Capítulo 2
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO REGIME CONTRATUAL
12. Princípios gerais. O Direito dos contratos repousa em quatro
princípios: 1) o da autonomia da vontade; 2) o do consensualismo; 3) o
da força obrigatória; 4) o da boa-fé.1 [Os três primeiros podem ser
chamados tradicionais. A boa-fé, por sua vez, embora já estivesse
presente no Código Comercial de 1850, assumiu na doutrina contemporânea
sentido e funções inteiramente novos, desempenhando papel de destaque no
Código Civil de 2002. Ao lado dela, pode-se acrescentar dois outros
princípios norteadores do regime contratual na nova codificação, o
princípio do equilíbrio econômico do contrato e o princípio da função
social do contrato. Afirma-se, assim, que atualmente há três princípios
clássicos (autonomia da vontade, consensualismo e força obrigatória, aos
quais se pode reconduzir o princípio da relatividade dos efeitos
contratuais) e três novos princípios contratuais (boa-fé, equilíbrio
econômico e função social).]
13. Princípio da autonomia da vontade. O princípio da autonomia da
vontade particulariza-se no Direito Contratual na liberdade de
contratar. Significa o poder dos indivíduos de suscitar, mediante
declaração de vontade, efeitos reconhecidos e tutelados pela ordem
jurídica. No exercício desse poder, toda pessoa capaz tem aptidão para
provocar o nascimento de um direito, ou para obrigar-se. A produção de
efeitos jurídicos pode ser determinada assim pela vontade unilateral,
como pelo concurso de vontades. Quando a atividade jurídica se exerce
mediante contrato, ganha grande extensão. Outros conceituam a autonomia
da vontade como um aspecto da liberdade de contratar, no qual o poder
atribuído aos particulares é o de se traçar determinada conduta para o
futuro, relativamente às relações disciplinares da lei.
O conceito de liberdade de contratar abrange os poderes de auto-regência
de interesses, de livre discussão das condições contratuais e, por fim,
de escolha do tipo de contrato conveniente à atuação da vontade.
Manifesta-se, por conseguinte, sob tríplice aspecto: a) liberdade de
contratar propriamente dita; b) liberdade de estipular o contrato; c)
liberdade de determinar o conteúdo do contrato.
A liberdade de contratar propriamente dita é o poder conferido às partes
contratantes de suscitar os efeitos que pretendem, sem que a lei
imponha seus preceitos indeclinavelmente. Em matéria contratual, as
disposições legais têm, de regra, caráter supletivo ou subsidiário,
somente se aplicando em caso de silêncio ou carência das vontades
particulares.2 Prevalece, desse modo, a vontade dos contratantes.
Permite-se que regulem seus interesses por forma diversa e até oposta à
prevista na lei. Não estão adstritas, em suma, a aceitar as disposições
peculiares a cada contrato, nem a obedecer às linhas de sua estrutura
legal. São livres, em conclusão, de determinar o conteúdo de contrato,
nos limites legais imperativos.
O princípio da liberdade de contratar torna-se mais inteligível à luz da
distinção entre leis coativas e supletivas. As primeiras ordenam ou
proíbem algum ato, determinando o que se deve e o que não se deve
fazer.3 Quando ordenam, dizem-se imperativas. Quando proíbem,
proibitivas. Destinam-se as leis supletivas a suprir ou completar a
vontade do indivíduo, aplicando-se quando ele não a declara. Ora, o
Direito Contratual constitui-se, predominantemente, de normas
supletivas, deixando, portanto, larga margem à vontade dos que agem em
sua esfera. Nesse território, a liberdade de contratar domina
amplamente.
Não procede a observação de que a autonomia das partes é mais aparente
do que real, feita sob o fundamento de que estas se submetem, quase
sempre, aos preceitos legais, despreocupando-se dos efeitos secundários
do contrato.4 Se é verdade que ocorre freqüentemente a submissão dos
contratantes às normas supletivas do Direito Contratual, nem por isso a
liberdade de contratar é um postulado acadêmico. Em cada contrato usa-se
com maior ou menor extensão, dependendo da conveniência das partes. Se a
dispensam freqüentemente é porque a lei condensa, via de regra, os
preceitos usuais que costumam reger o conteúdo dos contratos mais
comuns. Somente, pois, quando lhes convém regulá-los de modo diverso é
que fazem valer a liberdade que lhes é assegurada.
A circunstância de serem supletivas em grande número as regras do
Direito Contratual não significa que sua aplicação fica ao arbítrio das
partes se não regulam expressamente certos efeitos do contrato. A
omissão determina-lhes a incidência no contrato, aplicando-se,
obrigatoriamente, no suposto de que traduzem a vontade das partes. A
aplicação é inelutável, prevalecendo ainda quando fosse outra. Enfim, a
norma, em princípio facultativa, torna-se obrigatória para os
contratantes,5 uma vez que não tenham previsto, por outro modo, o efeito
disciplinado, em termos gerais e impessoais, pela lei.
O Direito Contratual compõe-se de leis supletivas, ou dispositivas, mas
também de leis coativas. Até mesmo quando o princípio da autonomia da
vontade alcançou a maior amplitude se reconhecia a necessidade de normas
imperativas, tanto de inspiração política como por injunções da técnica
jurídica. Em qualquer regime contratual, são indispensáveis normas
inderrogáveis pela vontade das partes.
14. Limitações à liberdade de contratar. A liberdade de contratar,
propriamente dita, jamais foi ilimitada. Duas limitações de caráter
geral sempre confinaram-na: a ordem pública e os bons costumes.
Entendia-se, como ainda se pensa, que as pessoas podem auto-regular seus
interesses pelo modo que lhes convenha, contando que não transponham
esses limites.
Mas essas limitações gerais à liberdade de contratar, insertas nos
códigos como exceções ao princípio da autonomia da vontade, jamais
puderam ser definidas com rigorosa precisão. A dificuldade, senão a
impossibilidade, de conceituá-las permite sua ampliação ou restrição
conforme o pensamento dominante em cada época e em cada país, formado
por idéias morais, políticas, filosóficas e religiosas. Condicionam-se,
em síntese, à organização política e à infra-estrutura ideológica.
A despeito, porém, das suas flutuações e da assinalada dificuldade de
reduzi-las a termos puramente objetivos, tem-se procurado fixar o
conceito tanto de ordem pública como de bons costumes, para que não
variem ao sabor de convicções pessoais dos aplicadores da lei.
Em larga generalização, pode-se dizer que as limitações à liberdade de
contratar inspiram-se em razão de utilidade social.6 Certos interesses
são considerados infensos às bases da ordem social ou se chocam com os
princípios cuja observância por todos se tem como indispensável à
normalidade dessa ordem. Diz-se, então, que ferem as leis de ordem
pública e os bons costumes.
A lei de ordem pública seria “aquela que entende com os interesses
essenciais do Estado ou da coletividade, ou que fixa, no Direito
Privado, as bases jurídicas fundamentais sobre as quais repousa a ordem
econômica ou moral de determinada sociedade”.7 Essa idéia geral não
traça diretriz suficientemente clara para guiar o juiz obrigado a
invocá-la, porquanto não é fácil determinar taxativamente os interesses
essenciais do Estado e da coletividade, variáveis em função até do
regime político dominante. Por outro lado, os pilares da ordem econômica
e moral de determinada sociedade são em número reduzido. Considerados
apenas os fundamentais, limitar-se-ia, demasiadamente, o conceito de
ordem pública.
