei que criava novas regras em relação à transferência dos recursos do fundo partidário e ao horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão nas hipóte-ses de migração partidária (PL n. 4.470/2012 — aprovado pela Câmara e recebido no Senado Federal como PLC n. 14/2013, tendo sido transformado na Lei n. 12.875/2013). De acordo com o voto do Min. Teori Zavascki, que abriu a divergência, contrário
a uma posição mais elástica sustentada pelo Min. Gilmar Mendes (vencido), a Cons-tituição admite o controle judicial preventivo, por meio de mandado de segurança a ser impetrado exclusivamente por parlamentar, em duas únicas hipóteses:
J PEC manifestamente ofensiva a cláusula pétrea (MS 20.257/DF, Rel. Min.
Moreira Alves — leading case — j. 08.10.1980); J
projeto de lei ou PEC em cuja tramitação se verifique manifesta ofensa a
cláusula constitucional que disciplina o correspondente processo legislativo. Ou seja, em relação a projeto de lei, o STF restringiu o controle preventivo ape-nas para a hipótese de violação ao devido processo legislativo, não se admitindo a discussão sobre a matéria, buscando, assim, resguardar a regularidade jurídico--constitucional do procedimento, sob pena de se violar a separação de poderes. Observem que essa delimitação de atuação do controle judicial se deu em rela-ção ao projeto de lei, e não à PEC (proposta de emenda à Constituição). Isso porque o art. 60, § 4.o, veda a proposta de emenda tendente a abolir cláusula pétrea. Em nenhum momento a Constituição vedou a tramitação de projeto de lei que tenda a abolir cláusula pétrea. Ou seja, procurando ser mais claro: a) em relação a projeto de lei, o controle judicial não analisará a matéria, mas apenas o processo legislativo; b) em relação à PEC, o controle será mais amplo, abrangendo não apenas a regularidade de procedimento, mas, também, a matéria, permitindo o trancamento da tramitação de PEC que tenda a abolir cláusula pétrea.
Com esse entendimento, a Corte evitou a universalização do controle preventi-vo e a necessidade de enfrentamento judicial precoce de questões políticas, que en-contram um ambiente muito mais adequado de discussão, que é a Casa Legislativa.56 Vejam que o questionamento sobre a matéria da lei (se o projeto de lei for transfor-mado) poderá ser realizado em momento oportuno no controle concentrado a ser provocado pelos legitimados do art. 103. Conforme estabeleceu o Min. Fux em seu voto, “essa aparente contradição entre
os valores albergados pelo Estado Democrático de Direito impõe um dever de cau-tela redobrado no exercício da jurisdição constitucional. Com efeito, certo é que os tribunais não podem asfixiar a autonomia pública dos cidadãos, substituindo as escolhas políticas de seus representantes por preferências pessoais de magistrados não eleitos pelo povo, como, aliás, testemunhado pela história constitucional norte--americana durante a cognominada Era da Lochner (1905-1937), período em que a Suprema Corte daquele país freou a implantação do Estado social a partir de uma exegese inflacionada da cláusula aberta do devido processo legal (CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011, p. 630-645)”. E delimitou com precisão: “no caso vertente, não se sabe se o projeto de lei será
arquivado, alterado ou aprovado. A questão deve permanecer em discussão, sob pena de um paternalismo judicial ou, para utilizar uma expressão bastante em voga, uma supremocracia. Na realidade, tutelar o direito dos parlamentares de oposição, diver-samente do que abreviar a discussão, como pretende o Impetrante, é permitir que os debates sejam realizados de forma republicana, transparentes e com os canais de par-ticipação abertos a todos os que queiram deles participar. Esse sim é o modelo de atuação legislativa legítima, tal qual concebido por John Hart Ely” (fls. 19 de seu voto).