Recorre-se ao expediente da enumeração exemplificativa, tentando-se
classi-ficá-los, como segue: 1º) as leis que consagram ou salvaguardam o
princípio da liberdade e da igualdade dos cidadãos, e, particularmente,
as que estabelecem o princípio da liberdade de trabalho, de comércio e
de indústria; 2º) as leis relativas a certos princípios de
responsabilidade civil ou a certas responsabilidades determinadas; 3º)
as leis que asseguram ao operário proteção especial; 4º) as leis sobre o
estado e capacidade das pessoas; 5º) as leis sobre o estado civil; 6º)
certos princípios básicos do direito hereditário como os relativos à
legítima e o que proíbe os pactos sobre sucessão futura; 7º) as leis
relativas à composição do domínio público; 8º) os princípios
fundamentais do direito de propriedade; 9º) as leis monetárias; e 10) a
proibição do anatocismo.8
Via de regra, as leis coativas são de ordem pública, uma vez que também
não podem ser derrogadas pela vontade particular – privatorum pactis
mutari non potest. Incorreria em equívoco, todavia, quem as equiparasse.
Se toda lei de ordem pública é imperativa, ou proibitiva, nem toda lei
coativa é de ordem pública. Para a proteção de certos interesses
privados, contém a lei preceitos coativos, mas as disposições que tendem
a essa finalidade não entendem com os interesses essenciais da
sociedade, não se considerando, portanto, regras de ordem pública.
A noção de bons costumes oferece a mesma dificuldade de conceituação.
Não há expressões gerais para defini-la em termos precisos. Parece ser
projeção de regras morais no terreno jurídico, mas não se confunde com a
Moral.
Na impossibilidade de formular conceito preciso, a doutrina socorre-se,
igualmente, do expediente da enumeração, considerando contrários aos
bons costumes, dentre outros, os seguintes contratos: 1º) os relativos à
exploração de casas de tolerância; 2º) os concernentes às relações
entre concubinários; 3º) os que têm por objeto a corretagem matrimonial;
4º) os que dizem respeito ao jogo; 5º) os que objetivam a venda ou o
comércio de influência; 6º) os que consagram, sob qualquer forma, a
usura no mútuo.9
Os contratos que têm causa contrária a leis de ordem pública e aos bons
costumes são nulos. Declarando-os inválidos, o ordenamento jurídico
estatui, por esse modo, limitações de ordem geral à liberdade de
contratar. Em conseqüência, firma-se o princípio de que toda declaração
de vontade produz o efeito desejado, se lícita for sua causa.
Mas essas limitações à autonomia privada, que sempre existiram, não eram
suficientes para impedir a prática de abusos. Pois consentiram o
exercício da liberdade de contratar com uma desenvoltura que tornara
excessivo o poder da vontade, como, afinal, se veio a reconhecer. [De
acordo com o art. 421 do Código Civil, a liberdade de contratar também
encontra limite na função social do contrato, adiante estudada.]
15. Derrogações e mutilações. Quando se apreciam as conseqüências
práticas do uso da liberdade de contratar num regime de desigualdade
econômica como o que resultou do desenvolvimento do capitalismo, a
impressão mais viva é a da abstenção do Estado no momento da formação
dos contratos. O princípio da igualdade de todos perante a lei conduziu
logicamente à indiferença da ordem jurídica pela situação das partes de
qualquer contrato. No pressuposto dessa igualdade meramente teórica
presumia-se que os interessados em contratar precediam o contrato,
qualquer que fosse, de livre discussão, na qual seus interesses
divergentes encontravam, afinal, denominador comum. Como toda obrigação
importa limitação da liberdade individual, o contratante que a assumisse
estaria praticando ato livre de todo constrangimento, já que tinha a
liberdade de celebrar, ou não, o contrato. Por princípio, a limitação da
liberdade haveria de ser voluntária e os efeitos jurídicos do contrato
realizado, fossem quais fossem, presumiam-se queridos pelas partes. A
omissão da lei na determinação do conteúdo dos contratos justificava-se
diante do princípio que assegurava a liberdade dos contratantes na sua
formação. Partes iguais e livres não precisavam da interferência
legislativa para impedir a estipulação de obrigações onerosas ou
vexatórias. O poder de contraí-las livremente, após a discussão das
condições contratuais, foi tido como um dos aspectos fundamentais da
liberdade de contratar, tanto que os primeiros passos para evitar que um
dos contratantes, por sua posição mais favorável, impusesse ao outro
sua vontade, eliminando as negociações preliminares sobre o conteúdo do
contrato, foram considerados intoleráveis restrições à liberdade.
Mas de tal modo se abusou dessa liberdade, sobretudo em algumas espécies
contratuais, que a reação cobrou forças, inspirando medidas
legislativas tendentes a limitá-las energicamente. O pensamento jurídico
modificou-se radicalmente, convencendo-se os juristas, como se disse
lapidarmente, que entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a
lei que liberta.10
Muitos contratos passaram a se formar pela adesão inevitável de uma das
partes às cláusulas impostas pela outra. Por outro lado o conteúdo de
outros veio a ser regulamentado insubstituivelmente por preceitos legais
imperativos. Tais alterações atingiram a liberdade de formação do
vínculo contratual, influindo no próprio conceito de contrato. Falou-se,
então, na decadência do contrato,11 porque as cláusulas de alguns
deixaram de ser livremente determinadas pelas partes. Afirmou-se que a
noção clássica deixara de corresponder à realidade. Relações jurídicas,
oriundas tradicionalmente de contrato, passaram a ser explicadas com
efeito de causa diversa, admitida, como foi, por certas correntes
doutrinárias, a natureza unilateral do ato de formação.
É, assim, interessante passar em revista alguns desses agravos à sua
incolumidade no empenho e compromisso de averiguar se respondem a
definitiva e irreversível mudança na evolução do Direito Privado e se
representam a propagação no território jurídico de um movimento mais
profundo na estrutura e na funcionalidade do arcabouço cultural da
sociedade.
Em resumo, interessa interpretá-las para verificar se constituem os
sinais da decadência do contrato como o instrumento por excelência da
vida econômica e de sua incapacidade para atender às exigências de uma
sociedade de massa onde – como já se disse expressivamente – muito mais
do que de contrato se deveria falar de ditado.
O método mais aconselhado para proceder à análise investigatória é o da
definição em cada aspecto da liberdade contratual, de suas principais
derrogações, limitações ou mutilações.
O princípio de que toda pessoa pode soberanamente abster-se de contratar
sofre exceções cada vez mais importantes e numerosas.
Tais exceções ocorrem quando o indivíduo:
a) tem de aceitar, sem alternativa, uma proposta ou oferta de contrato;
b) tem de concorrer para a formação de um vínculo contratual.
Nessas duas situações, diz-se que há obrigação de contratar. Têm-na:
a) os que se encarregam da prestação dos serviços públicos, ou dos
serviços de assistência vital, também chamados de primeira necessidade;
b) os que exercem atividade econômica em caráter de monopólio.
A obrigação de contratar pode ser imposta pela lei ou resultar da
vontade particular.
São impostas pela lei:
a) a dos monopólios legais e, segundo alguns, dos monopólios de fato;
b) a que, embora não seja de monopólios, nasce tal como se fosse, por
exemplo, a das companhias de seguros em relação aos seguros
obrigatórios.
Derivam da vontade particular as obrigações:
a) contraídas em contrato preliminar;
b) provenientes do chamado legado de contrato.
A obrigação de contratar estipulada em um negócio jurídico preliminar ou
pré-contrato é, quando possível, cumprida até por efeito de sentença
judicial substitutiva.12
O legado de contrato é uma disposição testamentária pela qual o testador
impõe ao herdeiro prestar alimentos a determinada pessoa.
A multiplicação das obrigações de contratar provocou importantíssima
mudança no cumprimento das obrigações de fazer, a possibilidade de se
obter uma sentença que produza os efeitos do contrato não concluído. O
Código de Processo Civil de 197313 aceitou essa solução, tendo
reproduzido a disposição do Código Civil italiano (art. 2.932),14
[repetida pelo texto de 201515].
A inovação pode estender-se, com proveito, às obrigações legais de
contratar.
A liberdade de determinação do conteúdo do contrato vem sendo
restringida por diferentes processos e através de novas técnicas
negociais.
Antes de indicá-las é interessante apontar alguns modos por que se vem
determinando habitualmente o conteúdo dos contratos. Tais são:
a) a inserção de cláusulas necessárias;
b) a inserção de cláusulas de uso;
c) a redação de condições gerais através de cláusulas uniformes;
d) o formulário.
São cláusulas necessárias as em que a lei exige a inclusão no conteúdo
do contrato e as que estão legalmente subentendidas.
Chamam-se de uso as cláusulas habituais que integram o conteúdo de
certos contratos, exercendo importante função complementar e
interpretativa. Conhe-cem-se pela expressão cláusulas de estilo.
Para uniformidade do tratamento contratual nas relações de massa ou em
série, tornou-se comum o novo processo de formação de tais vínculos
consistente na elaboração das cláusulas por um dos sujeitos para
aceitação global do outro. São as chamadas condições gerais dos
contratos, mais conhecidos entre nós pela expressão contrato de adesão.
O conteúdo dos contratos de formulário enche-se de cláusulas habituais
que, por isso mesmo, permitem ser impressas, sem que revelem o fenômeno
de integração do conteúdo normativo do contrato como sucede com as
condições gerais do contrato.
Importante limitação à liberdade de determinação do conteúdo do contrato
resulta de outro ato de autonomia privada chamada negócio ou contrato
normativo. Trata-se de um acordo de vontades pelo qual dois grupos
traçam regras para o conteúdo de uma série de contratos a se concluírem
pelos indivíduos a eles pertencentes. O contrato normativo típico é o
contrato coletivo de trabalho.
Outras limitações interessantes encontram-se nos contratos associativos
stricto sensu e nos contratos abertos. Realmente, quem ingressa numa
associação não tem liberdade de negociar as condições do vínculo que lhe
interessa constituir; limita-se a aderir às cláusulas formuladas em
artigos do seu estatuto. Livre também não é, para negociar o conteúdo da
relação, quem deva participar de um contrato em cuja celebração não
tomou parte, nele ingressando depois de concluído.
A determinação, pelas partes, do conteúdo do contrato é completamente
eliminada nas relações submetidas a uma regulamentação autoritária.
Inserem-se automaticamente às cláusulas constantes de regulamento legal,
tão numerosas que praticamente se anula a vontade das partes. Nesses
contratos, a área da autonomia privada está comprimida, a muito pouco se
reduzindo.
16. Limitação à liberdade de modificar o esquema legal do contrato. A
liberdade de modificar o esquema legal do contrato, respeitados os seus
elementos naturais, está a sofrer as limitações mais drásticas em
virtude da intensificação da tendência autoritária consistente na
substituição das regras dispositivas pelas de caráter imperativo.
Tão acentuada tem sido essa mudança no tratamento legal dos contratos
que novas figuras têm aparecido na área da autonomia privada, mas tão
esquisitas que se duvida de seu caráter contratual.
O contrato de adesão, já referido, é, talvez, a mais discutida dessas
figuras, mas a doutrina moderna tenta isolar outras que conservam a
aparência contratual, dentre as quais despontam como as mais
interessantes o contrato coativo e o contrato necessário.
O contrato coativo, considerado por alguns uma relação paracontratual, é
aquele em que a lei obriga as partes a estipulá-lo sem alternativa ou a
conservá-lo mesmo contra a vontade de uma das partes. Enquadram-se na
categoria o seguro obrigatório e a locação prorrogada por determinação
legal.
Já o chamado contrato necessário resulta do permanente estado de oferta
contratual de certos sujeitos de direito, como as empresas
concessionárias de serviços públicos. Tais pessoas não podem recusar-se a
contratar, falecendo-lhes, pois, não só a liberdade de escolher a
contraparte, mas também a de afastar as regras constantes do regulamento
a que devem obediência, em certos setores, para a publicização do
contrato em virtude da qual o Direito Público absorve o conteúdo da
relação contratual.16 Nos contratos de interesse social, como o de venda
de gêneros de primeira necessidade, os de exportação e importação, os
creditícios e de um modo geral naqueles em que se faz necessária a
proteção da parte mais fraca, a intervenção do Estado nos respectivos
conteúdos vem ocorrendo incisivamente por meio de uma tutela
administrativa que o preenche mediante regulamento da autoridade
pública.
Quanto à liberdade de contratar fora dos tipos mencionados e
disciplinados na lei (contratos nominados ou típicos), a derrogação
ocorre basicamente nos contratos e pactos de Direito de Família. [Nessa
área nota-se, contudo, uma tendência à revalorização da liberdade de
contratar, com a possibilidade de alterar o regime de bens do
casamento17 e os pactos em matéria de união estável.18] Por via reflexa,
como uma conseqüência natural da tipicidade dos direitos reais,
verifica-se, também, em relação aos contratos constitutivos desses
direitos e aos translativos da propriedade. Limitações existem,
igualmente, no setor do Direito Societário. É regra aceita, finalmente,
que as obrigações nascidas da declaração unilateral de vontade só se
admitem nas figuras expressamente disciplinadas na lei.
A significação da política legislativa de limitação, em todos os seus
aspectos, da liberdade contratual, pode-se definir tentando-se
visualizá-lo na ótica das repercussões do seu exercício na vida
econômica e social.
Nessa perspectiva, observam-se três reflexos hoje cristalinos:
1º) a descentralização da produção jurídica pela liberdade de contratar
entregou aos fortes o poder de dominar os fracos (economicamente,
circunstancialmente) – Max Weber;
2º) a massificação das relações contratuais eliminou a possibilidade de
sua constituição pelo contrato clássico, tornando-o impotente “para
fazer face às exigências de uma sociedade que não se esteia mais no
indivíduo isolado” – Meucci;
3º) a organização da economia em grandes empresas e concentrações
econômicas lhes assegurou um poder tão forte que “o ato do seu exercício
se realiza pelas formas de coerção e autoridade próprias das atividades
públicas” – Lisserre.
Com efeito, o resultado negativo do exercício da liberdade contratual
foi condensado magnificamente numa frase de Lacordaire que se tornou
famosa: “Entre o fraco e o forte é a liberdade que escraviza e a lei que
liberta.” A experiência demonstrou, muitas vezes cruelmente, o acerto
desse pensamento.
Relações uniformes que se travam em massa (basta pensar nos milhões de
contratos de transporte que se concluem diariamente) não poderiam estar
sujeitas aos princípios da liberdade contratual. Seria praticamente
impossível. Eis por que um dado da experiência quotidiana acaba com o
“primado da vontade individual” florescente na sociedade atomística do
século XIX e torna imprestável seu magnífico instrumento – o contrato
tradicional. E de tal modo realmente nossa vida de todos os dias é
repleta de compromissos e obrigações preestabelecidos por outrem sem o
concurso de nossa vontade.
Finalmente, assistimos a fenômeno extremamente curioso da prática, por
particulares, de atividades que já tornaram públicas por seu interesse
social. O poder que têm esses particulares só é privado do ponto de
vista dos sujeitos que o exercem. No fundo, são poderes de Direito
Público.
A derradeira nota parece ser a mais importante inclusive nas implicações
que encerram essa contradição.
17. Processos técnicos para coibir abusos. O complexo de poderes
enfeixados no princípio da liberdade de contratar vem perdendo a
elasticidade original. A evolução do Direito desenrola-se flagrantemente
na direção oposta às teses do individualismo jurídico. Compreende-se. A
regra da autonomia da vontade representa menos um princípio do que uma
política negativa, de abstenção, de não-intervenção.19 Corresponde, no
plano jurídico, à concepção liberal do Estado. O movimento de reação às
conseqüências dessa filosofia irradiou-se com tamanha veemência, que
ninguém mais defende a conservação de suas primeiras concepções. O
sentido novo dado aos seus postulados fundamentais precisa, assim, ser
fixado, para uma definição precisa das atuais matrizes filosóficas do
Direito Contratual.
O sentido de evolução ainda não foi apontado com segurança. Seria
prematuro afirmar-se que o princípio da autonomia da vontade será
eliminado ou tão restringido que a liberdade de contratar se reduz à
escolha do tipo contratual definido na lei, com todos os efeitos
regulados imperativamente. Em vez de especular sobre a sua sorte ou a
respeito da evolução das obrigações, mais vale, para não fugir à
realidade, enunciar os processos técnicos que o Direito Positivo da
atualidade utiliza para evitar ou coibir as conseqüências inadmissíveis
da aplicação dos dogmas individualistas em sua pureza original.
Esses meios técnicos são 1º) a conversão de leis supletivas em leis
imperativas; 2º) o controle da atividade de certas empresas; 3º) a
discussão corporativa.20
O processo de conversão de leis supletivas em imperativas ensejou a
elaboração de novo princípio do Direito Contratual, o da regulamentação
legal do conteúdo dos contratos, hoje admitido, sem maior relutância, em
relação a certas espécies contratuais. Consiste em regular o conteúdo
do contrato por disposições legais imperativas, de modo que as partes,
obrigadas a aceitar o que está predisposto na lei, não possam suscitar
efeitos jurídicos diversos. Em conseqüência, a vontade deixa de ser
autônoma e a liberdade de contratar retrai-se. Não mais regras
supletivas, que as partes observam se coincidem com seus interesses, mas
normas imperativas, a cuja obediência não podem furtar-se. Contratos
padronizados. Fala-se, então, em dirigismo contratual.
A intervenção também ocorre mediante controle estatal da constituição e
do funcionamento de empresas cuja atividade interessa à economia popular
ou se exerce no setor da assistência vital. O Estado faz depender de
sua autorização o funcionamento dessas empresas, condicionando-o a que
assumam certas obrigações nos contratos para o cumprimento de suas
finalidades.
O terceiro processo técnico importa regresso ao princípio da liberdade
de contratar mediante a restauração do equilíbrio de forças dos
contratantes. As pessoas, que podem figurar numa relação jurídica como
uma de suas partes, organizam-se, fortalecendo-se, para que, na formação
do contrato, em que são interessadas, discutir as condições contratuais
em pé de igualdade com a outra parte. Trava-se, nesse caso, a discussão
corporativa, como ocorre, expressamente, no contrato coletivo de
trabalho. Esse processo técnico afasta a regulamentação autoritária,
substituindo-a pela aquiescência livre dos interessados.21
Em última análise, as medidas técnicas decorrem do reconhecimento de que
a desigualdade real entre os contratantes favorece o abuso do mais
forte. Procu-ra-se corrigi-la, compensando-se a inferioridade econômica
ou circunstancial de uma das partes com uma superioridade jurídica,
segundo a fórmula de Gallart Folch,22 ou com a possibilidade, através do
espírito associativo, da restauração da equivalência de forças.
18. O princípio do consensualismo. A idéia de que o simples
consentimento basta para formar o contrato é conquista recente do
pensamento jurídico. Nas civilizações anteriores, dominavam o formalismo
e o simbolismo. A formação dos contratos subordinava-se à obediência de
determinada forma ritual.
A evolução do Direito Contratual em Roma prova que o ritual tinha
importância decisiva. Os contratos reais realizavam-se per aes et
libram, solenidade executada pelo libripens, que consistia no ato
simbólico de pesar numa balança. Os contratos verbais, pela stipulatio.
Os contratos literais só se perfaziam com a redação de um escrito –
litteris –, o qual não servia apenas para a prova, mas para lhes dar
existência. Formavam-se pelas nomina transcripticia e pelos chirographa e
syngraphae. Somente nos contratos consensuais chegaram a admitir a
formação pelo simples consentimento. Eram, porém, de número escasso.
No Direito hodierno vigora o princípio do consentimento, pelo qual o
acordo de vontades é suficiente à perfeição do contrato.23 Em princípio,
não se exige forma especial. O consentimento – solo consensu – forma os
contratos, o que não significa sejam todos simplesmente consensuais,
alguns tendo sua validade condicionada à realização de solenidades
estabelecidas na lei e outros só se perfazendo se determinada exigência
for cumprida. Tais são, respectivamente, os contratos solenes e os
contratos reais. As exceções não infirmam, porém, a regra, segundo a
qual a simples operação intelectual do concurso de vontades pode gerar o
contrato.
19. Princípio da força obrigatória. O princípio da força obrigatória
consubstan-cia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes.
Celebrado que seja, com observância de todos pressupostos e requisitos
necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas
cláusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os
contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser
cumprido. Estipulado validamente seu conteúdo, vale dizer, definidos os
direitos e obrigações de cada parte, as respectivas cláusulas têm, para
os contratantes, força obrigatória. Diz-se que é intangível, para
significar-se a irretratabilidade do acordo de vontades. Nenhuma
consideração de eqüidade justificaria a revogação unilateral do contrato
ou a alteração de suas cláusulas, que somente se permitem mediante novo
concurso de vontades. O contrato importa restrição voluntária da
liberdade; cria vínculo do qual nenhuma das partes pode desligar-se sob o
fundamento de que a execução a arruinará ou de que não o teria
estabelecido se houvesse previsto a alteração radical das
circunstâncias.
Essa força obrigatória atribuída pela lei aos contratos é a pedra
angular da segurança do comércio jurídico.
O princípio da intangibilidade do conteúdo dos contratos significa
impossibilidade de revisão pelo juiz, ou de libertação por ato seu.
As cláusulas contratuais não podem ser alteradas judicialmente, seja
qual for a razão invocada por uma das partes. Se ocorrem motivos que
justificam a intervenção judicial em lei permitida, há de realizar-se
para decretação da nulidade ou da resolução do contrato, nunca para a
modificação do seu conteúdo.
Dada ao princípio da força obrigatória dos contratos, essa inteligência
larga não se apresenta como corolário exclusivo da regra moral de que
todo homem deve honrar a palavra empenhada. Justifica-se, ademais, como
decorrência do próprio princípio da autonomia da vontade, uma vez que a
possibilidade de intervenção do juiz na economia do contrato atingiria o
poder de obrigar-se, ferindo a liberdade de contratar.
A necessidade lógica de preservar de estranhas interferências a esfera
da autonomia privada conduziu necessariamente ao robustecimento do
princípio da intangibilidade do conteúdo dos contratos. No contexto
normal desse princípio, não seria possível admitir que a superveniência
de acontecimentos determinantes da ruptura do equilíbrio das prestações
pudesse autorizar a intervenção do Estado, pelo órgão da sua
magistratura, para restaurá-lo ou liberar a parte sacrificada. Cada qual
que suporte os prejuízos provenientes do contrato. Se aceitou condições
contratuais extremamente desvantajosas, a presunção de que foram
estipuladas livremente impede se socorra da autoridade judicial para
obter a suavização, ou a libertação. Pacta sunt servanda. Ao Direito é
indiferente a situação a que fique reduzido para cumprir a palavra dada.
Esse princípio mantém-se no Direito atual dos contratos com atenuações
que lhe não mutilam a substância. As exceções preconizadas, e já
admitidas, com hesitação, em poucas legislações revelam forte tendência
para lhe emprestar significado menos rígido, mas não indicam que venha a
ser abandonado, até porque sua função de segurança lhe garante a
sobrevivência. O que mais se não admite é o sentido absoluto que
possuía. Atribui-se-lhe, hoje, relatividade que a doutrina do
individualismo recusava. O intransigente respeito à liberdade individual
que gerara intolerância para com a intervenção do Estado cedeu antes
novos fatos da realidade social, cessando, em conseqüência, a
repugnância a toda limitação dessa ordem. Passou-se a aceitar, em
caráter excepcional, a possibilidade de intervenção judicial do conteúdo
de certos contratos, admitindo-se exceções ao princípio da
intangibilidade. Em determinadas circunstâncias, a força obrigatória dos
contratos pode ser contida pela autoridade do juiz. Conquanto essa
atitude represente alteração radical nas bases do Direito dos contratos,
como parece a alguns entusiastas do poder pretoriano dos juízes, a
verdade é que, no particular, houve sensível modificação do pensamento
jurídico.
A mudança de orientação deve-se a acontecimentos extraordinários, que
revelaram a injustiça da aplicação do princípio nos seus termos
absolutos. Após a primeira conflagração mundial, apresentaram-se, em
alguns países beligerantes, situações contratuais que, por força das
circunstâncias, se tornaram insustentáveis, em virtude de acarretarem
onerosidade excessiva para um dos contratantes. Na França, o Conselho de
Estado admitiu, então relativamente a contratos de concessão de serviço
público, que seu conteúdo poderia ser revisto, desde que novas
circunstâncias, fora de toda previsão, houvessem determinado, para o
cumprimento das obrigações, tamanha onerosidade que a sua execução
importasse a ruína econômica do devedor. A Lei Failliot, de 21 de maio
de 1918, embora de emergência, consagrou, de modo nítido, o princípio da
revisão, dispondo que os contratos mercantis estipulados antes de 1º de
agosto de 1914, cuja execução se prolongasse no tempo, poderiam ser
resolvidos se, em virtude do estado de guerra, o cumprimento das
obrigações por parte de qualquer contratante lhe causasse prejuízos cujo
montante excedesse de muito a previsão que pudesse ser feita,
razoavelmente, ao tempo de sua celebração. Esse diploma legal constitui
marco decisivo na evolução do pensamento jurídico no tocante à questão
da força obrigatória dos contratos, uma vez que consagra a idéia nova da
imprevisão.
Para justificar as exceções que a eqüidade impõe ao princípio da
intangibilidade do conteúdo dos contratos, a doutrina, inicialmente, faz
ressurgir antiga proposição do Direito canônico, a chamada cláusula
rebus sic stantibus, e, em seguida, adotou a construção teórica
conhecida por teoria da imprevisão.24
A cláusula rebus sic stantibus considerava-se inserta nos contratos de
duração e nos de execução diferida, como condição de sua força
obrigatória. Para que conservassem sua eficiência, era subentendido que
não deveria ser alterado o estado de fato existente no momento de sua
formação. Admitia-se, em suma, que contractus qui habent tractum
sucessivum et dependetiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur.
Assim deveriam ser entendidos, presumida a cláusula.
Tratava-se, porém, de construção rudimentar, porquanto baseada na
existência de condição resolutiva implícita, sem levar em conta fatores
que vieram a ser fixados como elementos decisivos à revogação
circunstancial do princípio da força obrigatória. Não deve bastar, com
efeito, a alteração do estado de fato no momento da formação do vínculo.
É preciso algo mais que justifique a quebra da fé jurada. A
impossibilidade de prever a mudança desse estado veio a ser considerada
condição indispensável à modificação do conteúdo do contrato pela
autoridade judicial, ou à sua resolução. Julgou-se esse requisito tão
importante que a construção nova passou a se conhecer sob a denominação
de teoria da imprevisão.
Novas técnicas de redação do contrato generalizaram as hardship clauses
do Direito Internacional, que autorizam a revisão do contrato no caso de
circunstâncias supervenientes alterarem substancialmente o equilíbrio
original das obrigações das partes.
20. Teoria da imprevisão.25 Na justificação moderna da relatividade do
poder vinculante do contrato, a idéia de imprevisão predomina. Exige-se
que a alteração das circunstâncias seja de tal ordem que a excessiva
onerosidade da prestação não possa ser prevista. Por outras palavras, a
imprevisão há de decorrer do fato de ser a alteração determinada por
circunstâncias extraordinárias. As modificações por assim dizer normais
do estado de fato existente ao tempo da formação do contrato devem ser
previstas, pois constituem, na justa observação de Ripert, uma das
razões que movem o indivíduo a contratar, garantindo-se contra as
variações que trariam insegurança às suas relações jurídicas. Quando,
por conseguinte, ocorre a agravação da responsabilidade econômica, ainda
ao ponto de trazer para o contratante muito maior onerosidade, mas que
podia ser razoavelmente prevista, não há que pretender a resolução do
contrato ou a alteração de seu conteúdo. Nesses casos, o princípio da
força obrigatória dos contratos conserva-se intacto. Para ser afastado,
previsto é que o acontecimento seja extraordinário e imprevisível.
Mas não basta. Necessário ainda que a alteração imprevisível do estado
de fato determine a dificuldade de o contratante cumprir a obrigação,
por se ter tornado excessivamente onerosa a prestação. A modificação
quantitativa da prestação há de ser tão vultosa que, para satisfazê-la, o
devedor se sacrificaria economicamente. Chega-se a falar em
impossibilidade. Pretende-se, até, criar a categoria da impossibilidade
econômica, ao lado da física e da jurídica, para justificar a resolução
do contrato, mas, se a equiparação procedesse, estar-se-ia nos domínios
da força maior, não cabendo, em conseqüência, outra construção teórica. A
onerosidade excessiva não implica, com efeito, impossibilidade
superveniente de cumprir a obrigação, mas apenas dificulta, embora
extremamente, o adimplemento. Porque se trata de dificuldade, e não de
impossibilidade, decorre importante conseqüência, qual seja a da
necessidade de verificação prévia, que se dispensa nos casos de força
maior.
Portanto, quando acontecimentos extraordinários determinam radical
alteração no estado de fato contemporâneo à celebração do contrato,
acarretando conseqüências imprevisíveis, das quais decorre excessiva
onerosidade no cumprimento da obrigação, o vínculo contratual pode ser
resolvido ou, a requerimento do prejudicado, o juiz altera o conteúdo do
contrato, restaurando o equilíbrio desfeito. Em síntese apertada:
ocorrendo anormalidade da alea que todo contrato dependente de futuro
encerra, pode-se operar sua resolução ou a redução das prestações.26
Na fundamentação da retratabilidade, por força da chamada imprevisão,
dissentem os escritores. Explicam-na alguns, esclarecendo que a
alteração do estado de fato faz desaparecer a vontade contratual, por
isso que emitida em atenção às circunstâncias existentes no momento da
formação do contrato e às que poderiam ser previstas. Se pudessem as
partes prever os acontecimentos que provocaram a alteração fundamental
da circunstância, outra seria a declaração de vontade.
Entendem outros que se justifica a resolução, ou o reajustamento, por
“falta parcial de causa do contrato, no seu aspecto funcional”.
Para outros, o fundamento encontra-se na teoria do abuso do direito. O
credor abusaria do direito de obter o cumprimento da obrigação, sabendo
que, ao exercê-lo, causa a ruína econômica do devedor, tirando vantagem
desproporcional, conseguindo proveito inesperado e excessivo.
Praticaria, em suma, um ato excessivo, que, para alguns, configura abuso
do direito.
Vai se buscar ainda esse fundamento na eqüidade, na boa-fé, e em outras
idéias gerais.27 Messineo adverte, porém, que é preciso distinguir a
razão de política legislativa, que inspira a medida, da razão
técnico-jurídica. A eqüidade, a boa-fé, a proibição do abuso de direito e
tantas outras noções gerais podem ser admitidas como a razão que teria
levado o legislador a abrir essa exceção ao princípio da força
obrigatória dos contratos. Tecnicamente, não justificam o instituto. No
particular, as teorias que explicam a necessidade de revisão de certos
contratos, pela apreciação da vontade contratual, oferecem explicação
mais satisfatória.28
21. Princípio da boa-fé. O princípio da boa-fé entende mais com a
interpretação do contrato do que com a estrutura. Por ele se significa
que o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção
manifestada na declaração de vontade, ou dela inferível. Ademais,
subentendem-se, no conteúdo do contrato, proposições que decorrem da
natureza das obrigações contraídas, ou se impõem por força de uso
regular e da própria eqüidade. Fala-se na existência de condições
subentendidas. Admitem-se, enfim, que as partes aceitaram essas
conseqüências, que realmente rejeitariam se as tivessem previsto. No
caso, pois, a interpretação não se resume a simples apuração da intenção
das partes.
O Direito moderno não admite os contratos que os romanos chamavam de
direito estrito, cuja interpretação deveria ser feita literalmente. Tais
contratos somente poderiam existir num sistema dominado pelo princípio
do formalismo. Uma vez que hodiernamente vigora o princípio do
consensualismo, são inadmissíveis.
Ao princípio da boa-fé empresta-se ainda outro significado. Para
traduzir o interesse social de segurança das relações jurídicas, diz-se,
como está expresso no Código Civil alemão, que as partes devem agir com
lealdade e confiança recíprocas. Numa palavra, devem proceder com
boa-fé. Indo mais adiante, aventa-se a idéia de que entre o credor e o
devedor é necessária a colaboração, um ajudando o outro na execução do
contrato.29 A tanto, evidentemente, não se pode chegar, dada a
contraposição de interesses, mas é certo que a conduta, tanto de um como
de outro, subordina-se a regras que visam a impedir dificulte uma parte
a ação da outra.
[Modernamente distingue-se a boa-fé subjetiva, que se refere a um estado
subjetivo ou psicológico do indivíduo, aplicável notadamente no campo
do Direito das Coisas (fala-se em “possuidor de boa-fé”, por exemplo),
da boa-fé objetiva, correspondente a uma regra de conduta, um modelo de
comportamento social, algo, portanto, externo em relação ao sujeito.30 A
boa-fé aqui referida é a boa-fé objetiva.
O primeiro dispositivo legal a prever a boa-fé no direito brasileiro foi
o art. 131, inciso I, do Código Comercial de 1850 (“A inteligência
simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro
espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e
restrita significação das palavras”). A doutrina, entretanto, entendeu
que a boa-fé nele aludida era subjetiva e não procurou desenvolver a
regra contida no artigo, o qual permaneceu praticamente sem aplicação
por parte dos tribunais. Os arts. 4º, inciso III, e 51, inciso IV do
Código do Consumidor, são apontados, assim, como os primeiros a
consagrar definitivamente a noção da boa-fé objetiva em nosso sistema.
Por se tratar de princípio amplo, carente de concretização para ser
aplicado no caso concreto, procurou-se sistematizar os diferentes papéis
da boa-fé no campo contratual. A mais difundida é uma classificação
tripartite das funções do princípio da boa-fé (função interpretativa,
função supletiva e função corretiva).
A função interpretativa da boa-fé está prevista no art. 113 do Código
Civil. A interpretação dos contratos pode se desenrolar em duas fases. A
primeira tem por objetivo a determinação da intenção ou sentido comum
atribuído pelas partes à declaração contratual.31 Contudo, a declaração
contratual freqüentemente apresenta deficiências (lacunas, ambigüidades
ou obscuridades) insanáveis mediante a busca da intenção dos
contratantes. Entra em jogo, então, a segunda fase da interpretação,
cujo fim é eliminar as falhas da declaração negocial. Tendo em vista que
todo contrato implica conflito de interesses, essa segunda etapa
interpretativa segue critérios objetivos, notadamente a boa-fé e os usos
em função interpretativa. Interpretar conforme a boa-fé é substituir o
ponto de vista relevante, posicionando no contexto do contrato um modelo
de pessoa normal, razoável, a fim de averiguar o sentido que essa
pessoa atribuiria à declaração negocial caso houvesse percebido a
deficiência.
Em função supletiva, a boa-fé atua criando deveres anexos (também
chamados laterais, secundários ou instrumentais). Além dos deveres
principais, que constituem o núcleo da relação contratual, há deveres
não expressos cuja finalidade é assegurar o perfeito cumprimento da
prestação e a plena satisfação dos interesses envolvidos no contrato.
Dentre estes, destacam-se os deveres de informação, sigilo, custódia,
colaboração e proteção à pessoa e ao patrimônio da contraparte.
A boa-fé enquanto fonte geradora de deveres encontra-se presente no art.
422 do Código Civil (“Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade
e boa-fé”). Não obstante o dispositivo mencionar apenas a conclusão e a
execução do contrato, é certo que a boa-fé cria deveres anexos também
na fase pré-contratual, isto é, naquele período de negociações
preliminares e tratativas que antecedem a conclusão do contrato, bem
como na fase pós-contratual (boa-fé post pactum finitum). Exemplo da
incidência da boa-fé na fase pré-contratual é encontrado nos casos de
ruptura injustificada das negociações, em que há violação de deveres de
colaboração e muitas vezes de informação, ensejando a responsabilidade
pré-contratual da parte que rompe as tratativas. Por sua vez, mesmo após
a extinção do contrato exige-se que o contratante não adote
comportamento capaz de frustrar ou diminuir a vantagem almejada pela
outra parte com o negócio (praticando concorrência ou negando-se a
fornecer peças de reposição, v.g.), o que evidencia a boa-fé post pactum
finitum.
Por fim, há a função corretiva do princípio da boa-fé. Nessa área, ele
atua principalmente no controle das cláusulas abusivas e como parâmetro
para o exercício das posições jurídicas. Sob esse aspecto, destaca-se o
adimplemento substancial (substantial performance), hipótese em que o
contratante executa grande parte de suas obrigações e somente deixa de
executar parte insignificante perante o todo, cuja conseqüência
principal é impedir a resolução do contrato sob alegação de
inadimplemento, além de outras figuras ligadas ao abuso do direito
(v.g., a proibição do comportamento contraditório, também denominado
venire contra factum proprium).32 O Código Civil de 2002 traz a boa-fé
em função corretiva no art. 187, ao erigi-la em critério de determinação
do abuso do direito (“Também comete ato ilícito o titular de um direito
que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”).
O princípio da boa-fé é aplicável a toda e qualquer relação contratual,
independentemente da existência de debilidade ou hipossuficiência por
parte de um dos contratantes ou do desequilíbrio entre os pólos da
relação. Reconhece-se, todavia, que o princípio não se aplica igualmente
a todas as classes de contratos. Há, por exemplo, algumas
peculiaridades na sua aplicação aos contratos celebrados entre pessoas
jurídicas (contratos interempresariais). Inicialmente, deve-se observar
que a boa-fé incide sobre estes contratos predominantemente nas duas
primeiras funções (interpretativa e supletiva). Isso porque estas
funções representam, em última análise, um reforço à autonomia da
vontade, ao contrário da função corretiva. Na função interpretativa,
destaca-se a exigência de maior diligência por parte do empresário. Na
medida em que interpretar à luz da boa-fé equivale a considerar o modelo
de comportamento social esperado de pessoa que estivesse no contexto da
parte contratante, isso implica avaliar a declaração e a conduta da
parte consoante a diligência dela esperada, o que permite considerar
diferentes níveis de diligência. Parece evidente, então, que um
empresário tem ônus muito mais intenso de entender as declarações
conforme o sentido técnico que possuem na respectiva área de atuação, o
que leva a exigir maior grau de diligência, se comparado com o de uma
pessoa comum. Ademais, tanto na função interpretativa quanto na
supletiva a aplicação do princípio da boa-fé deve necessariamente
observar, no campo dos contratos interempresariais, os usos mercantis,
muito embora estes devam ceder em relação à boa-fé, no caso de eventual
incompatibilidade entre eles.]
22. Princípio da relatividade dos efeitos dos contratos. O princípio da
relatividade dos contratos diz respeito à sua eficácia. Sua formulação
fez-se em termos claros e concisos ao dizer-se que o contrato é res
inter alios acta, aliis neque nocet neque prodest, o que significa que
seus efeitos se produzem exclusivamente entre as partes, não
aproveitando nem prejudicando a terceiros.
Para torná-lo compreensível, é indispensável distinguir da existência do
contrato os efeitos internos.33 A existência de um contrato é um fato
que não pode ser indiferente a outras pessoas, às quais se torna
oponível. Os efeitos internos, isto é, os direitos e obrigações dos
contratantes, a eles se limitam, reduzem-se, circunscrevem-se. Em regra,
não é possível criar, mediante contrato, direitos e obrigações para
outrem. Sua eficácia interna é relativa; seu campo de aplicação
comporta, somente, as partes. Em síntese, ninguém pode tornar-se credor
ou devedor contra a vontade se dele depende o nascimento do crédito ou
da dívida. Pothier, chamando-a de verdade evidente, enunciou a regra
nesses termos: “Uma convenção não tem efeito senão a respeito das coisas
que constituem seu objeto; e somente entre as partes contratantes.”
O princípio da relatividade dos contratos não é absoluto. Sofre
importantes exceções.
Para defini-las, cumpre fixar a noção de terceiro. Como tal se considera
quem quer que seja totalmente estranho ao contrato ou à relação sobre a
qual ele estende os seus efeitos. Assim, o sucessor, a título universal
de um contratante, embora não tenha participado da formação do
contrato, terceiro não é, porque a sua posição jurídica deriva das
partes, como tal devendo ser tido.
Há contratos que, fugindo à regra geral, estendem efeitos a outras
pessoas, quer criando, para estas, direitos, quer impondo obrigações.
Tais são, dentre outros, a estipulação em favor de terceiro, o contrato
coletivo de trabalho, a locação em certos casos e o fideicomisso “inter
vivos”.
O princípio da relatividade dos contratos não se aplica somente em
relação aos sujeitos. Incide, igualmente, no objeto, enunciando-se do
seguinte modo: o contrato tem efeito apenas a respeito das coisas que
caracterizam a prestação. Se o objeto da prestação, recebido pelo credor
em virtude de contrato comutativo, tem defeito oculto que o torna
impróprio ao uso a que é destinado ou lhe diminui o valor, ou se dele
vem a ser privado em virtude de sentença que reconheça o direito de
outrem, a eficácia do contrato estará comprometida.34
Consideradas as pessoas em cuja esfera jurídica podem incidir efeitos
finais de contrato, é de ressaltar a noção de oponibilidade,
distinguindo três categorias de terceiros: 1ª) os que são estranhos ao
contrato, mas participantes do interesse, cuja posição jurídica é
subordinada à da parte, como os subcontratantes e os mandatários; 2ª) os
que são interessados, mas têm posição independente e incompatível com
os efeitos do contrato; 3ª) os que são normalmente indiferentes ao
contrato, mas podem ser legitimados a reagir quando sofram particular
prejuízo dos efeitos do mesmo contrato, como os credores.35
[23. Princípio do equilíbrio econômico. O princípio do equilíbrio
econômico do contrato, ou do sinalagma, encontra-se presente no Código
Civil primordialmente como fundamento de duas figuras, a lesão e a
revisão ou resolução do contrato por excessiva onerosidade
superveniente. Em ambos os casos, desempenha papel de limite à rigidez
do princípio da força obrigatória do contrato.
A lesão encontra-se disciplinada como defeito do negócio jurídico, no
art. 157 do Código Civil, e será analisada no Capítulo 16 desta obra.
Já a revisão ou resolução do contrato por onerosidade excessiva consiste
na solução adotada pela legislação italiana para o problema da
alteração das circunstâncias,36 enfrentado em outros tempos e países por
diversas teorias (dentre as quais a doutrina da cláusula rebus sic
stantibus, da imprevisão, da pressuposição e da base do negócio). A
figura é estudada no Capítulo 15 desta obra.
[24. Princípio da função social do contrato. O princípio da função
social do contrato, inovação pioneira do Código Civil de 2002, vem
expressamente previsto em seu art. 421: “A liberdade de contratar será
exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Trata-se,
como é evidente, de norma de ordem pública, como esclarece o art.
2.035, parágrafo único, do mesmo Código. A locução “função social” traz a
idéia de que o contrato visa a atingir objetivos que, além de
individuais, são também sociais. O poder negocial é, assim,
funcionalizado, submetido a interesses coletivos ou sociais.
Em sua obra “Novos temas de direito civil”, Orlando Gomes já observava
que o capitalismo industrial e empresarial, alçando o contrato à
condição de criador de riqueza (e não mais mero meio circulador), fez
com que ele passasse a ter função social.37 Em suas palavras: “Foi
somente depois da Segunda Guerra Mundial, quando o capitalismo
amadureceu e a revolução tecnológica lhe deu novo alento, que o contrato
passou a exercer indiscutível e desenganadamente nova função, de grande
significação para a sua evolução. Na fase anterior do capitalismo,
quando a sociedade industrial não alcançara o grau de desenvolvimento
nem os contornos acentuados na década de 60, o contrato limitava-se,
como assinala Roppo, a transferir a propriedade de bens. Não criava
riqueza; passou a criá-la. Esta é a grande transformação. O contrato
passa a exercer uma nova e importante função no capitalismo maduro. Para
compreendê-la é preciso levar em conta e ter em mente o fenômeno da
emersão da empresa. A nova maneira de atividade econômica, caracterizada
pela organização de fatores de produção em unidades industriais ou
comerciais, trouxe o contrato para o centro das forças de propulsão da
riqueza. Sua importância econômica refletiu-se na sua significação
jurídica, a começar pela forma da organização. A empresa toma
juridicamente a configuração de sociedade, isto é, como sociedade
anônima, – a notável invenção jurídica do capitalismo. Uma vez
constituída, passa a manter relações contratuais necessárias com os seus
empregados, com os fornecedores, os distribuidores, os compradores, os
financiadores e tantos outros de quem precise para perseguir seus fins,
integrando o mercado. Muito mais do que a propriedade da fábrica ou da
loja, importam, para o seu desempenho, o controle acionário, o know-how,
o leasing, as operações de crédito e financiamento, os contratos,
individuais e coletivos, de trabalho, os papéis da nova riqueza
mobiliária (cambiais, cédulas, apólices), representativos de direitos
patrimoniais que não têm a natureza do direito de propriedade, –
direitos que constituem riqueza diretamente criada pelo contrato. Novas
técnicas contratuais adotam-se, por sua vez, para a formalização
jurídica das operações econômicas necessárias ou convenientes à grande
empresa, reafirmando a instrumentalidade do contrato. É enfim outra
figura com o mesmo nome. [...] Concluindo: o fenômeno da contratação
passa por uma crise que causou a modificação da função do contrato:
deixou de ser mero instrumento do poder de autodeterminação privada,
para se tornar um instrumento que deve realizar também interesses da
coletividade. Numa palavra: o contrato passa a ter função social.”38
Com a promulgação do Código Civil de 2002, a doutrina tem procurado
traçar as primeiras linhas com vistas à delimitação do conteúdo do
princípio da função social do contrato. Duas correntes já se antecipam. A
primeira delas procura ver no art. 421 do Código uma instância de
proteção de interesses externos às partes contratantes. Fala-se, então,
em “interesses institucionais”, expressão que remonta ao
constitucionalismo alemão e designa os interesses de determinados grupos
sociais (em certo sentido, instituições), jurídica e economicamente
distintos dos interesses individuais, tais como o meio ambiente e a
defesa da concorrência.39 Esta visão é, de certa maneira, restritiva,
pois nega a possibilidade de reconduzir ao princípio da função social do
contrato vicissitudes ligadas apenas à relação entre os contratantes. O
limite de aplicação do princípio da função social do contrato estaria,
precisamente, na lesão a interesses institucionais, necessariamente
externos ao contrato.
Outra corrente, a que nos filiamos, vislumbra no princípio da função
social do contrato também outras aplicações práticas. Entendemos que há
pelo menos três casos nos quais a violação ao princípio da função social
deve levar à ineficácia superveniente do contrato. Juntamente com a
ofensa a interesses coletivos (meio ambiente, concorrência etc.),
deve-se arrolar a lesão à dignidade da pessoa humana e a impossibilidade
de obtenção do fim último visado pelo contrato.
A hipótese de lesão à dignidade da pessoa humana foi prevista em
enunciado aprovado na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro
de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a
13 de setembro de 2002: “Art. 421: a função social do contrato,
prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da
autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio
quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual
relativo à dignidade da pessoa humana.”
Com relação à impossibilidade de obtenção do fim último visado pelo
contrato, o fim que não mais pode ser atingido faz com que o contrato
perca sua função social, devendo torná-lo juridicamente ineficaz. Entre
os casos de frustração do fim do contrato, que agora encontram
legalmente um “lugar cômodo” sob a exigência da função social, estão os
“coronation cases” de Windscheid, quando, na Inglaterra, cidadãos que
alugaram sacadas e terraços, para assistir à passagem do cortejo de
Eduardo VII, se viram frustrados com o cancelamento do percurso das
carruagens (mas as janelas e sacadas permaneceram à disposição); ou
também o caso de Larenz, do artesão que, na Alemanha, insistia em fazer a
porta de igreja, já demolida por bombardeio aliado, porque o contrato
havia sido assinado; e, assim, inúmeras outras situações em que, sem
haver impossibilidade da prestação, o verdadeiro fim do contrato,
conhecido das duas partes, já não pode ser atingido. Em todas essas
hipóteses, o contrato, tornado inútil, deve ser resolvido por falta de
função social.
Na III Jornada de Direito Civil promovida pelo referido Centro de
Estudos aprovou-se enunciado especificando a frustração do fim do
contrato como hipótese de aplicação do princípio da função social: “A
frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a
impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida
no direito brasileiro pela aplicação do artigo 421 do Código Civil.”
A grande vantagem da explicitação legal da função social do contrato
como limite à atividade privada não está tanto no momento inicial do
contrato (a isso responde a teoria das nulidades), e sim no momento
posterior, relativo ao desenvolvimento da atividade privada.]